Em entrevista concedida ao Estado de S. Paulo no último dia de 2009, o prefeito Gilberto Kassab (DEM), de São Paulo, declarou que a cidade estava melhor do que a encontrada no início de seu mandato, um ano atrás.
“A cidade avançou em diversas áreas, principalmente em saúde e educação, pilares da gestão”, além de ter ganhado em transparência no plano administrativo. Seu primeiro ano como prefeito estaria terminando “sem nenhum problema na cidade”. O prefeito manifestava-se plenamente convencido de que ele, “eleito para fazer o que é correto e importante”, estava “zelando pelos interesses da cidade”.
Menos de trinta dias depois, o Movimento Nossa São Paulo divulgou pesquisa realizada pelo Ibope no mesmo mês de dezembro, ouvindo 1.512 pessoas com mais de 16 anos. Os resultados não foram somente contrastantes com a avaliação do prefeito: foram impressionantes. A avaliação positiva do governo Kassab caiu de 46% para 28%, impulsionada pela insatisfação manifestada pela população, que atribuiu nota média de 4,8 para a qualidade de vida na cidade, numa escala de 1 a 10. Nada menos do que 57% dos paulistanos mudariam da cidade se pudessem.
São números eloqüentes, que falam por si e desafiam a todos, não somente ao prefeito. Desanimam, quando lembrados no aniversário de 456 anos de São Paulo. E intrigam, quando confrontados com o dinamismo, a pujança, a ampla oferta cultural e o pluralismo da cidade. Mas são inteiramente compreensíveis, quando se considera a vida cotidiana real da maioria dos moradores.
No último dia 21, por exemplo, as chuvas da madrugada causaram congestionamento recorde e deixaram São Paulo praticamente ilhada. O prefeito atribuiu o estrago ao “crescimento desordenado e à impermeabilização excessiva da cidade”, isentando a administração municipal de falhas ou responsabilidades. Garantiu que “a população pode ficar tranquila, pois os investimentos continuarão acontecendo”.
No transporte público e no trânsito, o desgaste, a poluição e o desperdício são a regra, para todos. Calcula-se que a cidade jogue fora cerca de R$ 33 bilhões pelo que se deixa de produzir em decorrência das horas intermináveis que muitos gastam para ir de um lugar a outro. Há muito tempo a cidade deixou de ter contato com o silêncio como experiência cívica, vital para a formação de uma cidadania crítica e reflexiva. O caos e o desassossego parecem explodir em todos os cantos.
A visão dos gestores não encontra respaldo na percepção dos habitantes, porque os primeiros tendem a se ver como racionalizadores bem-intencionados e os segundos experimentam na pele tudo o que a cidade produz de pior. O que o prefeito considera sucesso e realização, a população vive como problema e decepção, quase com raiva.
A sensação é que São Paulo está a um passo de perder a lealdade de seus moradores, que estão decepcionados com ela e sofrem para viver nela.
Se for assim, teremos problemas pela frente. Será difícil, por exemplo, contar com apoios sociais para as operações que precisarão ser feitas para que a cidade volte a ser um ambiente apreciado por seus habitantes. Porque é evidente que a cidade não será modificada pela ação unilateral ou pela vontade política da prefeitura, por mais que ela possa ser indispensável. Uma cidade muda quando uma população chama para si a tarefa de mudá-la. Mudanças urbanas profundas resultam tanto de obras e planos de governo quanto especialmente de modificações de hábitos e comportamentos. São ações que implicam algum tipo de “sacrifício” e que não podem ser vitoriosas sem certo grau de adesão, ainda que tardia.
Porém, se uma população acha que seus políticos são desonestos e as instituições públicas não são confiáveis, de que modo poderá aderir à cidade e aos planos que eventualmente vierem a lhe ser apresentados? Na pesquisa mencionada, a maioria da população (61%) não confia na prefeitura e 74% suspeitam dos vereadores paulistanos, que receberam nota 2,3 em termos de honestidade. Foi a avaliação mais baixa entre todas as instituições públicas analisadas. Mais de 60% acreditam que não há democracia na educação e 71% acham que o serviço para agendar consultas, exames e resultados nos sistemas de saúde está bem abaixo do razoável. A honestidade dos governantes foi avaliada por 92% dos entrevistados como ruim ou péssima.
Tal manifestação sobre a qualidade de vida na cidade está indicando a possibilidade de que se forme uma onda de descolamento entre o morador e o espaço urbano. Se tudo está ruim e é percebido pelas pessoas como péssimo, a probabilidade maior é que as coisas continuem a piorar. Se os ônibus são o que são – latas velhas, barulhentas e sem conforto, para levar gente como gado –, por que os usuários cuidarão deles? Por acaso não ficarão tentados a arruiná-los ainda mais?
Mas é preciso reconhecer, também, que a mesma população que se mostra decepcionada com a cidade dá um crédito de confiança a ela. Fala em ir embora, mas permanece, até porque não tem para onde ir. E continua, dia após dia, a buscar seus sonhos nas ruas esburacadas e inseguras da metrópole, sinal de que essas são ruas ainda carregadas de promessas.
São Paulo tem certamente virtudes reconhecidas por seus moradores. Mas é vista e sentida como inclemente, um ambiente que exige muito e concede pouco. Fazer com que a cidade virtuosa prevaleça sobre a cidade que não perdoa é o desafio dos próximos anos. Para ser vencido, ele exige uma bússola democraticamente definida e recepcionada. O Plano Diretor Estratégico do município foi aprovado em 2002 e faz parte do caminho, mas é desconhecido da população e não conta com ela em sua aplicação. Poderá até produzir bons resultados, mas estará sempre um passo aquém do necessário.
Uma megalópole como São Paulo, afinal, não é um corpo domesticável ou que se possa modelar sem um forte e permanente envolvimento da população. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/01/2010, p. A2].
A cidade inclemente
Posted on sábado, 23 de janeiro de 2010 by Editor in