Dilemas do realismo político

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  • domingo, 26 de julho de 2009
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  • Observadores isentos e cidadãos comuns terão certamente dificuldade para entender a passividade com que os políticos brasileiros estão a enfrentar a situação de desgaste que vem corroendo o Senado Federal desde ao menos o final do mês passado.

    Como entender que aquele que é considerado o fecho de ouro do sistema político brasileiro possa ser mantido em banho-maria, sangrando a céu aberto, largado à própria sorte? Terá o Senado ficado sem aura e relevância, a ponto das turbulências que ocorrem em seu interior sequer alterarem a rotina política e governamental? E onde andará a “auto-estima” dos senadores, que não parecem se importar com a perda de prestígio da instituição?

    A crise do Senado é visível, mas ela não se limita a ele. Podemos qualificar com rigor sua amplitude, até para não abusar da palavra “crise”. Não estamos diante de uma situação terminal, nem muito menos na ante-sala de uma bancarrota política. Também não estamos na presença de uma “crise orgânica”, do Estado em seu conjunto, ou de uma “crise de hegemonia”, a partir da qual tudo estaria fora de eixo.

    Mas procede falar em crise porque as instituições não estão respondendo ao que delas espera a sociedade e começam a se converter numa caricatura de si mesmas. Não se trata de um problema do senador Sarney, deste ou daquele partido, ou mesmo do Poder Legislativo. O Judiciário persegue há tempos a sua reforma. Sequer a Presidência da República funciona a contento, em que pesem a popularidade do presidente e os acertos de seu governo.

    Se quisermos escapar do peso negativo da palavra “crise”, podemos dizer que existe hoje, no país, um grave mal-estar político e institucional.

    Isso ocorre não somente porque o presidente do Senado entalou numa esparrela que a cada dia fica mais sufocante e lhe dilapida o patrimônio político acumulado ao longo de décadas de atuação. É difícil acreditar que um político experiente e sagaz como o senador Sarney não tenha se dado conta do ambiente que se propôs a presidir e não consiga achar uma saída que o salve de uma despedida melancólica da vida pública. Afinal, ele se empenhou para ser eleito, teve de brigar para isso, não foi um nome consensual. É impossível que não perceba que o terreno para manobras e protelações se encurtou dramaticamente nos últimos dias. A diluição da autoridade moral da presidência da casa alastra-se por todo o Senado, com direito a respingar nas demais instituições políticas, do Legislativo ao Executivo.

    A crise, que à primeira vista parece represada e assim é tratada, revela-se então de corpo inteiro, impregnando e maculando a estrutura institucional e os quadros políticos.

    Não fosse assim, o sistema já teria reagido. Não estaria a assistir passivamente ao seu enfraquecimento. O cenário é preocupante: se o sistema político não reage não será porque o país dele não necessita e nele não se reconhece? Ou seja, para que as coisas continuem como estão, nessa malemolência irritante e normalizada, não é preciso que as instituições funcionem bem. Não cairemos no precipício, mas também não iremos para frente. Daqui a pouco aparecerá alguém propondo acabar com elas.

    O Senado responde por uma função importante na engenharia institucional brasileira. A ele é atribuído o papel de amortecer eventuais falhas ou "arroubos" da Câmara, equilibrar a representação e engrandecer a República. Não tem feito nem uma coisa nem outra. E se não funciona, ou funciona mal, a institucionalidade fica capenga e tem suas deficiências, que não são poucas, agravadas. Falhando a institucionalidade, vêm à tona a mediocridade e o vazio. Só não fica pior porque é também nesses momentos que aumentam as chances de que os melhores quadros assumam suas responsabilidades.

    Por tudo isso, há uma interrogação pendurada sobre a cabeça do Poder Executivo e do principal partido de sustentação política do presidente, o PT. Por que blindar a presidência do Senado e banalizar a crise? Para manter a aliança com o PMDB e evitar que as oposições se apossem do comando do Senado. É a resposta mais fácil, fiel ao "realismo político" que se tem tentado imprimir às ações da Presidência. Mas tal resposta prolonga o sofrimento do Senado e injeta turbulência na vida política nacional. Não pacifica, não melhora a situação, não soluciona nenhum dos problemas políticos do país.

    O realismo é precioso em política. Nesse universo, nem tudo o que brilha é ouro e nem sempre as coisas certas são feitas pelas melhores pessoas ou o mal deriva do mal. Max Weber falou isso no famoso ensaio sobre a política como vocação. E todo mundo sabe que nos ambientes políticos as evidências não correspondem necessariamente aos fatos. Que há desejo de oposição por trás da carga contra Sarney é óbvio. Que as oposições acabarão por se beneficiar com um seu eventual afastamento é igualmente esperado, dado o pacto de sangue que a Presidência selou com o senador e seu partido. Mas um pouco de oposição é tudo o que um governo democrático necessita, até para não se acomodar ou não achar que manda na sociedade toda. As oposições querem usar a crise do Senado para crescer eleitoralmente e melhorar sua performance em 2010? Que o façam, qual o problema? O que não dá para aceitar é que o governo acredite que sairá incólume com a blindagem do Senado.

    Nenhum realismo pode se chocar demais com as tradições que dão caráter aos partidos e aos políticos, sob pena de destroçá-la. Nossa época não é muito favorável a identidades doutrinárias, lealdades ou fidelidades. Os partidos e os políticos que se querem coerentes, porém, precisam lutar contra isso. No mínimo para manter atados os fios que os ligam à sua própria história e com isso dar mais vigor ético à política.

    Nenhum realismo, além do mais, pode ir contra as expectativas da opinião pública democrática, o bom-senso ou a voz das ruas. Não deve obedecer servilmente a essas coisas, claro, mas não tem como ignorá-las, sob pena de deixar de ser realismo. É uma questão de sintonia. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 25/07/2009, p. A2].

     
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