Partidos vazios

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  • quarta-feira, 1 de abril de 2009
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  • Se prestarem atenção nos dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) semana passada, os partidos políticos têm bons motivos para se preocupar.

    Em janeiro de 2008, cerca de 90% dos eleitores brasileiros não pertenciam a nenhuma legenda. Um ano depois, esse índice subiu para 91,6%. São 119,7 milhões de eleitores sem vínculos partidários. A comparação chama ainda mais atenção quando se vê que o colégio eleitoral cresceu cerca de 2,9 milhões neste período, ao passo que o número de não-filiados aumentou 4,3 milhões.

    A tendência é consistente. Afeta todas as legendas e ocorre em todas as unidades da federação. A única exceção foi o PRB, partido próximo à Igreja Universal do Reino de Deus, que conseguiu passar de 121 mil para 157 mil filiados. Só o PMDB, maior partido do país, perdeu 14% de seus aderentes (cerca de 300 mil), percentagem próxima à do PSDB, do DEM e do PT. Mesmo os micro-partidos ideológicos, tipo PSTU e PCO, retrocederam cerca de 3%.

    Como explicar isso? Estarão os partidos decepcionando os eleitores ou são estes que encontraram outra maneira de encaminhar suas reivindicações? O problema é institucional, pode ser resolvido com uma legislação eleitoral e partidária mais justa e adequada? Ou é de ordem moral, derivado do “excesso de corrupção” e dos “altos salários” que desgastariam a imagem dos políticos entre a população, como alega uma complicada corrente de opinião que vai da direita ultraconservadora à extrema-esquerda “revolucionária”?

    Não há resposta cabal para o fato, mas é fácil visualizar suas consequências. O enfraquecimento da relação entre partidos e eleitores é um indício de que se afrouxaram os laços entre a sociedade e o sistema político. Pode ser que os cidadãos já não se importem tanto com o modo como são governados e prefiram se distanciar da democracia representativa. Sem eles, no entanto, a representação soluça e termina sob monopólio dos partidos, que se tornam seus únicos protagonistas, “donos” de suas regras e de seus resultados. Com isso, a política representativa se converte em atividade de profissionais que não são “vistos” pela sociedade e não se importam em trazê-la para o centro do palco.

    A questão é delicada porque a democracia representativa continua sempre mais vital em sociedades complexas e multiétnicas como são as nossas. Nela, o fundamental papel de dar operacionalidade à política, às reivindicações sociais e às decisões de governo tem cabido aos partidos, que foram inventados precisamente para isso.

    Os partidos se dedicam a organizar a chegada ao governo ou a oposição ao governo. Encarregam-se de criar condições para que os interesses parciais desta ou daquela classe evoluam, se encontrem com os interesses parciais de outras classes e dêem origem a algum denominador comum que represente mais fielmente o conjunto. Mesmo as organizações de esquerda, que sempre se recusaram a limitar sua ação ao plano estrito do parlamento, representam grupos sociais, dão voz a eles e podem agir como construtores de hegemonia, de novas orientações culturais. São os partidos e a luta entre eles dentro e fora do parlamento que possibilitam o processamento democrático das demandas e a estruturação de uma agenda de políticas.

    Se os cidadãos os ignoram, temos um sinal de alerta. Que soa forte quando percebemos que são ralas as chances da sociedade se auto-representar ou de resolver seus problemas pela via da “participação direta”.

    Para entender melhor a questão, temos de olhar para o modo como se vive. O esvaziamento dos partidos tem a ver com uma mudança profunda que está abalando a ordem social. Alguns sociólogos costumam usar a metáfora da “vida líquida” para se referir a isso, salientando a exacerbação de um antigo processo de “derretimento” que estaria a afetar tudo aquilo que há de “sólido” e instituído. Em decorrência, a incerteza e a insegurança tenderiam a amortecer o desejo de participação política dos cidadãos. Outros falam de “sociedade em rede” e dão destaque às tecnologias de informação que, ao se tornarem experiência cotidiana, alteram a comunicação, o trabalho e a formação da consciência. Embaralhando os fluxos de decisão, numa dinâmica em que o econômico se sobrepõe ao político, a “sociedade em rede” faz com que os centros (os governos, os Estados, os partidos) percam potência e não consigam mais controlar espaços e pessoas, que frustradas deles se desinteressam.

    Tais configurações casam com a individualização e a democratização típicas da nossa época, que “soltam” os indivíduos de seus grupos de referência e os incentivam a “pensar com a própria cabeça”, ou seja, a agir e a decidir autonomamente, mesmo que segundo padrões definidos pela mídia ou pelo mercado. Perversas e sutis formas de controle se generalizam em um ambiente onde tudo parece fora de controle. A obsessão por controlar (das pessoas à própria vida) convive paradoxalmente com o desejo ilimitado de liberdade.

    As sociedades deixam assim de produzir adesões e lealdades simples, automáticas, tumultuando as identidades. Dá para imaginar como isso rebate na política.

    Não precisamos levar essas hipóteses ao pé da letra, pois as mudanças sociais são assimétricas, espalham-se por tempos longos e demoram a ser captadas pelas instituições. Mas se tais explicações têm alguma serventia, é a de nos alertar para o que ocorre nos rios profundos que movem as sociedades. Servem para nos dizer que as instituições precisam mudar, que as práticas não podem permanecer rotinizadas, que a linguagem política têm de ser renovada dia-a-dia, independentemente de credos, livros ou heróis.

    Ou a política democrática honra seu compromisso com a secularização e abandona os deuses que porventura já não falam a língua do tempo, ou arrisca-se a perder valor inapelavelmente. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/03/2009].

     
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