A Revolução dos Cravos teve uma ampla e relativamente livre cobertura da imprensa brasileira, apesar do país ainda estar sob a égide do regime ditatorial inaugurado em 1964. Uma das explicações possíveis para isto é o fato de que a censura sobre o noticiário internacional era muito mais branda – na verdade, quase inexistente – do que aquela exercida sobre o noticiário interno. Tal fato levou, inclusive, os grandes grupos de comunicação do Brasil a investirem maciçamente em suas editorias internacionais, começando assim a manterem um corpo de correspondentes permanentes nas principais capitais do mundo, deixando de serem meros repetidores das agências de notícias internacionais. No entanto, se os acontecimentos em Portugal eram noticiados com bastante liberdade, tal lógica não se aplicava à produção artística e cultural do período: em 1974, Chico Buarque de Hollanda, um dos recordistas em composições censuradas durante a ditadura, teve a sua canção “Tanto Mar” - composta em homenagem ao processo revolucionário em curso do outro lado do atlântico - proibida pelo Departamento de Censura. Nesta canção é feita uma comparação (um tanto melancólica) entre a situação de Portugal, onde as Forças Armadas tinham aberto os caminhos da liberdade, e a do Brasil, em que os militares eram os principais responsáveis pela opressão. Naquele momento, “Tanto Mar”, com sua letra original, foi lançada somente em Portugal, já que no Brasil só pôde ser registrada uma versão instrumental, presente em um álbum ao vivo do Chico e da Maria Bethânia, com a gravação de um show no Canecão. Em 1978, com a abertura política iniciada por Geisel e Golbery já em processo bem adiantado, “Tanto Mar” é finalmente liberada pela censura, só que, naquela altura do campeonato, sua letra original estava completamente datada e defasada. Assim, no seu disco gravado nesse ano, Chico registra a canção com uma nova letra, num tom de retrospectiva dos acontecimentos daqueles últimos quatro anos em Portugal(e no Brasil). Compare abaixo as duas versões:
Letra de 1974
Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
Letra de 1978
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim
Letra de 1974
Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
Letra de 1978
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim