Entrevista: A direita se une na Itália

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  • domingo, 29 de março de 2009
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  • Força Itália, partido do presidente italiano Silvio Berlusconi, e a Aliança Nacional dirigida por Gianfranco Fini, decidiram formalmente, dias atrás, dar curso a uma nova organização, o Partido do Povo da Liberdade (PDL). Os dois braços do novo partido já estão juntos, como aliados, no governo Berlusconi.

    Em termos eleitorais, o PDL herdará algo em torno de 43% do eleitorado, índice não desprezível num país como a Itália, que nas últimas décadas assistiu a um crescimento vigoroso da direita (abertamente fascista, ou não) e a uma igualmente vigorosa fragmentação da esquerda. O PCI, herdeiro de muitas tradições democráticas e reformistas, não conseguiu dar origem a uma organização política forte e estável. O Partido Democrático (PD), sua criação atual, ainda enfrenta dificuldades para decolar. A Rifondazione Comunista, que com ele rompeu em nome de uma esquerda revolucionária em 1991, nunca chegou a ter peso expressivo, e para complicar se fracionou no início de 2009.

    O novo partido de direita nasce com a intenção de se desfazer das sombras do fascismo que sobre ele ainda pesam. Afinal, a Aliança Nacional originou-se do ventre mesmo do Movimento Social Italiano (MSI), fundado em 1946 com a pretensão de manter viva a chama do movimento derrotado com a deposição e a morte de Mussolini, ao final da segunda grande guerra. Foi formalmente constituída em 1993 e com o nome de MSI-AN disputou as eleições de 1994 já sob a direção de Fini e em aliança com Força Itália.

    Desde então, Fini procurou construir para a AN uma imagem progressivamente distanciada do fascismo, de modo a inseri-la no cenário político italiano como expressão de uma direita conservadora mas democrática, ou seja, que aceita as regras do jogo e rejeita o extremismo reacionário e violento de antes. Com o novo partido agora criado, dá mais um passo nesta direção.

    Não se trata de uma novidade qualquer, mas de um fato que merece análise e reflexão. Terá ele impacto sobre as diferentes expressões da direita nos diferentes países do mundo? Qual peso real terá na democracia italiana? Como estão reagindo a ele as organizações de esquerda? O que esperar dos desdobramentos?

    Posto diante destas questões em uma entrevista concedida ao jornal comunista Liberazione no último dia 25 de março de 2009, o professor Guido Liguori – da Universidade da Calábria e vice-presidente da International Gramsci Society-IGS – buscou partir de uma síntese que iluminasse o conjunto e captasse o significado mesmo do fato:

    “Antes de tudo, é preciso dizer que tinha razão quem levou a sério a mudança que nos últimos anos foi empreendida pela direita italiana. Se é verdade que Berlusconi ‘comprou’ a direita italiana do mesmo modo que procura comprar a democracia italiana, é de fato surpreendente como a direita se deixou absorver pelo novo partido sem se ferir ou se dividir. Trata-se de mais um grande exemplo de transformismo italiano. Evidentemente, tudo isso foi possível a partir da adesão da direita ao neoliberalismo, ocorrida no último decênio. Mas também é verdade que existem elementos muito inquietantes no ‘berlusconismo’ que explicam como as coisas chegaram a este ponto”.

    Na entrevista, Liguori deteve-se com atenção na polêmica que vem acompanhando a tentativa de conversão da direita italiana: ainda faz sentido manter vivo o antifascismo ou o melhor é virar a página e seguir em frente?

    Liguori é um estudioso de Gramsci. Dele, pode-se ler em português Roteiros para Gramsci (Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2007). Sua entrevista a Liberazione nos ajuda entender a nova e tumultuada fase da política italiana. Ela está traduzida abaixo.



    É lícito pensar numa superação do antifascismo depois do desaparecimento da AN?

    Não, e por várias razões. Em primeiro lugar porque o fascismo é uma tendência recorrente na política moderna e assume várias feições. Não é por acaso que se deve falar de fascismos, mais que de fascismo. Alguns de seus traços mais inquietantes estão hoje em plena luz do dia na sociedade italiana: a intolerância com o estrangeiro, o racismo latente, o personalismo autoritário traduzido em ‘liderismo’ populista, aspecto da política que, sob formas diversas, infelizmente também contagiou a esquerda. Deve-se mencionar ainda a construção frenética do consenso, que hoje se beneficia do protagonismo dos mass media. E mais: o irracionalismo vitalista, a divisão em bandos, em tribos (nos estádios de futebol, pelas ruas), o desejo de fazer justiça com as próprias mãos, mediante o uso de porretes e cassetetes, a torto e a direito (às vezes inclusive de modo legal, como ocorre com certas rondas policiais noturnas, que fazem recordar as ‘esquadras’ fascistas). Vão na mesma direção o ataque insensato contra a universidade e a escola, o desprezo pelos professores, pelos intelectuais, pela cultura não imediatamente ligada à produção. Contra tudo isso, ser e proclamar-se antifascista ainda é uma barreira inteiramente válida.

    O antifascismo também tem sentido porque é um elemento que integra e sustenta a Constituição italiana, que vive continuamente sob ataque. O que você pensa disso?

    Estou de acordo. Um outro ótimo motivo para proclamar-se antifascista é precisamente a defesa da Constituição democrática, que tem seu principal alicerce no nexo entre vocação antifascista e vontade de instituir uma República baseada no trabalho. Se tirarmos um destes elementos, desmontamos tudo. E se a Constituição de 1948 é menosprezada, o risco de darmos um enorme passo para trás é mais real do que nunca.

    O filósofo Niccola Tranfaglia, numa entrevista que publicamos dias atrás, salientou o paradoxo de um Fini que adere ao antifascismo e de muitos ex-seguidores do PCI – hoje Partido Democrático – que, ao contrário, falam do antifascismo com embaraço. Que está ocorrendo?

    Fini, como foi bem observado, disputa sua partida no longo prazo. Berlusconi gostaria de ser eterno, mas até mesmo os seus sabem que ele não estará disponível para sempre. Quanto ao PD, à parte os inúmeros erros e certas atitudes execráveis cometidas por alguns de seus líderes, penso que deva ser pressionado e posto diante de suas próprias contradições: não pode deixar de se proclamar antifascista, boa parte da sua base não aceitaria isso.

    Os chefões da AN, ao contrário, parecem mais dóceis...

    Há muitas diferenças entre eles. Fini tem em mente a grande direita francesa e deu passos significativos em direção ao ‘gaullismo’. Outros pareciam mais conservadores mas se submeteram completamente aos apelos do poder. É preciso ver como reagirá a base militante da AN. Pode ocorrer que depois de algum tempo uma parte reflua para a direita mais tradicional e militante. Mas há outro perigo, ainda mais grave: que a cultura fascista ou fascistóide acabe por permear em sentido autoritário o novo partido de Berlusconi, marginalizando os componentes que se dizem liberais. Aqui, precisamos ser muito capazes de ‘fazer política’, de atentar para todos os sinais de desagregação do bloco berlusconiano, proceder com o método da ‘análise diferenciada’, sem misturar caoticamente coisas que são distintas e diferentes. Ainda precisamos recordar que Gramsci quis se encontrar com Gabriele D’Annunzio [literato e político direitista italiano] para impedir a aliança de seus seguidores com os fascistas?

    A vulgata anti-século XX que não poupou sequer a esquerda parece hoje se articular com o desejo de que não se ouça mais falar de antifascismo. O que você pensa disso?

    É um risco real. Quando, à esquerda e mesmo entre esquerdas diversas, não se faz outra coisa que falar de ‘novidade’ ou de ‘inovação’, o risco é o de que se perca de vista a grande lição da história e as nossas raízes históricas. Não devemos evidentemente ser dogmáticos e livrescos, precisamos fazer sempre a ‘análise concreta da situação concreta’, como se dizia. Mas ter obsessão pela novidade pode significar que se está renunciando às próprias coordenadas interpretativas da realidade e se submetendo à hegemonia do adversário. O século XX ainda está sob muitos aspectos conosco, mesmo que os dias atuais sejam plenos de fatos novos e parcialmente novos que precisam ser compreendidos sem antolhos.

     
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