Jornal do BrasilWander Lourenço de Oliveira
Excelentíssima presidenta Dilma Rousseff, informo que não anseio por interferir em sua política educacional; todavia, conquanto por aproximadamente duas décadas exerça o árduo ofício do magistério – o que, por experiência, me outorgaria o direito de participar do debate –, solicito que estes escritos se resumam a um diálogo referente ao percurso das ideias que abarcam a realidade estudantil brasileira, que se direciona ao ensino superior. Por intermédio desta missiva, subscrevo-me para afirmar que pretendo discorrer a respeito da aprovação de um justo desagravo de cunho histórico, no tocante às cotas acadêmicas reservadas para negros, pardos, indígenas, deficientes físicos e alunos oriundos das escolas públicas nas universidades federais, sancionado, por alegórica unanimidade, pelo Supremo Tribunal Federal.
Todavia, quiçá não seja inoportuno ressaltar que, a partir de dados da assessoria de imprensa do Ministério da Educação, com a implantação deste sistema de inclusão, as instituições de ensino superior obterão plena autonomia para decidir se adotam ou não a medida de inserção social pelo viés da matrícula universitária. Por outro lado, paradoxalmente, dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que metade da população brasileira não possui o ensino fundamental completo; ou seja, cerca de cem milhões de brasileiros não conseguiram concluir os primeiros anos da educação básica. Prezada presidenta Dilma Rousseff, eis que aflora um abismo que se avulta ao patamar de sordidez congênita que, decerto, laureará os etnicamente desassistidos que não completaram o período inicial de estudo, com idênticas técnicas utilizadas pelos torturadores acobertados pela ditadura militar que, decerto, serão interceptados pela Comissão da Verdade.
A diferença crucial dos carcarás de farda e metralhadora das décadas de 60 e 70 e os abutres de colarinho branco detentores das chaves dos cofres públicos vem a ser que, enquanto uns se utilizaram dos instrumentos de opressão — o cárcere, o pau de arara e o choque elétrico —, outros se apropriaram das ferramentas do direito à aprendizagem: a capacidade de raciocínio crítico e a liberdade de pensamento. Aos incautos herdeiros deste massacre cerebral não coube sequer o ensejo da identificação dos invisíveis algozes, que lhes afanaram não só a distinção através de um certificado ou diploma como, também, a perspectiva de um digno percurso pautado por padrões mínimos de exigência intelectual. São abissais criaturas que se desequilibram por sobre os rastros sociológicos daqueles desterrados em seu próprio território, conforme diagnosticara Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil. O exílio que impuseram não lhes consentiu sequer as cicatrizes da nostalgia, simbolizada pela memória fincada na imagem da palmeira e do sabiá, por serem degredados de si mesmos, sem anistia ou indenização reparatória pela perseguição política.
Destarte, será que a antológica reparação de âmbito educativo por detrás das cotas quase étnicas irá ignorar a repugnante parcela da sociedade desprovida dos mais primordiais recursos de assimilação cognitiva? Se não houve investimento básico para que a população estudantil se habilitasse ao ensino médio, como se acenará com a resolução da dívida com aqueles elementos escravizados, analfabetos, empobrecidos e afins, quanto ao período que precede a incursão universitária? A resposta se coaduna com este grande faz de conta que se tornou a educação pública nacional, iniciado pelo era uma vez de alguns governantes que, sem cerimônia, por condenáveis práticas ilícitas, impunemente, se apoderam da mais valorosa relíquia humana: a formação de uma reflexão crítica pelo viés da educação.
Se a dor da ignorância incomodasse tanto quanto a fome e a sede, o homem reivindicaria o dever de se educar e de se instruir, com um eficaz instrumento democrático – o voto – a afiançar-lhe a dignidade de expressão. Verdade seja dita que, aos inglórios torturados da educação, não restou possibilidade de utopia ou governo; porquanto, as quimeras foram castradas pelos malfeitores que jamais serão identificados de vez que, flibusteiros do patrimônio humano deste Éden brasilis, carpiram a escolaridade destes indivíduos miscigenados ou não, qual Iracemas, Jecas Tatus, Macunaímas, Macabéas e Joões Grilos a reproduzirem, de cócoras, o refrão patriótico: “ – Ai!... Que preguiça!...”.
* Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa).