Um poder de costas para o país
Artigo de Marco Antonio Villa, publicado no jornal O Globo
A Justiça no Brasil vai mal, muito mal. Porém, de acordo com o relatório de atividades do Supremo Tribunal Federal de 2010, tudo vai muito bem. Nas 80 páginas - parte delas em branco - recheadas de fotografias (como uma revista de consultório médico), gráficos coloridos e frases vazias, o leitor fica com a impressão que o STF é um exemplo de eficiência, presteza e defesa da cidadania. Neste terreno de enganos, ficamos sabendo que um dos gabinetes (que tem milhares de processos parados, aguardando encaminhamento) recebeu "pela excelência dos serviços prestados" o certificado ISO 9001. E há até informações futebolísticas: o relatório informa que o ministro Marco Aurélio é flamenguista.
A leitura do documento é chocante. Descreve até uma diplomacia judiciária para justificar os passeios dos ministros à Europa e aos Estados Unidos. Ou, como prefere o relatório, as viagens possibilitaram "uma proveitosa troca de opiniões sobre o trabalho cotidiano." Custosas, muito custosas, estas trocas de opiniões. Pena que a diplomacia judiciária não é exercida internamente. Pena. Basta citar o assassinato da juíza Patrícia Acioli, de São Gonçalo. Nenhum ministro do STF, muito menos o seu presidente, foi ao velório ou ao enterro. Sequer foi feita uma declaração formal em nome da instituição. Nada. Silêncio absoluto. Por que? E a triste ironia: a juíza foi assassinada em 11 de agosto, data comemorativa do nascimento dos cursos jurídicos no Brasil.
Mas, se o STF se omitiu sobre o cruel assassinato da juíza, o mesmo não o fez quando o assunto foi o aumento salarial do Judiciário. Seu presidente, Cézar Peluso, ocupou seu tempo nas últimas semanas defendendo - como um líder sindical de toga - o abusivo aumento salarial para o Judiciário Federal. Considera ético e moral coagir o Executivo a aumentar as despesas em R$8,3 bilhões.
A proposta do aumento salarial é um escárnio. É um prêmio à paralisia do STF, onde processos chegam a permanecer décadas sem qualquer decisão. A lentidão decisória do Supremo não pode ser imputada à falta de funcionários. De acordo com os dados disponibilizados, o tribunal tem 1.096 cargos efetivos e mais 578 cargos comissionados. Portanto, são 1.674 funcionários, isto somente para um tribunal com 11 juízes. Mas, também de acordo com dados fornecidos pelo próprio STF, 1.148 postos de trabalho são terceirizados, perfazendo um total de 2.822 funcionários. Assim, o tribunal tem a incrível média de 256 funcionários por ministro. Ficam no ar várias perguntas: como abrigar os quase 3 mil funcionários no prédio-sede e nos anexos? Cabe todo mundo? Ou será preciso aumentar os salários com algum adicional de insalubridade?
Causa estupor o número de seguranças entre os funcionários terceirizados. São 435! O leitor não se enganou: são 435. Nem na Casa Branca tem tanto segurança. Será que o STF está sendo ameaçado e não sabemos? Parte destes vigilantes é de seguranças pessoais de ministros. Só Cézar Peluso tem 9 homens para protegê-lo em São Paulo (fora os de Brasília). Não é uma exceção: Ricardo Lewandovski tem 8 exercendo a mesma função em São Paulo.
Mas os números continuam impressionando. Somente entre as funcionárias terceirizadas, estão registradas 239 recepcionistas. Com toda a certeza, é o tribunal que melhor recebe as pessoas em todo mundo. Será que são necessárias mais de duas centenas de recepcionistas para o STF cumprir suas tarefas rotineiras? Não é mais um abuso? Ah, abuso é que não falta naquela Corte. Só de assistência médica e odontológica o tribunal gastou em 2010, R$16 milhões. O orçamento total do STF foi de R$518 milhões, dos quais R$315 milhões somente para o pagamento de salários.
Falando em relatório, chama a atenção o número de fotografias onde está presente Cézar Peluso. No momento da leitura recordei o comentário de Nélson Rodrigues sobre Pedro Bloch. O motivo foi uma entrevista para a revista "Manchete". O maior teatrólogo brasileiro ironizou o colega: "Ninguém ama tanto Pedro Bloch como o próprio Pedro Bloch." Peluso é o Bloch da vez. Deve gostar muito de si mesmo. São 12 fotos, parte delas de página inteira. Os outros ministros aparecem em uma ou duas fotos. Ele, não. Reservou para si uma dúzia de fotos, a última cercado por crianças. A egolatria chega ao ponto de, ao apresentar a página do STF na intranet, também ter reproduzida uma foto sua acompanhada de uma frase (irônica?) destacando que o "a experiência do Judiciário brasileiro tem importância mundial".
No relatório já citado, o ministro Peluso escreveu algumas linhas, logo na introdução, explicando a importância das atividades do tribunal. E concluiu, numa linguagem confusa, que "a sociedade confia na Corte Suprema de seu País. Fazer melhor, a cada dia, ainda que em pequenos mas significativos passos, é nossa responsabilidade, nosso dever e nosso empenho permanente". Se Bussunda estivesse vivo poderia retrucar com aquele bordão inesquecível: "Fala sério, ministro!"
As mazelas do STF têm raízes na crise das instituições da jovem democracia brasileira. Se os três Poderes da República têm sérios problemas de funcionamento, é inegável que o Judiciário é o pior deles. E deveria ser o mais importante. Ninguém entende o seu funcionamento. É lento e caro. Seus membros buscam privilégios, e não a austeridade. Confundem independência entre os poderes com autonomia para fazer o que bem entendem. Estão de costas para o país. No fundo, desprezam as insistentes cobranças por justiça. Consideram uma intromissão.
Marco Antonio Villa é historiador e professor da Universidade Federal de São Carlos
Em busca de um lugar no mundo
Uma tendência se afirma no mundo atual. O Brasil tornou-se protagonista importante do sistema internacional. A imagem do país deixou de ser a do café, do futebol-espetáculo, do samba e da bossa-nova, do território imenso e das riquezas naturais. Há, é verdade, a corrupção que se mantém, os bolsões de miséria que ainda persistem, as falhas grotescas de infraestrutura, mas também se sabe que a sociedade civil demonstra algum poder de reação e que soluções vêm sendo tentadas de forma sistemática pelos governos. O país é visto hoje mais por seus acertos que pelos erros.Naquilo que se poderia chamar de opinião pública internacional, o Brasil é tratado como uma economia industrial expressiva, dotada de um mercado interno invejável, uma sociedade que se esforça para reduzir a desigualdade e retirar milhões de pessoas da pobreza extrema, e que está conseguindo avançar nesta direção sem retroceder em termos políticos, ao contrário, exibindo um sistema democrático que se consolida.Foi esse um dos pontos de sustentação do belo discurso com que a presidente Dilma Rousseff abriu a 66ª Assembleia Geral da ONU, quarta-feira passada, dia 21/09.O fato mais importante a explicar a nova posição relativa do Brasil está associado às modificações que afetam a estrutura internacional. O mundo mudou, vive outra fase, e clama por novas ideias e atitudes no terreno das relações internacionais. Um novo tipo de cooperação, reforma das instituições financeiras, ajustes no Conselho de Segurança, coragem e ousadia – é o que se espera das lideranças mundiais. O desafio posto pela crise, que é econômica, de governança e de coordenação, disse a presidente, “é substituir teorias defasadas, de um mundo velho, por novas formulações para um mundo novo”.As grandes potências não podem mais controlar o sistema, nem funcionar como garantidores de um padrão de ordem internacional. Já não há a unipolaridade que pareceu se instituir no mundo depois da Queda do Muro em 1989. Mas a “multipolaridade” (União Europeia, Japão, BRICS) é somente um esboço, graças aos diversos problemas específicos que cada um destes polos apresenta. Ainda que os EUA continuem a ser poderosos, não somente estão enfraquecidos como também afirmam seu poderio num mundo povoado por outras potências importantes, países emergentes, redes sociais, fluxos vários e inúmeros atores não-governamentais, num contexto econômico em que os mercados ficaram mais fortes do que a regulação política empreendida pelos Estados.O mundo se tornou “pós-americano”, tal como sugerido pelo cientista político Fareed Zakaria: um sistema internacional híbrido, mais democrático, mais dinâmico, mais aberto e conectado, no qual os EUA declinam economicamente e perdem força relativa. Um mundo com “muitas potências e uma superpotência”, segundo os chineses. No qual todos agem e pesam: o centro e o “resto”, as grandes, as médias e as pequenas potências, as regiões, os Estados e os atores não-estatais, os lugares e as pessoas. Todos, de certo modo, ganharam poder. A hierarquia, a centralização e o controle passaram a ser minados ou subvertidos exclusivamente em decorrência da lógica das coisas. Todos se tornaram dependentes uns dos outros.A crise econômica, a falta de lideranças mundiais e as indefinições quanto ao futuro das grandes potências fizeram com que os países emergentes ganhassem projeção política e econômica. Vários deles estão a aproveitar a situação para melhorar sua distribuição de renda, aperfeiçoar sua gestão econômico-financeira e crescer comercialmente.O Brasil, com isso, tornou-se uma espécie de enigma, cujos movimentos são mais difíceis de prever e mais desenvoltos. Seus passos têm maior audácia, seja no âmbito comercial, seja em termos de tomada de posições e alinhamentos internacionais. Praticando um pragmatismo temperado, complexo e necessário e pelo qual paga algum preço, surge com força em áreas que antes lhe estavam vedadas.Um dos mais expressivos indicadores da envergadura adquirida pelo país é sua participação ativa naquele misto de associação e pacto que se tem convencionado chamar de BRICS, o bloco mais ou menos informal integrado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Não se trata de uma união circunstancial, mas de uma operação que revela o progressivo deslocamento de poder na cena internacional.A presença brasileira entre os BRICS está impulsionada pelos resultados obtidos nas duas últimas décadas, que tornaram o país mais maduro em termos econômicos e fiscais-financeiros, em condições portanto de projetar um ciclo mais virtuoso de desenvolvimento. A melhoria que se observa na distribuição de renda e a estabilidade monetária indicam o legado positivo da política econômica e das políticas sociais que vêm sendo empregadas quase sem rupturas desde a metade dos anos de 1990.O Brasil poderá ganhar força e relevância no mundo de diferentes maneiras. Uma delas passa pela construção de barreiras que neutralizem os efeitos deletérios da economia internacional e da crise econômico-financeira das grandes potências. Também será decisivo o modo como entrará no novo mundo: com que produtos, com que tecnologia, com qual projeto de sociedade. Mas também é razoável supor que boa parte de seu sucesso futuro dependerá da capacidade que tiver de praticar, com maior vigor, políticas de integração regional que se ponham num patamar mais amplo do que o intercâmbio comercial, ou seja, que aproximem de fato povos, regiões, sociedades e culturas e se sintonizem com as particularidades dos diferentes países.Trata-se de uma ênfase inteiramente respaldada pela Constituição e que encontra a mais viva sustentação no núcleo da política externa, que continua a seguir, fiel às suas melhores tradições, uma perspectiva plural, que valoriza a paz, o multilateralismo, a abrangência e a abertura para o mundo. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 24/09/2011, p. A2]
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