A Itália de Berlusconi, entre o passado e o futuro

A regra é sábia e deve ser usada com frequência: certos eventos políticos estranhos, por vezes escabrosos, somente podem ser compreendidos quando mergulhados na história das sociedades em que ocorrem. É nas águas profundas da vida social que se escondem as maiores verdades.
Não fosse assim, seria difícil compreender, por exemplo, o que leva um país como a Itália – terra de tradições grandiosas, de história e cultura riquíssimas, de pensadores, políticos e humanistas da estatura de Maquiavel, Gramsci e Bobbio, de partidos como o PCI – a ser governado por Silvio Berlusconi. A “grande Itália” parece paralisada pela “pequena Itália”, das máfias e do fascismo, que se move e mostra sua força.
Grosseiro, exibido, bufão, fascista de estilo e convicção, Berlusconi não é certamente um desconhecido. Preside desde 2008 o Conselho de Ministros, mas influi no Estado há pelo menos duas décadas. Megaempresário das telecomunicações, é um milionário poderoso. Controla boa parte da mídia italiana.
Fundou em 1993 o partido Forza Italia, que disseminou uma mixórdia de “teses” em defesa dos valores tradicionais, da liberdade pessoal, da identidade nacional contra os imigrantes, do combate à corrupção, da redução do déficit público, numa mistura oportunista de neoliberalismo e fascismo. Impulsionado pela televisão e abusando do imediatismo e da demagogia, ganhou espaço entre pequenos e médios empresários, profissionais liberais, gente das cidadezinhas e das classes médias urbanas. Venceu as eleições de 1994 e governou com uma aliança abertamente de direita (neofascistas do MSI, separatistas da Liga Norte, correntes cristãs). Demitiu-se sete meses depois, mas tornou-se líder e fator de unificação das forças mais direitistas e conservadoras do país.
Combateu encarniçadamente os governos Amato, D’Alema e Prodi, de centro-esquerda, entre 1996 e 2001. Começou então a acumular denúncias e processos legais: conluio com a máfia, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, participação em homicídio, corrupção e suborno de policiais, financiamento ilegal de partidos. Não chegou a ser condenado, mas as acusações foram compondo sua persona.
Voltou à presidência do Conselho de Ministros em 2001. Foi derrotado por Romano Prodi em 2006, mas retornou ao posto dois anos depois. Forza Italia já havia então virado Povo da Liberdade.
O populismo histriônico e autoritário de Berlusconi, seu poderio midiático, os interesses econômicos que representa e o sistemático desprezo que nutre pelos ritos, pela Constituição e pelas instituições políticas italianas são uma ameaça permanente à democracia. A Itália decaiu muito no período em que ele tem dado as cartas. A estagnação econômica, o desemprego, o empobrecimento dos trabalhadores são hoje evidentes. A política está corroída pela compra de parlamentares e magistrados, pelo cerceamento das oposições, pelo monopólio da informação. O sistema democrático sangra por todos os poros.
Berlusconi cresceu impulsionado pelo uomo qualunque, o italiano médio, fascinado pelo poder e com certo cafajestismo intrínseco, como observou Geraldo Di Giovanni, da Unicamp. A “pequena Itália” – com sua pequena política, seu localismo provinciano, sua resistência à vida cívica superior e ao Estado democrático – tem lhe fornecido bases e oxigênio. O Cavaliere é uma espécie de alterego desse universo de italianos, escreveu o professor José Claudio Berghella: “introduziu no Estado italiano um modo camorrístico de fazer política e estruturar instituições”.
Sua ascensão, porém, não teria acontecido sem o esfacelamento ético-político e cultural da esquerda italiana, em particular a de extração comunista, que hoje, desgastada intelectual e organizacionalmente, não é sequer sombra de seu passado. Tem baixa competência operacional, não consegue se unir nem definir um rumo programático. O Partido Democrático, seu maior subproduto, tem sido incapaz de atuar com vigor, coerência e credibilidade. Os diversos grupos que florescem à sua esquerda, menos ainda.
Berlusconi também foi auxiliado pela emergência da “vida líquida” na Itália, pelo capitalismo globalizado e pela disseminação da cultura do espetáculo, que contribuíram para desorganizar as forças do trabalho, minar os partidos políticos e embaralhar a relação entre representantes e representados.
Trata-se de um político pequeno, sem qualquer traço de estadista. Seria uma figura entre o folclórico e o patético, que passaria despercebida não fosse a irrupção em praça pública de suas taras e perversões privadas. Como escreveu Sérgio Augusto no Aliás (20/02/2011), o Cavaliere “abusou do poder, do fisco, da propriedade privada, da coisa pública, do sistema bancário, mas só depois que abusou do sexo virou um caso de polícia promissor”.
Acossado por denúncias e revelações sórdidas, Berlusconi está sendo mais uma vez levado aos tribunais, agora por abuso de poder, extorsão e prostituição de menor (a marroquina Karima “Ruby” El Mahrug). Declarou que não está preocupado, mas não pôde permanecer indiferente nem à fixação de seu julgamento para o dia 6 de abril, nem ao protesto de centenas de milhares de pessoas que saíram às ruas de todo o país, em 13 de fevereiro, para exigir sua renúncia e sua condenação em nome de "mais respeito pela liberdade e pelos direitos das mulheres". Acusou-as de subversivas a serviço da esquerda, valendo-se de um surradíssimo chavão antidemocrático.
Agora é saber como o futuro mostrará sua face. As reservas democráticas do país podem estar adormecidas e desorganizadas, mas pulsam a todo momento. A sociedade civil mostrou força nas manifestações de rua. Poderá crescer com isso e ajudar a que as oposições democráticas e de esquerda saiam do marasmo, acertem o passo e façam algo para projetar a “grande Itália” no lugar que merece ocupar. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/02/2011, p. A2).
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sugestão de Jean Scharlau
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O IBGE explicado aos juros-lovers

Menos de 24 horas depois de o BC elevar a taxa de juro para 11,75% -- medida profilática para desaquecer a economia e conter ‘pressões inflacionárias' decorrentes do descompasso entre oferta e demanda, explicam os consultores dos mercados financeiros -- o IBGE divulgou dados do PIB de 2010. O confronto entre os sinais emitidos pela economia real e a decisão do BC deveria inspirar, no mínimo, alguma reflexão em círculos saltitantes, dentro e fora do governo, unidos pela ciranda-cirandinha do ‘corta-corta'. Vejamos:

a) o PIB brasileiro cresceu 7,5% no ano passado em relação a 2009;

b) a retomada em 2010, todavia, não se mostrou apenas vigorosa na recuperação do tempo perdido: ela foi sobretudo notável na sua consistência;

c) o crescimento do PIB foi puxado, com folgada dianteira, pela formação bruta de capital que registrou um crescimento histórico de 21,8%;

d) mas foi principalmente a produção de máquinas e equipamentos que impulsionou esse salto na agregação de capacidade produtiva: o avanço nesse segmento atingiu 30,5% em 2010 (havia caído 13,1% no ano anterior);

e) sim, a expansão do consumo também foi robusta. Puxada por ganhos reais de salário e maior disponibilidade de crédito, subiu 7% no ano. As grandezas, porém, são eloquentes: o investimento em estruturas e máquinas para promover a ampliação da oferta está crescendo a uma velocidade três vezes superior à da demanda corrente.

Diante desse desenho, o que faz o jogral ortodoxo? Esquece-o para destacar os 'desequilíbrios' observados no último trimestre de 2010, quando, de fato, o consumo cresceu quatro vezes mais que a média da economia e a taxa de investimento retrocedeu. Nenhuma chance à possibilidade de ser um hiato em que o entusiasmo natalino do consumidor se descolou do freio empresarial, compreensível este, à véspera de um novo governo. Não. Vaticina-se o caos, somente mitigável à base de longa e virulenta dieta de 'pão e água', leia-se, menos investimentos públicos, mais juros. Assim se torna uma profecia auto-realizável.
Vale a pena ler também O malocismo avança?, de Rodrigo Vianna.
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Você é o trânsito

Tu não tá preso no trânsito.
Tu é o trânsito.
Te solta desta coleira
Pedala

Copenhagenize via Débora
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