O prefeito de São Paulo a ser eleito em 2008 estará chamado, como o foram todos os seus antecessores, a governar uma cidade que é um enigma a ser decifrado e uma potência a ser controlada. Se desejar inscrever seu nome na história, terá de ir além de rotinas e procedimentos-padrão, ser mais que administrador, coordenar mais que comandar.
Trata-se de algo universal. Estima-se que mais de 50% da população mundial vivam em cidades. Elas crescem por toda parte, transbordam seus centros e espalham-se pelas periferias, desafiadoras. Impõem-se como arranjos implacáveis, que “civilizam” sem piedade, redefinem perfis e padrões, sufocam outros modos de ser. Todas as grandes decisões políticas e culturais são tomadas em cidades e estão nelas os principais núcleos geradores de vida moderna.
Vivemos sempre mais em cidades, mas elas são cada vez menos polis. Continuam a nos seduzir, mas não mais nos concedem um estilo de vida desejável. As cidades do nosso tempo estão se convertendo em amontoados de pessoas e não conseguem fornecer, a seus moradores, condições de usufruir as vantagens da aglomeração: o encontro, a diversidade, o aprendizado da diferença e do respeito pelo outro, a luta coletiva. Em muitos momentos, assemelham-se a praças de guerra, teatro de batalhas inglórias, de um corpo-a-corpo travado com armas que vão da faca e do revólver à agressão verbal, à chantagem emocional, à ausência de cortesia e delicadeza, à indiferença. Massas de excluídos, sem-teto e desempregados perambulam quase a esmo, em meio a “incluídos” fechados em si e carentes de uma idéia de futuro. São Paulo não é exceção.
São assombrosas as dificuldades para que se reformem as cidades. A política só se ocupa delas como objeto de gestão, não de convívio, mais como espaço de mercados e automóveis que de pessoas. O planejamento urbano já não dispõe de força persuasiva e legitimidade. Está sendo subvertido pela dinâmica do capitalismo global e boicotado pelos mercados. Os interesses digladiam sem projetos e consensos. As cidades parecem à deriva, como se não conseguissem ser alcançadas pela razão política democrática e republicana. Tornam-se alvo fácil da razão técnica exacerbada, de administradores focados em controle e na construção compulsiva de obras e factóides.
É verdade que novas modalidades de gestão despontam no horizonte, anunciando articulações de novo tipo entre técnica e política, decisão e participação, gestão e cidadania. É verdade, também, que a rotatividade política propicia a chegada de novas pessoas e idéias ao governo das cidades. Os próprios moradores movimentam-se sempre, ativando a reinvenção urbana. E as tecnologias da informação ajudam a impulsionar redes de comunicação e cooperação que se colam às utopias em gestação.
Não é suficiente.
Como tornar sustentáveis nossas cidades e impedir que suas toxinas prejudiquem seus habitantes? Que fazer para livrá-las da racionalidade instrumental do poder e da técnica e abri-las à sensibilidade política, ao prazer estético, ao calor humano da democracia? Neste mundo de mercados escancarados, interessa pouco a cidade competitiva e funcional, produtivista e repressiva. Para vivermos e convivermos com dignidade, precisamos de cidades agradáveis, capazes de expressar seus encantos, proteger e promover seus habitantes. Cidades seguras: não a cidade policiada, que veta a vida noturna ou o andar distraído, mas a cidade aberta, dialógica, de todos e para todos, que se auto-organiza.
São Paulo cresceu desordenadamente, com pressa errática. Foi sendo arrumada meio ao acaso, “planejada” a partir de óticas imperfeitas. Tornou-se uma cidade de bairros inventados, de avenidas para automóveis, de poucas praças, em que as antigas edificações são destruídas como coisas velhas, descaracterizadas ou largadas à especulação. Uma cidade de máquinas e negócios, mais que de pessoas, onde se circula e se caminha com dificuldade, respirando mal e sem tempo de olhar a paisagem ou os outros.
Mas é absurdo combater as cidades, desprezá-las ou fugir delas. São Paulo nos perturba e incomoda, mas também nos fornece condições para imaginar formas superiores de convivência e luta pela vida. Não deveríamos temê-la e sim aproveitá-la melhor. É insensato cogitar do recuo a comunidades ideais que negariam os males da modernização e realizariam o desejo de que se estabelecessem relações pessoais intensas, repletas de solidariedade, paz e harmonia.
A idéia de uma cidade sem problemas, conflitos e ruído social é uma ficção descolada da vida contemporânea. Paralisa, em vez de libertar. Cidades não são arranjos abstratos. Nascem do dia-a-dia coletivo, da história e da cultura enraizada, da surpresa e do inesperado, não do planejamento rígido, desejoso de substituir a face naturalmente tensa da cidade por uma harmonia de prancheta. Seu melhor motor é a democracia participativa organizada, impregnada de vida pública e diferenciação.
Quando olhamos São Paulo com atenção, descobrimos que por sob a feiúra se ocultam muitas belezas, por sob o caos há ordem, por sob a desorientação geral pulsam projetos de destino. Quando vamos além das aparências, vemos uma cidade de pessoas que constroem variadas formas de convivência e cultura, que lutam por uma vida melhor e querem governos melhores, capazes de escutá-las.
São Paulo é apenas aquilo que precisamos redescobrir a cada dia: uma cidade de carne e osso, verde e cimento, máquinas e pessoas, ordem e caos. E é nela como construção coletiva, com suas virtudes e contradições, que devemos pensar para agir. Se descobrirmos como politizá-la, organizá-la democraticamente, enchê-la de cidadania e cultura, se soubermos em suma urbanizá-la de modo pleno, teremos o futuro.
Que os eleitores e o próximo prefeito, ou prefeita, procurem assimilar essas expectativas. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 25/10/2008, p. A2]