Gente ingrata

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Administradores e políticos





Ambrogio Lorenzetti (c. 1290 - c. 1348). Alegoria do Bom Governo

Ainda que se deva reconhecer a persistência das cenas hilárias de sempre, dos personagens improváveis e das promessas surrealistas, invariavelmente presentes em todas as eleições, dá para admitir que melhoraram o perfil e o desempenho dos candidatos a prefeito, ao menos nas grandes cidades do país, como é o caso de São Paulo.

Apoiados por especialistas em marketing e pesquisa de opinião, por estrategistas de comunicação e por um não-desprezível arsenal tecnológico, os candidatos estão se mostrando mais à altura dos cargos que almejam. Apresentam propostas concretas, buscam equacionar problemas, exibem informações e conhecimento específico, parecendo ter nas mãos as cidades que pretendem governar.

Até mesmo os partidos políticos, estes entes tão feridos em sua integridade, tão sem alma e espinha dorsal, saíram a campo em melhor forma. Posicionam-se com cautela diante de um eleitor mais informado e menos disposto a se entregar passivamente a qualquer um que lhe peça o voto. Não despejam palavrório inócuo sobre ele, nem o submetem a uma sobrecarga de pressões ideológicas. Não conseguiram aperfeiçoar substancialmente a seleção dos candidatos que integram suas listas para as Câmaras Municipais, mas esforçaram-se para cumprir este papel no que diz respeito aos que postulam o Executivo. Estão a revelar que algo se passa em seus bastidores, como se estivessem finalmente a sentir os sinais de mudança e insatisfação que há tempo têm sido emitidos pela vida social.

Elogios também para a cobertura jornalística, especialmente a da mídia escrita. Todos os grandes jornais do país estão se superando. Facilitam o contraste entre as candidaturas, mostram as frestas por onde passam as demandas da cidadania, explicam o funcionamento dos poderes políticos e dos órgãos de governo. Além disso, funcionam como excepcionais tribunas de debates, preenchendo o vazio de discussão democrática deixado pelas campanhas mais pirotécnicas dos tempos atuais. Um canal como o que começou a ser disponibilizado pelo portal Estadão.com.br pesa de modo expressivo na elevação da qualidade do processo eleitoral.

No entanto, apesar destes avanços, as eleições transcorrem como se fossem um fardo que os cidadãos precisam carregar. Não despertam paixão cívica ou maior interesse. Ainda que mais bem informado, o eleitor parece distante, indiferente, sem estabelecer empatia com candidatos ou partidos políticos. Numa comparação arriscada, seria possível dizer que se comporta como um condômino frente à necessidade de eleger o próximo síndico.

Sempre haverá quem pondere que as cidades são mesmo condomínios em escala ampliada, que os prefeitos devem cuidar delas como se fossem suas casas mas fazendo escolhas que beneficiem a todos, sem se preocupar em favorecer este ou aquele bairro, este ou aquele partido. Muitos pensam que governar cidades é um exercício mais técnico e administrativo que político, algo que se cumpre com sucesso quanto menos política nele existir.

Não é bem assim.

Primeiro de tudo, porque governar é sempre mais que administrar. Não significa somente cuidar da casa ou pôr os papéis em ordem. É mais que manutenção e empenho para fazer com que os sistemas funcionem, mais que sabedoria para escolher auxiliares ou utilizar as finanças públicas. Prefeitos não deveriam agir como gerentes, sobretudo porque sua tarefa não é simplesmente fazer a máquina andar e sim criar condições para que uma comunidade lute por uma vida melhor.

Gerentes administram, prefeitos governam. Mais que jogo de palavras, a frase sugere que prefeitos existem para coordenar processos abrangentes de tomada de decisões, que envolvem milhares ou milhões de pessoas, muitos interesses e expectativas. Devem lidar com correlações de forças complicadas e situações de alta complexidade, e em muitíssimos casos somente se saem bem se contarem com o apoio da população. Precisam deste apoio, aliás, desde logo, como do ar que respiram. E não podem obtê-lo se agirem como técnicos especializados em gestão e administração, pessoas talentosas em arrumar gavetas mas sem qualquer brilho particular, sem carisma, sem liderança e especialmente sem um projeto que mexa com a comunidade, desperte alguma paixão e facilite engajamentos.

Tudo isto é fazer política, não administrar. Mas é fazer grande política: agir com os olhos no Estado, na comunidade política, não nos próprios interesses ou nos pequenos negócios de intermediação e favor. É ir além da rotina.

Se uma população mantém com as eleições uma relação fria e distante, encarando-as mais como obrigação que como dever, não temos uma situação confortável. Temos na verdade um problema. Podemos examiná-lo lembrando que, no modo de vida atual, o eleitor é dispersivo e flutuante, não tem grupos consistentes de referência ou identidade fixa, nem causas claras ou vínculos coletivos fortes. Não interage com instituições políticas qualificadas para responder a suas demandas e às questões que mexem com sua existência e com sua cabeça. É atacado sem trégua pelo mercado, que o fisga e o enreda num verdadeiro frenesi consumista. Olha a política e o Estado com desconfiança, quem sabe com a mesma postura de compra-e-venda que está habituado a ter no mercado.

Não se trata portanto de culpar o eleitor. Partidos, estrategistas e candidatos deveriam enfrentar esta “despolitização”, em vez de se amoldar a ela. Adaptando-se, contribuem para reforçá-la. Quando se apresentam como técnicos e administradores competentes sem acenar com uma proposta de cidade – ou seja, de polis, comunidade política –, somente estão a prolongar uma situação que, no limite, esvaziará a vida de sentido público.

O processo eleitoral em curso fornece excelente oportunidade para que exceções amadureçam e comecem a alçar vôo. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/08/2008, p. A2].

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Entrevista de Carlos Latuff ao portal Fazendo Média.



Sala lotada, treze pessoas com a atenção totalmente voltada para o desenhista Carlos Latuff, três horas de conversa. Perto do aniversário de 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e de 15 anos da “Chacina da Candelária”, um dos desenhos de Latuff foi utilizado em outdoors na cidade do Rio de Janeiro. A iniciativa visava chamar a população para uma manifestação contra a violência policial. O governador considerou o desenho ofensivo e em quatro dias o outdoor foi recolhido. Para Latuff foi uma pequena vitória. É o que ele nos conta nessa entrevista histórica, a segunda que concede ao Fazendo Media impresso – republicada excepcionalmente aqui no fazendomedia.com.

Por Diego Novaes, Eduardo Sá, Fernanda Chaves, Gilka Resende, Leandro Uchoas, Lorena Bispo, Luana Bispo, Luis de Gonzaga, Marcelo Salles, Maubia Chaves, Raquel Junia, Sergio Santos e Tatiane Mendes.

Tem uma frase de maio de 68 que diz assim: “nunca mais volta a dormir aquele que uma vez abriu os olhos”. Quando é que você abriu os olhos?
Que frase bonita! Eu não sei, eu lembro que o processo se desencadeou com os Zapatistas mesmo [movimento Zapatista, do México]. Eu sempre tive um incômodo com a realidade que me cercava, mas eu nunca objetivei, eu tinha aquelas revoltas juvenis, aquela coisa de adolescente revoltado, aí depois que cresce baixa o fogo e vira yuppie, civiliza. Mas o golpe fatal foi na Palestina. Aliás, eu vou contar um negócio aqui que eu achei do caralho. Eu estava no computador e aí pipocou uma pessoa no meu MSN. Era a Laila de Rafa, em Gaza [Palestina] e abriu uma câmera. Ela passou toda a conversa com um sorriso de lado a lado. A mulher vive em Gaza, com bloqueio de comida, de medicamento, de combustível, de passagem física, de tudo, e a mulher sorriu à vontade porque estava me vendo. Eu pensei assim: ‘caralho, é como se você visse uma pessoa em Sarajevo com bomba caindo e a pessoa sorrindo porque está te vendo. Por quê, eu sou um homem bonito?’

Não, com certeza não.
(risos) É porque fazia diferença para ela e para as pessoas que ela conhece. Esse trabalho de cartunista fez tanta diferença para uma pessoa que mora em Gaza a ponto de ela esquecer onde ela está vivendo para ficar sorrindo só falando comigo. O que mais comove o palestino é uma pessoa que não é mulçumana, não é árabe, que mora longe, brasileiro, se colocar a favor do povo palestino.



Como foi que o seu desenho foi parar no outdoor aqui na cidade do Rio...
A princípio, eu e o Marcelo [Salles] conversamos muito sobre a produção de imagens que possam ser apropriadas pelo movimento social. Porque a intenção foi essa, a gente primeiro criou aquela imagem, discutiu e eu publiquei na internet e fiquei aguardando. A minha parte como produtor dessa imagem eu fiz, assumi o risco de fazer e assinar. Sempre quando produzo alguma coisa tenho esse pensamento de que esse desenho possa não ser circunscrito à internet ou a um jornal. Ele precisa ser copyleft [livre reprodução] e atingir um sem número de pessoas. Aí veio o representante do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente e falou que estava pensando em fazer um outdoor e usar um desenho meu. Eu falei: ‘Cara, eu já tenho um desenho pronto. Se não for pra pegar pesado nessa questão eu não vou fazer. Se for pra desenhar pombinha da paz, criancinhas alegres eu não vou fazer’.

Por que não?
Porque é babaquice, é o Viva Rio [ONG Viva Rio] fincar cruzinhas na praia, balãozinho vermelho... Isso aí não quer dizer porra nenhuma! Porque com isso você pede paz, mas não diz quem causa a guerra. É um troço vazio. E ele me perguntou o que é pegar pesado. Eu respondi: ‘é mostrar uma criança baleada, vítima dessa política, é mostrar sangue, violência, mas dentro de um contexto diferente desse que você vê no Rambo, no Tropa de Elite, entendeu? Um contexto nosso, a realidade como é de fato.’ Aí ele falou para eu mandar o desenho. Eu mandei e não me responderam nada, pensei que o desenho tinha sido vetado.

É bom dizer o que tem no desenho...
É um policial diante de uma mãe negra abraçada a uma criança morta, também negra e baleada no peito. O garoto tem o uniforme de colégio e um caderno caído no chão. O policial está ao lado com um fuzil que acabou de atirar, ainda com a fumacinha no cano, no fundo tem uma favela e do outro lado tem um caveirão distribuindo tiro pra todo lado.


O desenho censurado pelo governo Sérgio Cabral

Então eles preferiram esse desenho à pombinha da paz...
É, me deixou satisfeito o Conselho ter a coragem de bancar o desenho. Aí gerou toda aquela polêmica, o artigo de O Globo cita como uma imagem polêmica. Mas por quê? A realidade não é polêmica, a imagem é que é polêmica. Quando você mostra, choca; estranho, né? É a lógica da sociedade hipócrita e doente; tem certas coisas que a gente sabe que existem, mas não pode externar, não pode colocar numa imagem e mostrar.

Acho que é por causa da linguagem que alcança mais gente e é isso que incomoda...
Mas aquela imagem na verdade não é uma criação literária.

Por isso é que incomoda e teve toda essa reação deles.
Pois é. Por que polêmico se é um troço que todo mundo sabe que rola? Lembra aquela propaganda do Sprite “imagem não é nada, sede é tudo”? É exatamente o contrário, a imagem é tudo, a sede não é nada. A verdade não é nada, a imagem é que machuca e era isso mesmo que eu queria.

Você acha que foi alvo de censura?
Isso pra mim não é novidade nenhuma, a história mais recente foi aquela da camisa do Cauê no Pan [personagem criado para ser mascote dos Jogos Panamericanos no Rio. Latuff desenhou uma versão do Cauê com um fuzil na mão, representando a violência policial, e recebeu a visita da polícia em sua casa para explicar o desenho]. Você tem o fascismo clássico, o racismo clássico. Nós aqui na mesa temos duas meninas negras que podem até falar muito bem disso. Se eu, por exemplo, morar no Tennessee, o cara vai chegar na lata e falar ‘negra, fuck you negra!’, mostrando a camisa com o emblema da Ku Klux Klan. Nos Estados Unidos o negócio é descarado, na lata. Na África do Sul já era política de estado, tinha aquela coisa de colored people. No Brasil é um racismo cordial. Dizem: ‘Eu não sou racista, eu tenho um amigo que é preto. Eu não sou homofóbico, eu tenho um amigo que é viado’.

Ou então você é moreninho...
Moreninho. Essas historinhas que na verdade mascaram o racismo objetivo, mas ninguém chega e fala “eu sou racista”. O fascismo é assim também no Brasil, é cordial. Claro, se for na favela é diferente, é pé na porta e o caralho. Agora esse caso do outdoor, como foi feito por um Conselho do Estado e o cara que estava à frente é um desembargador [Siro Darlan] as coisas se resolvem na base do telefonema. Se fosse um regime fascista clássico, tacava fogo no outdoor, invadia a empresa e dava porrada em todo mundo. Aqui eles não vão entrar e quebrar tudo, eles dão um telefonema para o dono - como em Israel, quando colocaram no Centro de Mídia Independente uma ilustração minha, que era o Ariel Sharon fazendo a saudação nazista. A polícia não chutou a porta da empresa de internet, deu porrada em todo mundo e tirou o site do ar. O cara ligou para o dono e falou assim: ‘Se você não tirar o site do ar a gente te mata’. Aí as coisas se resolvem, sabe...

Qual o papel da polícia na manutenção da ordem capitalista, tanto na política de segurança do governo Sergio Cabral, no Rio, quanto em outros governos baseados no extermínio?
Eu tenho certeza que o Sérgio Cabral é um cara que tem formação, não é um cara idiota. Ele sabe direitinho sobre socialismo, sabe que esse problema, se é para ser resolvido de fato, vai ter que ser no âmago da questão, que é estrutural. Porque essa coisa de troca de tiro e partir para cima é enxugar gelo, ele sabe disso, mas ele sabe que não tem outra alternativa. Ele não quer e não vai solucionar o problema do capitalismo, ele não foi eleito para isso, então essas operações na verdade são pirotécnicas.

Eles não vão lá num banco da Suíça pegar o cara que está ganhando em cima do tráfico...
E também não vão a Brasília. Não vão pegar um juiz que está envolvido, não vão pegar graúdo, não vão pegar ninguém, porque aí vão atirar no próprio pé. Entra na questão sistêmica, ele não pode combater o sistema do qual ele saiu. É o Matrix, a gente vive as sensações, a de segurança é uma delas. O Josias Quintal, que foi o secretário de segurança aqui no Rio de Janeiro no governo Garotinho, deu uma declaração que eu nunca mais vou esquecer. Eles conseguiram um acordo com as Forças Armadas para colocar a Marinha nas ruas por certo período. Ele falou assim: ‘Eu estou muito satisfeito com esse convênio firmado com as Forças Armadas de colocar os soldados na rua porque isso dá à população a sensação de segurança’. É isso, não importa se existe a segurança, importa a sensação de segurança. Ele não vai dar segurança, porque para isso ele precisa atacar as questões sistêmicas e não tem condições de fazer isso.

E como a gente combate esse sistema?
Eu acho que o combate só quem pode dar é a esquerda, qualquer um que apresente uma solução fora da esquerda é maquiar o cadáver, é jogar perfume num monte de estrume. É melhorar o capitalismo, é novamente o discurso pós-moderno de que acabou a história, o muro caiu e não tem mais luta de classe, não tem mais esquerda e direita, é só o mercado que rege nossas vidas.

Você acredita na mudança do mundo?
Não, mas eu me comovo de ver como um povo pode ser resistente como o palestino. Como pode, meu Deus! E os filhos da menina [Laila, de Rafa] sorridentes, crianças lindas, meu Deus! Aí você abre o jornal e vê: ‘o palestino é o homem-bomba, o palestino é o terrorista’. Você vê a supra-realidade. ‘O palestino é isso, o palestino é aquilo, o favelado é o bandido’ E você abre a webcam e vê: puxa, ela põe um quadro na parede, ela tem uma vida, ela é de carne e osso, ela é gente, ela é humana. Como artista, eu acho que o que eu posso fazer são essas coisas, entendeu? Como o outdoor. Ficou quatro dias, mas já foi uma vitória.

Por que você não fala com a grande imprensa?
Porque se ela não for omitir, ela vai distorcer; então se for para me sacanear, os caras vão fazer isso sozinhos e não vão precisar da minha ajuda. Você acha que O Globo faria isso que você está vendo aqui? Só se eu fosse o superstar da política e olhe lá. Aquela menina do Globo escreveu no artigo que eu não dou entrevista para a imprensa. É uma mentira, meu problema não é com a imprensa, é com essa imprensa. A imprensa corporativa, de rabo preso.

Como você define ser de direita?
É simples: é quando você privilegia o capital acima do social. Melhor definição: quando você dá mais importância ao capital em detrimento do social. Isso é direita, isso é o capitalismo, isso é o neoliberalismo, isso é o pós-modernismo. Quando você privilegia o social em detrimento do capital, é o internacionalismo, é o socialismo, é o comunismo, é o anarquismo, é a esquerda.

Engraçado, ninguém se diz de direita. Não tem um que diga...
Não tem. Eu ainda sou mais o Le Pen [Jean-Marie, político francês da extrema direita]. Ele diz literalmente que é fascista. Ótimo, parabéns. Fica mais fácil a gente te combater. Agora, o cara do PFL vem dizer que é democrata?! Pena que essa discussão só fica entre a gente.

Que nada. Milhares de pessoas vão ler essa entrevista...
Que elas vão ler essa entrevista, não tenho dúvida. Se elas vão tomar alguma atitude a partir dela, é que eu não sei. Também não importa. Mas a gente tem que fazer. O que vai acontecer em seguida não importa. Tá bom pra vocês?

Fazendo Media

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Recomendo a leitura na íntegra aos meus amigos. Aos inimigos, continuem lendo o Diogo Mainardi!
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