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Sem exemplos para seguir

Entrevista do cientista político Fernando Limongi, publicado no Valor

Fernando Limongi, um dos principais nomes da ciência política nacional, questiona tese de que governo Dilma corre riscos e diz que crise financeira põe em xeque modelos dos EUA e Europa.

No tempo em que se dizia que o país precisava de reforma política para se tornar governável, Fernando Limongi publicou o livro definitivo - "Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional" (1999) - mostrando voto a voto que o Executivo não tinha embaraços em formar maioria. Quando o debate passou a ser dominado pela fisiologia paralisante das comissões de Orçamento, novo livro, também em parceria com Argelina Figueiredo - "Política Orçamentária no Presidencialismo de Coalizão" (2008) - mostrava que as emendas comprometem migalhas do investimento e que, ao rifá-las da lei orçamentária, se arriscava a empobrecer a representação.

Aos 53 anos, professor titular de ciência política da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que presidiu de 2001 a 2005, Limongi continua incomodado. Não aceita a tese de que a amplitude da base aliada é a raiz dos problemas da presidente Dilma Rousseff nem que seu governo começa sob mais turbulência que os precedentes.

Em entrevista ao Valor, afirma que a maior novidade da conjuntura política brasileira é a unidade do PMDB, mas ainda se confessa aturdido pela tendência de fragmentação do quadro partidário que acreditava estar em processo de reversão.

Diz que a crise política por que passa o governo Barack Obama revela uma crise decisória no sistema político americano que não deveria servir de inspiração para nenhuma das democracias emergentes. E lança uma provocação aos compatriotas que não conseguem enxergar nenhum outro país mais corrupto que o Brasil: "Não há como medir a corrupção. Todos os indicadores são baseados em percepção que é um nome bonito para "pré-conceito". É possível obter uma correlação quase perfeita entre índices desse tipo e pigmentação da pele. Os países africanos em geral aparecem como os mais corruptos e os escandinavos como os menos".
A seguir, a entrevista:

Valor: O governo Dilma Rousseff mal começou e já trocou dois ministros. Aliados se dizem apreensivos com seu estilo. Teme-se que colha troco lá na frente. Dilma corre o risco de se inviabilizar?

Fernando Limongi: Se você acompanha o início do [Fernando] Collor, do Fernando Henrique e do [Luiz Inácio] Lula [da Silva], todos começaram com um rearranjo muito profundo das bases. Collor superestimou seu poder e precisou reformular o ministério. FHC começou com um governo majoritário para aprovar legislação ordinária, mas minoritário para reforma constitucional. Para passar a reforma da Previdência, chamou o PP e rearrumou a coalizão. Lula também começou minoritário. Na primeira fase o [ex] PFL e o PSDB cooperaram, depois ele também refez o ministério.

Valor: A base excessivamente heterogênea do governo não é fonte permanente de tensão?

Limongi: O que ocorreu com o [Antonio] Palocci também ocorreu no governo FHC, que teve uma crise no caso de escuta telefônica na Casa Civil [conversa grampeada entre o embaixador Júlio Cesar dos Santos e o representante da Raytheon, empresa que disputava o Sivam, levou à queda do chefe de gabinete do presidente, Xico Graziano]. Esse tipo de problema sempre acontece. Os governos sempre custam a engrenar e a encontrar seu ponto de equilíbrio. Dilma, por ter maior continuidade com Lula - com o fim do governo, não com seu início -, parecia que não ia ter esse problema de ajuste, mas é sempre difícil botar a coisa pra funcionar. O governo começa, tenta achar o prumo e encaixar as peças. É o contrário da ideia da lua de mel, do período de graça. Só com o início de governo é possível saber se as pessoas combinam com os cargos e as lideranças são de fato exercidas. Lula só foi achar o prumo quando Dilma subiu para a Casa Civil e botou a máquina para andar. Até lá, a visão era toda negativa porque a coisa não funcionava. Tinha-se grande expectativa de que [José] Dirceu ia ser o condutor, mas ele se mostrou muito aquém das expectativas. Além do mensalão, só deu problema e nunca foi o homem da máquina que se esperava.

Valor: Essa fase inicial de ajustes pode ser semelhante a outros governos, mas a base dela é mais ampla do que a de qualquer outro. São 17 partidos na base, sendo 7 representados no governo. A dificuldade de abrigar todos no primeiro escalão não é parte da explicação?

Limongi: Pode ser, mas não há evidências de que esse é o problema. Do ponto de vista das evidências, o que chama a atenção, e não se dá a devida atenção, é que o PMDB tem votado absolutamente disciplinado. Ter votado 100% unido no salário mínimo e no Código Florestal não é pouca coisa. O PMDB nunca teve essa unidade.

Valor: Qual é sua leitura dessa unidade?

Limongi: Essa unidade é politicamente construída. [Michel] Temer exerce uma liderança sobre a bancada que ninguém nunca teve. O PMDB sempre esteve em todos os governos, mas nunca com essa disciplina. Isso é disciplina de PT. O PMDB hoje tem mais cadeiras e representação nacional do que qualquer outro partido. Está jogando diferente. Se há tensão no interior da base por espaço, o PMDB vai ocupá-lo. O partido já não era pequeno no fim do governo Lula. E agora joga com unidade para aumentar seu espaço. Todo mundo falou do seu lado fisiológico ou ruralista no Código Florestal. Até pode ser que o PMDB tenha sido majoritariamente ruralista, mas e o PCdoB, que votou igual?

Limongi: É parte da estratégia política do PMDB, e não necessariamente o partido é o mal. Não existe um lado do bem e do mal, como todo mundo tende a ler. Meus filhos de cinco e oito anos podem pensar assim, mas as coisas são muito mais complexas. O Código Florestal tinha muitos lados, vi alguns debates e não conseguia saber de que lado eu estava. Ninguém, no fundo, sabia de que lado estava.

Valor: Mas o fato é que o governo foi derrotado na votação...

Limongi: Em situações semelhantes outros governos sempre foram mais ambíguos, mais coniventes e dançaram conforme a música. Dilma bateu ficha numa questão difícil. FHC e Lula sempre fugiram pela tangente nessas horas, fizeram algum acordo que diluía o embate. Lula decidia por decreto no tema. Dilma não diluiu. Talvez tenha sobre-estimado forças, não tenha querido voltar atrás, perder imagem. Ex post foi desnecessário, até porque ainda tem Senado e a negociação vai e volta.

Valor: A base excessivamente heterogênea do governo não é fonte permanente de tensão?

Limongi: O que ocorreu com o [Antonio] Palocci também ocorreu no governo FHC, que teve uma crise no caso de escuta telefônica na Casa Civil [conversa grampeada entre o embaixador Júlio Cesar dos Santos e o representante da Raytheon, empresa que disputava o Sivam, levou à queda do chefe de gabinete do presidente, Xico Graziano]. Esse tipo de problema sempre acontece. Os governos sempre custam a engrenar e a encontrar seu ponto de equilíbrio. Dilma, por ter maior continuidade com Lula - com o fim do governo, não com seu início -, parecia que não ia ter esse problema de ajuste, mas é sempre difícil botar a coisa pra funcionar. O governo começa, tenta achar o prumo e encaixar as peças. É o contrário da ideia da lua de mel, do período de graça. Só com o início de governo é possível saber se as pessoas combinam com os cargos e as lideranças são de fato exercidas. Lula só foi achar o prumo quando Dilma subiu para a Casa Civil e botou a máquina para andar. Até lá, a visão era toda negativa porque a coisa não funcionava. Tinha-se grande expectativa de que [José] Dirceu ia ser o condutor, mas ele se mostrou muito aquém das expectativas. Além do mensalão, só deu problema e nunca foi o homem da máquina que se esperava.

Valor: Essa fase inicial de ajustes pode ser semelhante a outros governos, mas a base dela é mais ampla do que a de qualquer outro. São 17 partidos na base, sendo 7 representados no governo. A dificuldade de abrigar todos no primeiro escalão não é parte da explicação?

Limongi: Pode ser, mas não há evidências de que esse é o problema. Do ponto de vista das evidências, o que chama a atenção, e não se dá a devida atenção, é que o PMDB tem votado absolutamente disciplinado. Ter votado 100% unido no salário mínimo e no Código Florestal não é pouca coisa. O PMDB nunca teve essa unidade.

Valor: Qual é sua leitura dessa unidade?

Limongi: Essa unidade é politicamente construída. [Michel] Temer exerce uma liderança sobre a bancada que ninguém nunca teve. O PMDB sempre esteve em todos os governos, mas nunca com essa disciplina. Isso é disciplina de PT. O PMDB hoje tem mais cadeiras e representação nacional do que qualquer outro partido. Está jogando diferente. Se há tensão no interior da base por espaço, o PMDB vai ocupá-lo. O partido já não era pequeno no fim do governo Lula. E agora joga com unidade para aumentar seu espaço. Todo mundo falou do seu lado fisiológico ou ruralista no Código Florestal. Até pode ser que o PMDB tenha sido majoritariamente ruralista, mas e o PCdoB, que votou igual?

Limongi: É parte da estratégia política do PMDB, e não necessariamente o partido é o mal. Não existe um lado do bem e do mal, como todo mundo tende a ler. Meus filhos de cinco e oito anos podem pensar assim, mas as coisas são muito mais complexas. O Código Florestal tinha muitos lados, vi alguns debates e não conseguia saber de que lado eu estava. Ninguém, no fundo, sabia de que lado estava.

Valor: Mas o fato é que o governo foi derrotado na votação...

Limongi: Em situações semelhantes outros governos sempre foram mais ambíguos, mais coniventes e dançaram conforme a música. Dilma bateu ficha numa questão difícil. FHC e Lula sempre fugiram pela tangente nessas horas, fizeram algum acordo que diluía o embate. Lula decidia por decreto no tema. Dilma não diluiu. Talvez tenha sobre-estimado forças, não tenha querido voltar atrás, perder imagem. Ex post foi desnecessário, até porque ainda tem Senado e a negociação vai e volta.

Valor: E o combate à corrupção não passa pelo corte dessas ramificações?

Limongi: A gente não tem nenhuma forma de saber se a corrupção aqui é mais alta ou mais baixa do que no resto do mundo. O problema é óbvio: como se mede corrupção? Não pode ser medida objetivamente por razões óbvias. Os indicadores normalmente usados em pesquisas comparadas são indiretos e se referem à percepção. Muitas vezes essa percepção é um nome mais bonito para "pré-conceito". Eu brinco que é possível obter uma correlação quase perfeita entre esses índices e pigmentação da pele. Os países africanos em geral aparecem como os mais corruptos e os escandinavos como os menos. Todas as indicações são de que a corrupção aqui é como em qualquer outro lugar. A Inglaterra, com esse escândalo da imprensa, mostra que quando os interesses privados chegam junto do Estado você não consegue mais distingui-los. De repente o cara está na Scotland Yard, de vez em quando ele está no jornal, ele vai na Scotland Yard... Esse é o jeito que os interesses se constroem. Não tem saída para isso. É um problema de assimetria de informações. Como é que você vai ter um setor de empreiteiras que seja verdadeiramente competitivo? Três ou quatro grandes empresas vão controlar o mercado. E quem vai contratar esses caras? No fim é o cara que era da empreiteira e foi para o Estado e de lá para o setor privado, e esses interesses acabam não se distinguindo como se gostaria.

Valor: O sr. diz que não há como medir se o Brasil é mais ou menos corrupto do que outros países. A que o sr. atribui, então, a difusão dessa convicção entre os brasileiros?Limongi: É puro "pré-conceito". Quem acompanha política em outros lugares do mundo sabe que coisas feias acontecem em todo lugar. Uma vez fui fazer uma conferência para banqueiros na Europa. Eles queriam saber como funcionava o sistema político brasileiro. Fui lá e mostrei que funcionava bem, que tinha lógica, que a forma como eles entendiam os sistemas políticos europeus poderiam ser usadas para entender o Brasil. Daí, no debate, um senhor começou a me espinafrar, dizendo que estava cansado de ouvir que os políticos brasileiros eram confiáveis, que as coisas aqui eram OK, e quando ele abria o jornal só lia notícias desabonadoras quanto às nossas práticas políticas, que o governo brasileiro só fazia aumentar o déficit. Quando ele acabou de falar, eu estava meio nas cordas e para ganhar tempo perguntei de que país ele vinha. Ele respondeu: Itália. Não precisei responder. Só "I see" com riso meio cínico bastou.

Valor: O sr. vê alguma relação entre a perda de prerrogativas legislativas e a ocupação dos aliados em desencavar os podres da República? As MPs têm saído com mais de 50 temas, tanto que uma recebeu o nome de "árvore de Natal"...

Limongi:: Na entrevista do Temer para o Valor, ele começa falando: "Participei de um grupo que elaborou uma medida provisória. Nós ficamos estudando e todo mundo participou". Então quem fez a medida? Dilma não tem tempo para fazer isso. Quando sai uma MP, não é uma decisão unilateral do Executivo.

Valor: Pode ser uma costura partidária, mas que foge do âmbito legislativo...

Limongi: Se está saindo como "árvore de Natal" é porque todo mundo já deu "pitaco". Quando o texto começa a tramitar, não foi Deus quem o criou. Todo mundo já botou a mão. O texto não é confeccionado a portas fechadas.

Valor: Mas a oposição não participa...

Limongi: Nem é para participar. Tem a tramitação para espernear. Quando passou a reforma das MPs no governo FHC, todo mundo achou que estava fazendo uma grande coisa. E, na verdade, foi um desastre institucional. A MP tramitava no Congresso, em sessão conjunta da Câmara e do Senado. Não atrapalhava a tramitação dos demais projetos nem travava a pauta. Agora a medida passa pela Câmara, depois vai para o Senado, tem um tempo para correr, e tem que apresentar emenda aqui e lá, mas ninguém sabe como funciona. O fato é que se o Congresso quiser rejeitar uma medida porque não é pertinente à matéria em tramitação, derruba. O regimento garante. Não tem essa de nosso Legislativo estar subjugado, isso é tudo bobagem.

Valor: Num artigo polêmico, FHC disse que a política tem que ser buscada fora das instituições, nos jovens e na internet. A maior surpresa de 2010, Marina Silva, não veio desse mundo?

Limongi: Marina, de fato, surpreendeu. Mas só foi tão bem votada porque Serra e Dilma perderam votos. Lula polarizou demais no fim da campanha, chamou para a briga e tirou votos de Dilma, que, pelo desempenho da economia, teve um resultado eleitoral aquém do esperado no primeiro turno. Tanto que seguraram Lula no segundo. José Serra cresceu, mas puxando um voto que não era dele, de quem achava que, por ter religião, não podia votar em Dilma. Foi um voto que também beneficiou Marina. Teve a coisa religiosa que surpreendeu todo mundo. Marina não conseguiu segurar nem o PV. Então tem um apoio muito difuso e desorganizado para ser considerado um trunfo. Tirante o PT, nenhum partido consegue penetrar na sociedade, mas o que os petistas têm de voto é muito mais do que têm de militância e penetração. É outro modelo de partido daquele do pós-guerra, que tinha células, militância, cobrava contribuição, fazia jornal e tinha escolinha. Hoje partido não precisa disso, vai à TV. Se é isso que FHC quer dizer, realmente mudou e não apenas no Brasil. Mas não é de hoje.

Valor: A internet, então, ainda vai demorar a dar as cartas na política?

Limongi: Deve ter muita gente tentando transformar o que se passa na internet em voto. Não vai ser espontâneo. FHC é sociólogo e sabe que não há nada de espontâneo nesse mundo de meu Deus. Tem que ter coisa organizada, estruturada. Onde isso tudo junta? No modelo institucional da eleição majoritária. Por isso PT e PSDB têm vantagem. Porque polarizam as eleições e coordenam a competição. PT e PSDB saem na frente na hora de lançar candidato à Presidência. Vai ter um candidato do PSDB, um do PT e uma terceira via. Marina vai ter que correr por fora para montar uma estrutura de campanha. Não vai ter os governos estaduais do PSDB nem a estrutura de governo federal do PT. Não vai ganhar pelo Twitter, até porque as pessoas, para votarem nela, precisam saber que ela tem chance de ganhar. Uma candidatura desastrosa do PSDB poderia fazer isso. Mas o PSDB teria que pisar muito na bola. A história é cheia de partidos que dilapidam patrimônio brigando internamente. Serra já fez isso uma vez e ameaça repetir ao resistir a ceder a liderança.

Valor: Se a tendência de polarização na eleição presidencial é tão forte assim, por que não afeta a disputa pelo Congresso?

Limongi: O resultado mais intrigante dessas eleições foi o descasamento entre as eleições majoritárias e proporcionais. A eleição presidencial vertebra a disputa nos Estados, que foi totalmente casada com a presidencial. Em todo Estado teve o candidato da Dilma e do Serra. E o PMDB ora jogou com um, ora com o outro. Agora, no Congresso, os sinais de que o número de partidos estava diminuindo desapareceram. E não apenas porque PP, PDT, PTB, que eram partidos médios, caíram e se igualaram ao PR ou ao PSB. PMDB, PT e PSDB também caíram. Pode ter a ver com esse terreno pantanoso que saiu da órbita do PSDB e caiu na do PT, mas ainda não está fazendo muito sentido. O que parece de fato diferente é essa coisa de o PMDB votar unido.

Valor: Esse pacto político pela distribuição de renda, contra o qual ninguém se rebela, não é o substrato dessa fragmentação tão acentuada?

Limongi: Há uma certa indistinção entre o PT e o PSDB quanto às propostas. A gente não sabe o que o PSDB teria para fazer de diferente do PT. O discurso do Serra foi da eficiência, faço-melhor-do-que-eles-que-só-seguem-nossa-cartilha. Mas não deu certo. O PSDB não tem realmente uma agenda alternativa. O PT, enquanto na oposição, conseguia fazer uma imagem de que era diferente e tal, que depois com o mensalão se viu que não era tão diferente assim.

Valor: E como conseguem polarizar o eleitorado se não têm propostas diferentes?

Limongi: Não é fácil entender qual é a percepção que de fato os eleitores têm dos partidos, se os veem ou não como diferentes e se essas diferenças são programáticas ou de outra natureza. Para saber essas coisas é preciso fazer pesquisa de opinião, entender como os eleitores organizam a disputa partidária na cabeça. E quando a gente lê pesquisa bem feita sobre esse tipo de coisa sempre acaba se surpreendendo. O que me parece interessante é que os partidos brasileiros podem não estar organizados como estavam os da Europa do pós-guerra, mas a divisão do eleitor é forte. Todo mundo diz que brasileiro é pouco politizado. Mas é o contrário. Nessa última eleição presidencial, minha filha mudou de escola e passei a levá-la à casa das novas amiguinhas. Chegava lá e os pais me perguntavam: "Voto em tal partido, e você?" Ouvi inúmeras vezes no metrô gente falando em quem iria votar. Passei duas eleições presidenciais nos Estados Unidos sem ouvir nenhuma pessoa falar sobre eleição presidencial. E estava dentro do departamento de ciência política de uma universidade. Isso é impensável no Brasil. Todo mundo emite opinião política o tempo inteiro. E todo mundo declara suas preferências. E isso não pode se dar sem que os partidos desempenhem um papel. O voto é obrigatório, mas sempre se pode votar em branco ou nulo. E, se os partidos não fossem capazes de mobilizar eleitores, a taxa de votos brancos e nulos deveria ser muito alta. Até foram em algumas eleições, mas caíram violentamente com o voto eletrônico. É possível que votações como a de Enéas, Clodovil e Tiririca venham de eleitores que os partidos não conseguem mobilizar. Sempre há um candidato com discurso antipolítica para o qual um caminhão de eleitores converge.

Valor: Muito se especula sobre o vetor político da chamada nova classe média. Essa seria a última eleição da distribuição de renda?

Limongi: Acho que leva algumas gerações para a ascensão social virar conservadorismo. Não acredito que o cara que subiu na vida em dois anos vai ficar defendendo o dele e virar conservador. O eleitor pode ser extremamente volátil, no sentido de que, se o PT amanhã vem com uma crise econômica e esses ganhos são perdidos de um governo para o outro, o eleitor pode se bandear para a oposição. Com isso estou de acordo. Foi o que aconteceu no segundo mandato de FHC. No primeiro, ele estava com tudo, distribuiu renda e fez crescer. Veio a crise, o eleitor bandeou para o outro lado. Mas se o crescimento se mantiver não vejo esse cenário.

Valor: A última vez em que a política balançou o mercado foi na eleição de 2002. De lá para cá, entra mensalão, sai mensalão, entra PR, sai PR, e a política não abala mais a economia. Por que houve esse insulamento? Por que ninguém se arrisca a mexer no dito tripé da economia?

Limongi: Não sei se foi a política ou se foi a economia que se insulou. No fim do governo, Lula fez um certo keynesianismo e ninguém se insurgiu contra. Até porque se saíssem batendo poderiam colher rejeição eleitoral. Os políticos observam e esperam se vai dar resultado. Se der, não criticam. Na hora em que der errado, a oposição vai sair criticando e aí o PSDB vai montar seu discurso alternativo. Se a economia continuar bem até 2014, não vai haver plano alternativo. O fato é que todo mundo foi surpreendido pelas mudanças estruturais no mercado de trabalho do Brasil, muito mais significativas que a Bolsa Família. O mundo político também parece ter sido surpreendido pelas conexões do Brasil com a China, que o tornaram menos dependente dos Estados Unidos.

Valor: Se a gente olha para o Congresso americano, vê o fracasso tanto das tentativas de aprovar uma regulação mais rígida para o mercado financeiro quanto esse embate republicano com o Obama. Como é que o sr. vê a resposta da política à crise financeira?

Limongi: A má qualidade do sistema politico americano é uma coisa inacreditável. Quem fica falando que o sistema brasileiro não funciona é porque não conhece o americano. Se tem um sistema político travado, parado, incapaz de produzir decisão, é o americano. É um sistema em que a Presidência tem pouco poder efetivo, depende muito de um Congresso que é capaz de barrar e está repleto de traidores. [Paul] Krugman afirmou em artigo recente que esse limite de endividamento foi renegociado e ampliado mais de uma vez ao longo do governo Bush. Que rever e readaptar o limite à realidade não teria consequência econômica alguma. Que o ponto é pura ideologia. Que os republicanos querem nocautear o Obama. Creio que ele esteja certo. Acompanhei in loco a reforma da saúde pública. Vi e ouvi os argumentos dos republicanos. É pura ideologia. Desculpe o exagero, mas é realmente primitivo. O reacionarismo é impressionante. E já radicalizaram dessa forma no passado. Fecharam o governo Clinton ao não aprovar o Orçamento. Tomaram uma tunda depois. No que fechou o governo, a população se voltou contra os republicanos.

Valor: Foi naquele momento que Clinton conseguiu a reeleição, não foi?

Limongi: Clinton estava morto e aí eles resolveram pisar em cima e espicaçar. E aí o Clinton renasceu e foi reeleito. Então é mais ou menos a mesma situação que Obama, só que agora em proporções muito maiores. A única coisa que os republicanos querem é corte de gasto e de imposto. Estão criando um sistema inviável. Todos os dados que se tem sobre desigualdade nos Estados Unidos mostram que aumentou uma barbaridade no governo republicano porque se cortou imposto no topo e gasto para base sem se conseguir, com isso, dar impulso à economia. É um exemplo de mau funcionamento do sistema político inacreditável. Faz a gente falar "puxa, estamos numa maravilha!"

Valor: Os EUA, ao contrário do Brasil, não têm um Congresso que reproduz mais ou menos as mesmas divisões da eleição presidencial?

Limongi: Nos Estados Unidos você tem a eleição presidencial e o "coattail", que é o efeito do voto puxado pelo presidente sobre o Congresso. Mas depois você tem reversão no meio do ano - em geral, o partido do presidente perde cadeira no meio do mandato. Quanto perde é que varia. Obama perdeu muito porque o americano médio é da direita brava. Se existe um sistema político que dá veto a minorias, esse sistema é o americano. No Senado há o que se chama de "filibuster", que é basicamente o direto de a minoria estender indefinidamente o debate, evitando que a matéria venha a voto. Se a minoria é contra, a coisa não vem a voto. Bloqueia. Para tudo. O que Obama passou de reforma da Previdência foi um negocinho desse tamanho sob um custo inacreditável. Aqui o presidente passaria aquilo tranquilo.

Valor: Os dividendos políticos dessa crise que já dura três anos é o crescimento da direita, em alguns países, como a Noruega, tragicamente?

Limongi: A Europa tem um problema grave, que é a pouca tolerância para com o imigrante. Tem dificuldade para assimilá-lo, ao mesmo tempo em que precisa dele. Há países que estão com crescimento negativo, como a Itália. Todo mundo sabe que eles precisam de mão de obra, mas não querem imigrantes. Vão acabar com déficit populacional. Todos os estudos mostram. Isso pode ser fonte de tensão política grande, mas qualquer projeção seria arriscada de como é que isso vai se resolver. Olhando para o que está acontecendo nos EUA e Europa, essas ideias de que o Brasil tem um sistema político problemático, que atrapalha a economia, a distribuição de renda, é história para boi dormir. Tudo se provou errado. Tivemos todas essas coisas sem reforma do sistema político.

Valor: E por que sistemas políticos tão vigorosos não conseguem dar uma resposta à crise?

Limongi: Esses sistemas políticos que sempre foram modelos estão embaralhados com um problema de decisão. O que pode mostrar que o sistema político é muito menos importante do que se pode achar. Há uma supervalorização das escolhas institucionais, uma expectativa de que se possa reformar tudo por modelos institucionais. Li recentemente uma citação do [Pierre] Rosanvallon [historiador francês], dizendo que logo depois da Revolução Francesa os caras começaram a falar em reforma das instituições, sempre com a expectativa de que assim se poderia eliminar todas as impurezas do sistema político. Estamos pensando isso até hoje.

Valor: Em meio a essa crise, os países emergentes têm reivindicado maior parte da governança global, mas há resistências dos ricos, que não lhes reconhecem maturidade institucional para dividir essa governança. Com que argumento se pode sustentar a justeza dessas reivindicações?

Limongi: Quem quer que olhe para o sistema político americano e seu desempenho recente colocará em questão essa ideia. O governo de Bush filho - aliás, imagina só se tivéssemos pai e filho eleitos em tão curto espaço de tempo em um país latino-americano - já começou com uma lambança institucional sem igual. Não se pode dizer que a eleição na Flórida esteve livre de fraudes e, mais, que as fraudes não influíram no resultado. Ao longo do seu governo, explodiram vários escândalos envolvendo financiadores das campanhas de Bush. Basta lembrar a Enron. Isso para não citar a invasão do Iraque, toda ela montada em relatórios discutíveis. Qual é a maturidade institucional do grande líder? E o pior é que não são só os republicanos. O livro do [Joseph] Stiglitz ["O Mundo em Queda Livre"], deveria ser leitura obrigatória. Mostra que os economistas que dirigiam os bancos que causaram a crise de 2008 foram convocados por Obama para resolvê-la. Não é apenas ideologia ou ideias básicas que guiam as políticas. São as pessoas. São os mesmos caras. E eles fizeram o que se esperava que fizessem: protegeram os bancos e deixaram os eleitores pagar a conta.

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O jogo é jogado

Ivan Marsiglia, do site do Estado de São Paulo

Seja qual for o resultado das eleições, PT e PSDB continuarão a dar cartas no processo político, diz pesquisador 

A semana começou com pesquisas colocando a candidata do Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff, 20 pontos à frente de seu principal adversário, o tucano José Serra. E terminou com o tiroteio em torno da sindicância da Receita Federal sobre a violação do sigilo fiscal do vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge, e outras três pessoas ligadas ao comando do partido - com direito até a pedido de impugnação da campanha petista. 

O jogo continua, portanto. E, para analisar as táticas e os lances em profundidade dos principais times em disputa pela bola da vez no Planalto, o Aliás convidou Fernando Papaterra Limongi, professor titular da Universidade de São Paulo e um dos principais nomes da ciência política brasileira. Mestre pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1988 e doutor pela Universidade de Chicago em 1993, Papaterra Limongi acaba de voltar de uma temporada de um ano na Universidade Yale, em New Haven, nos EUA, onde ministrou aulas de política comparada das democracias latino-americanas. 

Nos últimos anos, o pesquisador se dedicou a uma análise sistemática da série histórica de eleições presidenciais brasileiras desde a redemocratização. Viu, no processo político brasileiro, mais constâncias que incongruências. "De 1994 para cá, as eleições se resumiram à competição entre dois partidos, PT e PSDB", diz Limongi, que crê na continuidade desse quadro de alternância no poder das duas principais agremiações do País. E não corrobora a argumentação do colega Bolívar Lamounier de que, na eventualidade de uma vitória de Dilma, após oito anos de presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, o País corre risco de "mexicanização" - com o PT convertido em uma espécie de versão brasileira do PRI, o Partido Revolucionário Institucional, que ficou por seis décadas no poder no México. "Dizia-se a mesma coisa quando o PMDB saiu vitorioso das eleições em 1986", lembra. 

Na visão do professor, a explicação é o tal feel good factor, de que falou a revista britânica The Economist, em uma formulação mais elegante do célebre bordão americano que diz "é a economia, estúpido!" Limongi sustenta: "O eleitor é conservador". E, assim como o foi em 1998, mantendo na cadeira o presidente do Plano Real, Fernando Henrique Cardoso, teme reverter a maré boa do governo Lula. Por isso mesmo, também não assina embaixo dos que criticam a performance de Serra: "Ele fez tudo certinho desta vez". 

O sr. estudou os resultados das eleições presidenciais desde a redemocratização. A que conclusões chegou? 

Trabalho com a série histórica das eleições em busca de padrões. Alguns são evidentes: de 1994 para cá, as eleições se resumiram à competição entre dois partidos, PT e PSDB. Hoje pode parecer óbvio, mas em 1989 não se adivinhava nada disso: foi uma eleição aberta, fragmentada, com a decisão sobre quem passaria ao segundo turno acontecendo voto a voto. A disputa entre Lula e Brizola foi travada na casa decimal. Outros, durante a campanha, tiveram oportunidade de viabilizar-se. O que se nota ali? Que ninguém fez coalizão. Em 1994, já há uma restrição no número de candidaturas, mas com competição entre vários partidos grandes. Essa competição, vencida de um lado pelo PSDB, fechando a centro-direita do País, e seguida pelo PT, fechando a centro-esquerda, definiu o que aconteceria dali para a frente. A vitória do PSDB está ligada ao Plano Real, mas também à coligação com o PFL - permitindo que o partido, que não tinha penetração no Nordeste, viesse a ter. Do outro lado, o voto no PT de 1989 explica o de 1994, com uma subida pequena, em torno de 5%. Em todos esses anos, qual é a terceira força que participa da campanha? Enéas em 1994, Ciro em 1998, Garotinho em 2002, Heloísa Helena em 2006 e deve ser a Marina Silva em 2010. Não há constância. 

O que explica o atual crescimento do PT? 

É possível notar um crescimento constante do PT, eleição a eleição, até 2002, quando dá um salto e ganha. Tenho lido análises ressaltando um "aumento significativo" no apoio ao PT entre 2002 e 2006. Mas acho que esse crescimento é de magnitude menor do que se supõe. Houve, sim, adição de votos de outros eleitores em momentos específicos, mas o petismo mantém-se mais ou menos constante, na faixa dos 18%, 20% do eleitorado. Nos últimos anos, ganhou eleitores de baixa renda nas cidades do Nordeste e perdeu parte dos mais educados e ricos do Sudeste. O PSDB, por sua vez, deixou escapar esses eleitores pobres quando sua aliança com os pefelistas se desfez em 2002 e a economia se deteriorou. Em 1994, a argumentação do governo Fernando Henrique era a de que estavam "arrumando a casa" para crescer depois. Tanto que, em 1998, a composição do segundo ministério privilegiou os desenvolvimentistas. Mas aí vem a crise asiática e o eleitor diz "é hora de dar o poder a outro". 

O que explica a atual vantagem de Dilma sobre Serra? 

Entre 2006 e 2010, o PT está retendo o eleitorado que conquistou e ampliando-o por uma razão simples: o País vai bem. Os estudos sobre eleições presidenciais nos EUA são unânimes: a principal variável para explicar resultados eleitorais é a economia. 

Diante dessa demonstração de força eleitoral de Lula, há quem diga que esse predomínio de PT e PSDB no País tem dias contados. É sempre arriscado fazer futurologia. Mas quando você analisa a série histórica, é confrontado com isso: PT e PSDB continuam controlando a eleição presidencial. Para o PSDB perder esse monopólio da oposição, a capacidade de ser o polo de convergência que lança o candidato de oposição, terá que pisar muito na bola. Sobretudo porque a única alternativa existente seria o PMDB. e ele já está muito atrelado ao PT. O PSDB tem potenciais candidatos à presidência com expressão nacional - coisa difícil de se constituir, que não se faz da noite para o dia em um país tão grande e politicamente organizado em torno dos Estados. Alckmin já foi candidato e tem recall. Aécio continua em evidência e seu candidato em Minas, Anastasia, cresce nas pesquisas. O governador do Paraná, Richa, é outra liderança emergente. O que acontece é que a oposição tomou um choque de realidade agora. Mas nada inesperado, diante do tal feel good Factor... 

Ou seja, boa parte do eleitorado sente-se satisfeita e tem receio de mudar

Por que iria? O eleitor é conservador. Foi conservador em 1998, quando poderia ter dito "o Plano Real nos trouxe uma melhora, mas o crescimento não veio". Esperou e só falou "é a vez da oposição" quando a situação ruim se perpetuou - o que, como pessoalmente acho, não teve muito a ver com a gestão do PSDB, mas com as circunstâncias internacionais. Simplesmente, deu azar. o mundo não estava legal (risos). E o mundo agora está legal. 

O sr. não vê sinais de mudanças no espectro partidário brasileiro? 

Não. Você pode dizer isso: o PT, na oposição, tinha mais consistência no seu voto, soube se comportar e capitalizar como oposição. O PSDB demorou para aprender, e não sei se já sabe. Mas enfrentou um momento mais difícil para ser oposição. O PT lá atrás podia dizer que "faria tudo diferente". Hoje, Serra fala em "fazer melhor". Não tem como evitar. Daí surge esse temor diante da possibilidade de duas derrotas seguidas. Mas os tucanos sempre dependeram mais desse fator coordenação que, por exemplo, de uma base social. 

Essa semana circularam notícias de que o PT pretende facilitar a 'transição' para seus quadros de políticos que estão em desconforto na oposição. É um tipo de cooptação? 

O que aconteceu quando o PT chegou ao poder? Ele não cooptou para dentro do partido, não inchou por migração partidária. O PSDB sim, atraiu quadros e costuma fazê-lo nas prefeituras de outros partidos em cidades do interior. 

Mas no primeiro mandato de Lula, os partidos nanicos da base aliada incharam. 

Sim. O que o PT faz é ceder lugar. Mas não atrai quadros, não é um partido-ônibus ou um partido-constelação. Pelo contrário, perdeu quadros descontentes para o PSOL - que não teve sucesso, não conseguiu eleger um vereador sequer na cidade de São Paulo. E perdeu todo um primeiro escalão colhido pelos escândalos, incluindo potenciais candidatos à Presidência: Dirceu, Palocci, Gushiken, Genoino. O que o PT fez para manter a coalizão unida para esta eleição presidencial é notável. Teve estratégia de partido unido. Chegar em Minas Gerais e decidir entregar a candidatura ao PMDB, em uma eleição que Patrus Ananias e Fernando Pimentel tinham chance de ganhar, não é pouca coisa. Lula e o PT privilegiaram a sucessão presidencial. Deu certo. 

O sociólogo Chico de Oliveira disse certa vez que Lula é 'uma árvore frondosa em torno da qual não nasce grama'. Essa presença de um presidente glorificado em uma popularidade de 79% inibe o surgimento de novas lideranças no País? 

Peço vênia para discordar do Chico nesse ponto. Cresceu a Dilma, o que não é pouco. Quando, no fim do mensalão, no meio daquela crise toda, Lula antecipou o seu nome, muita gente achou que era precipitação, que ele havia escolhido mal ou que Dilma seria um balão de ensaio a ser queimado depois. Mas o plano deu certo porque o verdadeiro jogo era manter o PT e a coligação unidos e chegar fortes à eleição. Foi uma estratégia de partido, que não se deve exclusivamente a Lula. 

E a estratégia do PSDB? Tem se falado de erros na escolha do vice de Serra e até seu caráter supostamente 'desagregador'. É uma crítica pertinente? 

Ao contrário. Eu compararia isso àqueles comentários de campeonato de futebol, quando quem está vencendo invariavelmente fez "bom trabalho de base" e quem está atrás "não soube planejar". Se você comparar o Serra de 2002 com o de 2010 vai ver que ele deu um show desta vez. Fechou tudo, compôs com o DEM na Prefeitura de São Paulo, reincorporou Alckmin ao governo. Se tivesse conseguido Aécio para vice seria melhor, mas isso se mostrou impossível. Acontece que o cenário, agora, é muito favorável ao governo. Em contrapartida, a estratégia do PT tem seu lado arriscado. Ao jogar exclusivamente na Presidência e abandonar competições estaduais, pode comprometer sua base. O que se refletirá na composição da futura Câmara. É fato que o PT tem tentado compensar dizendo "cedo os Estados mas não abro mão do Senado". Mas, se Dilma ganhar, há risco de o PMDB sair excessivamente fortalecido, o que aumentaria seu peso na coalizão. 

A tal 'partilha do pão' de Michel Temer. 

A visão que as pessoas têm de um governo de coalizão é de que o partido no poder dá um pedaço do governo para ser consumido pelo aliado. Como se ele recebesse um sorvete para se lambuzar. Não é bem assim. Quando se "ganha" um ministério é preciso desempenhar. Ou não se sustenta. E, no sistema representativo, partido que tem voto tem direito a uma parte do Estado. 

Em um artigo no ‘Estado’, o cientista político Bolívar Lamounier alertou para o risco de 'mexicanização' do Brasil caso o PT vença - e se transforme em uma espécie de PRI, que se eternizou no poder no México. Concorda? 

É um cenário muito pouco provável. Ainda que o PSDB perca o Planalto, irá controlar Estados importantes, terá recursos e votação nacional superior a 20%. A competição partidária não desaparecerá. 

Octavio Paz diz que, no México, o PRI construiu uma fachada democrática para um controle político de um único partido. 

É diferente. No México houve uma revolução lá atrás, fraudes eleitorais... E o PRI é fenômeno singular na história latino-americana. Também vale lembrar que, no Brasil, o PT não está sozinho, mas associado ao PMDB, o PP, o PSB. Não é um cenário próximo do que foi o mexicano. Aqui, o PT foi bem-sucedido na Presidência e está sendo retribuído por isso. Nada mais normal no funcionamento da democracia. Veja que já se falou em "mexicanização" do Brasil antes: após as eleições de 1986, quando o PMDB saiu vitorioso e houve quem também o comparasse ao PRI. 

O sr. acaba de dar um curso em Yale sobre política comparada na América Latina. A tendência à continuidade no poder em países como a Argentina, a Venezuela e a Colômbia, é um risco para a democracia? 

Há um temor exagerado na América Latina com relação ao problema da reeleição e do limite de mandatos. Ele é fruto de uma visão um pouco estereotipada da história política do continente, que enfatiza o caudilhismo do passado. E, aí, perde-se o aspecto comparativo com outras democracias. Há regimes parlamentaristas em que o primeiro-ministro permanece mais de 20 anos no poder. Na maior parte deles, além de não haver limite de permanência, o primeiro-ministro tem liberdade para definir quando será a eleição, antecipando-a para momentos oportunos. Evitar reeleições também tem custo: impede que líderes testados e competentes sejam reeleitos. É evidente que, em qualquer país, o exercício do poder pode ser usado para promover uma desigualdade na competição. Mas isso não necessariamente está ligado à pessoa do governante. Às vezes, forjar uma nova liderança, formar um "poste" do zero, pode ter um custo ainda mais alto para a sociedade. E aí estou pegando carona em um artigo do José Antonio Cheibub, estudioso do presidencialismo, que saiu na Texas Law Review. 

A alternância de poder não é um bem em si, com partidos e grupos políticos testando agendas diferentes para um país? 

Ela é positiva. O que quero dizer é o seguinte: quem está no governo tem vantagem, mas o fato de um presidente não poder se candidatar não a diminui significativamente. O fundamental é minimizar as vantagens de quem está no poder. 

Como se faz isso? Há alguns dias, Lula prometeu articular, fora do Planalto, a reforma política que não fez em oito anos de governo. Que tipo de reforma o Brasil precisa? 

Tenho me colocado contra as propostas de reforma política. Em geral, elas são mal fundamentadas do ponto de vista empírico e teórico, baseiam-se em informações incompletas sobre a realidade e são tiros no escuro sobre os efeitos que causariam. O que se tentou até agora, como a verticalização e a cláusula de barreira, deu errado. O maior risco que vejo após a eleição deste ano é PT e PSDB se unirem em torno de uma reforma política. Eles têm todo o interesse em fechar o sistema eleitoral, em uma espécie de bipartidarismo. Claro que o PMDB deve resistir a isso. Mas temo menos um PRI à brasileira do que esse tipo de aliança por cima: a oligopolização do sistema partidário por dois partidos que originalmente competem entre si. Elevar o custo de entrada no sistema político, por exemplo - como faz o modelo distrital ao tornar mais difícil para um político obter a primeira cadeira -, dificulta a oxigenação e a renovação do sistema partidário. Foi o que aconteceu na velha Venezuela, e acabou dando no Chávez. 

E a questão do financiamento das campanhas, que gerou escândalos que respingaram em quase todos os partidos brasileiros? 

Mexer no financiamento de campanhas é ainda mais perigoso. Se optar-se pelo financiamento estatal, ele será distribuído conforme o voto na eleição anterior. O que irá fechar o sistema integralmente. A parte mais cara das campanhas hoje é o espaço na TV, que já é público. E se alguma coisa o mensalão nos ensinou foi que o problema está no conluio entre agências de propaganda e gastos futuros do governo. Para isso, seria uma boa estabelecer um órgão que controle quem ganha as contas do governo e das estatais. Da mesma forma que há uma comissão regulatória na bolsa de valores. E tirar do sistema político a decisão sobre quem ganha a conta do Banco do Brasil, da Petrobrás, etc. Eu também restringiria o número de nomeações para cargos de confiança, que cria uma pressão desnecessária sobre o governante, passa uma imagem negativa e politiza a gestão. De resto, é dar tempo ao tempo. O Brasil viveu algo que nenhum país do mundo viveu: a transição do bipartidarismo para o multipartidarismo sob democracia. E com o mercado eleitoral funcionando. Ganham-se e perdem-se Copas, mas estamos jogando o jogo. 

Fernando é professor da USP e autor de Política Orçamentária no Presidencialismo de Coalizão (FGV)
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