Segundo a filósofa argentina, 
Esther Diaz, "o sexo é poder não somente  pela obviedade de que quem exerce fortemente o poder tem muito mais  possibilidades de manter encontros sexuais do que aqueles que carecem de poder".  Em entrevista à
 IHU On-Line, realizada  por e-mail, ela falou sobre a forma como a sexualidade foi encarada em  diferentes épocas e pensadores, como 
Foucault, 
Nietzsche e 
Platão. Além disso, ela observa a  sexualidade e o sexo em si a partir de uma visão biopolítica. "A sexualidade é  manejada pelo biopoder para reafirmar as estruturas patriarcais da sociedade",  afirmou.
Esther Diaz é doutora em  filosofia pela 
Facultad de Filosofía y Letras da Universidad  de Buenos Aires. Atualmente, é professora do Departamento de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de  Lanús.Confira a  entrevista.IHU On-Line – Como a  sexualidade foi tratada em diferentes períodos da história da  humanidade?  Esther Diaz – A  
sexualidade,  tal como 
Michel Foucault [1] a estudou,  surgiu recém na modernidade e, assim, foi estudada durante o século XX. Pois  bem, sem dúvida, os humanos têm genitalidade desde o momento do nascimento, mas  a sexualidade é muito mais do que 
genitais.  É uma figura epocal que está relacionada com os genitais, mas os transpassa  amplamente. Tem mais a ver com o desejo e, obviamente, com o sexo (sexo é uma  determinação biológica, sexualidade é uma determinação conceitual-social). Nesse  sentido, ela foi tematizada por 
Platão  [2], e a problemática foi retomada recém no século XIX, com 
Schopenhauer [3] primeiro, e com 
Nietzsche [4] mais tarde, no campo filosófico,  e com 
Freud [5] no psicanalítico.
IHU On-Line – Como  Michel Foucault aborda a sexualidade em nossa cultura? Em que aspectos a  filosofia de Foucault inspira um novo pensar sobre o corpo e a  sexualidade?  Esther Diaz –  Spinoza [6] dizia que muito se falou  sobre o poder da alma, mas que ninguém sabe de quanto o corpo é capaz. 
Foucault aborda a sexualidade como corpo do  poder, como 
dispositivos  de sexualidade que se instauraram no começo da modernidade, quando os  burgueses cuidavam de seus costumes sexuais de maneira “higiênica”, controlavam  seus desejos para obter uma descendência sadia. Depois, transladaram esse  controle para o resto da população e, em seu afã de proibir que se falasse de  sexo (época vitoriana), na realidade desataram um aluvião de discursos sobre a  sexualidade e incentivaram a mesma coisa que queriam controlar: o desejo. O 
controle  da sexualidade é funcional a uma economia que necessitava seres  “domesticados” para suas linhas de montagem industrial.
IHU On-Line – Em que  consistem os “dispositivos de sexualidade” denominados por Foucault?  Esther Diaz – Os 
dispositivos  de sexualidade se instauraram no começo da biopolítica, isto é, da  administração da vida da população por parte do Estado. Essa administração é  impensável antes do modelo burguês. 
Foucault denomina de “dispositivos de  sexualidade” todos os discursos e as práticas que proliferaram ao redor do corpo  e de seus prazeres e que foram operativos para a nascente economia  capitalista.
IHU On-Line – Quais são as ligações da sexualidade com  o poder?  Esther Diaz – O 
sexo  é poder não somente pela obviedade de que quem exerce fortemente o poder tem  muito mais possibilidades de manter encontros sexuais do que aqueles que carecem  de poder, mas também porque se são estabelecidos controles sobre os desejos da  população e são proibidas certas práticas sexuais (digamos, por exemplo, a  masturbação), constituem-se seres culposos, já que – principalmente em certa  etapa da vida – não é possível cumprir com a abstinência exigida pelos  dispositivos de sexualidade.
Isso produz culpa, e não há ninguém mais  manejável do que uma pessoa com culpa. O sexo também é poder porque é utilizado  para conseguir favores e vantagens. E, dentre outras coisas, é poder porque é um  impulso vital avassalador e é a condição de possibilidade para obter  descendência, que, no caso dos donos dos meios de produção, devia ser saudável  para dar-lhe prestígio aos senhores.
IHU  On-Line – A senhora diz que o conceito de sexualidade não está associado apenas  à diferença genital. Nesse sentido, o que entende por sexualidade? Ainda é  possível associar sexualidade ao gênero masculino e feminino?  Esther Diaz – O 
gênero  é uma construção social. Inclusive, atualmente (em alguns países), mais  identidades sexuais do que a feminina e a masculina (transexuais, travestis,  pessoas com duas genitalidades assumidas nessa condição) são aceitas legalmente  e obtidas mediante tecnologia. Uma pessoa pode ter nascido com genitais de um  sexo e sentir que seu corpo se equivocou, já que essa pessoa se sente parte de  outro sexo. A genitalidade pode ser um acidente. O gênero, em troca, é a  assunção consciente de determinada identidade sexual.
IHU On-Line – Como a sexualidade pode ser entendida  como um biopoder? E, nesse sentido, esse biopoder se torna um elemento  indispensável para o desenvolvimento do capitalismo?  Esther Diaz – A 
sexualidade  é manejada pelo biopoder para reafirmar as estruturas patriarcais da  sociedade. O capitalismo precisou do biopoder para controlar a população e  torná-la mais eficiente com relação aos interesses dos poderosos. A ciência  experimental moderna, por exemplo, é constituída excluindo a mulher e as outras  minorias (sexuais ou sociais). As religiões monoteístas também utilizam o  paradigma do homem branco, de idade média, culto e pulcro como modelo do “homem  virtuoso”.
As mulheres (e outras minorias sexuais) foram relegadas pelo  capitalismo às tarefas que tradicionalmente as reduziam à subordinação. E quanto  foram assimiladas ao sistema produtivo econômico, tiveram acesso a postos de  trabalho, mas continuaram sendo as responsáveis de levar adiante as tarefas do  lar. Esse é um claro exemplo do poder do sexo (nesse caso, obviamente,  masculino).
O poder capitalismo, científico, religioso e até familiar  continua sendo machista, porque nossas sociedades se assentam sobre poderes  patriarcais ancestrais, herdados e reproduzidos pela família, pela escola, pela  religião e até pelas figuras midiáticas: mostram-se corpos nus de mulheres,  porque se supõe que eles satisfazem o desejo masculino, mas quase não se veem  nus masculinos completos, já que isso contribuiria para o prazer da mulher, que,  por enquanto, continua sendo minoritário.
IHU On-Line – Em um de seus textos, a senhora diz que  estamos testemunhando uma nova fase de criação do nosso desejo. Em que sentido  isso está relacionado com o fato da pós-modernidade estimular o desejo sexual?  Pode nos explicar essa teoria?  Esther Diaz –  Se a 
sexualidade  surgiu do segredo sobre os meandros do desejo e de proibições que  estimulavam o desejo (inclusive, em alguns casos, as chamadas “perversões”), em  nossa época, em que os meios em geral e a Internet em particular mostram  absolutamente tudo o que é relacionado ao sexo (e que antes não podia ser  mostrado), é natural que se registre uma depressão do desejo (já que nada é tão  desejado quando o proibido). Dessa forma, nossos desejos hoje continuam  relacionados com o sexo (dentre outros apetites), mas já não com a intensidade  do enigma e do mistério. É por isso que considero que estamos atravessando uma  época de pós-sexualidade. Isso não quer dizer que não continuaremos mantendo  relações sexuais, mas sim que o estímulo para elas apresenta características  diferentes com relação à sexualidade moderna.
Essas questões são de sumo  interesse para a militância social, já que de nada serve atender somente o  problema da mulher agredida (digamos como exemplo), se os dispositivos sociais  continuam sendo machistas. Além disso, ser submissa não garante lucidez. As  próprias mulheres, muitas vezes sem nos darmos conta, contribuem com o 
esquema  patriarcal, ao estimular os meninos a brincar com armas de guerra, ou jogos  violentos como o futebol, e as meninas a brincar com bonecas ou a cozinhar.  Desse modo, continuamos reproduzindo homens que vão à frente e são ganhadores, e  mulheres sensíveis que se submetem e, em geral, são perdedoras. É inconcebível  que, no terceiro milênio, ainda continuamos dizendo que as mulheres são frágeis  por expressar seus sentimentos, e que “os homens não choram”. Isso não é assim  “naturalmente”. É uma construção social a serviço do poder sexual do  macho.
Notas:
[1] 
Michel Foucault  foi filósofo e professor  da cátedra de História dos Sistemas de  Pensamento no Collège de France desde 1970 a 1984. Todo o seu trabalho foi  desenvolvido em uma arqueologia do saber filosófico, da experiência literária e  da análise do discurso. Seu trabalho também se concentrou sobre a relação entre  poder e governamentalidade, e das práticas de subjetivação. Sobre ele, a
 IHU On-Line dedicou a edição 335, intitulada  
Corpo e sexualidade. A contribuição de Michel  Foucault; 203, cujo título é 
Michel Foucault, 80 anos; e 119, chamada  
Michael Foucault e as urgências da atualidade. 20  anos depois.
[2] 
Platão  foi um filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de  diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia em Atenas, a primeira  instituição de educação superior do mundo ocidental. A edição 294 da 
Revista IHU On-Line, cujo títutlo é 
Platão, a totalidade em movimento,  dedicou-se ao pensador.
[3] 
Schopenhauer foi um filósofo alemão  do século  XIX.Seu pensamento é caracterizado por não se encaixar em nenhum dos grandes  sistemas de sua época. Sua obra principal é O mundo como vontade e representação  (1819), embora o seu livro Parerga e Paralipomena (1851) seja o mais conhecido.  Schopenhauer foi o filósofo que introduziu o Budismo e o pensamento indiano na  metafísica alemã.
[4] 
Nietzsche  foi um influente filósofo alemão  do século XIX. Crítico da cultura ocidental e  suas religiões  e, consequentemente, da moral judaico-cristã. Nietzsche é,  juntamente com Marx e Freud, um dos autores mais controversos na história da  filosofia moderna, isto porque, primariamente, há certa complexidade na forma de  apresentação das figuras e/ou categorias ao leitor ou estudioso, causando  confusões devido principalmente aos paradoxos e desconstruções dos conceitos de  realidade ou verdade como nós ainda hoje os entendemos. A
 IHU On-Line dedicou o número 127, cujo título  é 
Nietzsche Filósofo do martelo e do  crepúsculo.
[5] 
Freud  foi um médico neurologista austríaco e judeu, fundador da psicanálise. Iniciou  seus estudos pela utilização da hipnose como método de tratamento para pacientes  com histeria. Ao observar a melhoria de pacientes de Charcot, elaborou a  hipótese  de que a causa da doença era psicológica, não orgânica. Essa hipótese  serviu de base para seus outros conceitos, como o do inconsciente. também é  conhecido por suas teorias dos mecanismos de defesa, repressão psicológica e por  criar a utilização clínica da psicanálise como tratamento da psicopatologia,  através do diálogo entre o paciente e o psicanalista. Freud acreditava que o  desejo sexual  era a energia motivacional primária da vida humana, assim como  suas técnicas terapêuticas. Ele abandonou o uso de hipnose em paciente com  histeria, em favor da interpretação de sonhos e da livre associação, como fontes  dos desejos do inconsciente. A 
IHU  On-Line dedicou as edições 207, 
Freud e a religião; e 179, 
Sigmund Freud - Mestre da  suspeita.
[6] 
Spinoza  foi um dos grandes racionalistas do século XVII dentro da chamada Filosofia  Moderna, juntamente com René Descartes e Gottfried Leibniz. Nasceu em Amsterdão,  nos Países Baixos, no seio de uma família judaica portuguesa e é considerado o  fundador do criticismo  bíblico moderno.
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