Aqui, Ema B. (a Ema Bovary de Antônio C.), num táxi por Botafogo e Copacabana, e com lembranças do primeiro beijo, que recebeu da amiga Marina (e que se tornou sua primeira namorada), à casa de quem se dirige agora, mais de 20 anos depois.
3.
O táxi segue pela noite do Rio. Logo que entrou, Ema disse ao motorista o destino, pediu que desligasse o rádio e fechasse os vidros para não desarrumar seus longos cabelos castanhos.
O motorista olhou para ela e pensou, aborrecido: nem um “por favor”!... Sim, era o que ele esperava dela, um mínimo de educação: “o senhor pode fechar as janelas, por favor, desligar o rádio, por favor, e ir até a avenida Atlântica, por favor?”...
Olha-a pelo espelho retrovisor e percebe que está aflita e distante. Repara nela por um tempo, até ter a certeza de que não olha um instante sequer para o taxímetro. Aperta, então, um dispositivo que faz o relógio disparar, aumentando o preço da viagem. Ela nada percebe. Ele sorri. Já não precisa do rádio ligado, nem das janelas abertas, muito menos do "por favor"... Sorri e acelera tranquilamente, vitorioso.
Ema repara a rua. O motorista seguiu o Humaitá para pegar Copacabana pelo Túnel Velho. Estão na Pinheiro Guimarães, em direção ao Cemitério de São João Batista. Ema pensa que seu pai está enterrado ali. Sua mãe também. E também outros inúmeros parentes e amigos. Pessoas famosas, como Carmem Miranda. Pessoas anônimas.
Ela pensa que lá nos fundos, em cima do morro, dizem, fica um cemitério de cachorros. Será? Sabe, apenas, que se sente nublada, quase que com um sentimento de luto. Não por ninguém especificamente. Nem pelo pai ou a mãe. Talvez por todos os que já morreram. Ou pelos que ainda morrerão. Muito provavelmente, por ela. E o sentimento de luto faz com que pense na sua morte. E o pensamento da morte, em Deus. Deus leva-a ao sinal da cruz. O sinal da cruz a uma oração. Pai Nosso. Mas mudaram o Pai Nosso. Como é mesmo, em lugar de "perdoai as nossas dívidas"?... Ela se perde na oração, enquanto o carro passa em frente ao cemitério.
4.
As meninas usavam um vestido estilo jardineira azul marinho, quase até os tornozelos. Camisas brancas de mangas compridas, fechadas até em cima, onde um laço de fita também azul marinho lembrava uma gravata borboleta. O colégio das madres era grande, com uma área imensa, no coração da Floresta da Tijuca. Jaqueiras, pés de jambo que enchiam o chão de flores cor-de-rosa.
O pátio está vazio. É hora de aula, as salas lotadas. Professoras explicam álgebra, geografia, linguagem - como se dizia na época -, com direito a Leitura Silenciosa, e religião.
Duas meninas, apenas as duas, passeiam pelo pátio apressadamente, como que fugindo de alguém, ou de todos. Uma, morena. A outra, loura. Dez, onze anos. Saem da área cimentada, ao encontro da floresta. Escondem-se atrás de uma árvore, o coração quase na boca, de emoção. Sentam-se. Seguram-se as mãos.
- Você viu a novela ontem? - a morena.
- Vi... A briga do Lucas com a Marlene...
- Eu tô falando de outra coisa...
A loura tem medo, porque adivinha. Mas um medo que não faz recuar, ao contrário, aumenta o desejo.
- Do quê? - a loura.
- Do beijo que ele deu...
A loura estava certa. Sabia que era sobre o beijo que a morena queria falar.
- Eu vi... Um beijo na boca - a loura.
- Você já deu beijo na boca?
A loura tem a certeza. Mais: medo. E também desejo.
- Eu não!, diz, com pudor. E você?, pergunta à morena.
- Eu já dei.
- Mentira! Mentira sua! Deixa de ser mentirosa!
- Dei sim!... Foi no Beto, meu primo. A gente brincou de pera, uva ou maçã.
- Mentira!
- Eu juro!... Quer ver como é que é?
A loura sabia que esse momento aconteceria. Desde o instante em que chegou à escola, pela manhã, e a amiga propôs que fugissem na aula da irmã Robleda, velhinha, professora de linguagem. Desde então ela sabia de tudo. E aguardava.
- Quer ou não quer? - a morena, que parece não ter medo de nada.
- Quero, diz a loura, num fio de voz.
Nervosamente, elas se aproximam. Olhos nos olhos, as mãos suadas, o coração mais que disparado. O tempo parece uma eternidade, os gestos lentos e estudados, como os de um ritual. A morena encosta o rosto no da loura, seus lábios nos dela, e coloca a língua lá, para espanto da loura, que arregala os olhos, mas cede, abrindo completamente seus lábios, e deixando o corpo relaxar e deslizar suavemente em direção àquele outro corpo à sua frente.
- Ema! Marina! - a voz da Madre Silva, responsável pela disciplina, procurando pelas duas.
O beijo se desfez, restou apenas o medo. E essa não foi a última vez em que as duas tiveram suas cenas roubadas.
5.
E agora é o motorista de táxi quem interrompe Ema.
- Para que lado da Atlântica nós vamos, madame?
Ela tem dificuldades em responder. É trabalhoso voltar de há mais de vinte anos. Mas responde.
Logo, estão em frente ao prédio de Marina. Ema, ao olhar para o taxímetro, percebe que está adulterado. Outra pessoa brigaria. Ela não. Aprendeu de pequena a evitar escândalos, mesmo que para defender seus direitos. Uma mulher de classe não fala alto, não discute, apenas ordena ou se submete, e jamais se rebaixa. Um motorista de táxi, pensa ela, é um pobre diabo, não vai, jamais!, discutir com um. Paga. Deixa o troco, como forma de vingança, como quem diz "tem mais de onde esse veio". O motorista acelera, satisfeito, enquanto ela, a morena, anda em direção ao prédio de Marina, a cabeça altiva, os passos firmes, mas por dentro queimando, insegura, não por causa do motorista, mas por não saber "no que a loura estará pensando"... Há tempos não se vêem. Logo, estarão frente a frente: a menina morena e a menina loura. É com essa emoção que Ema se dirige à portaria do prédio de Marina; uma emoção que talvez seja a única que ainda a toque, mesmo que tão à distância.
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