Assim que começaram os últimos vazamentos do Wikileaks, alguns articulistas, ingênuos ou alinhados, tentaram caracterizar os tais cabos diplomáticos dos EUA como meras fofocas.
Abaixo, seguem dois exemplos dessas fofocas. Gostaríamos de saber, como reagiriam tais articulistas, se algum de seus parentes aparecessem, de repente, no Afeganistão?
E que ninguém se iluda: num total estado de ilegalidade em que se vive, ninguém está salvo como prova o caso de Khaled O-Masri.
Escreve Amy Goodmann, publicado especialmente em Estratégia e Análise:
Uma vez mais WikiLeaks tem publicado uma enorme quantidade de documentos. Desta vez, trata-se de correspondência diplomática do Departamento de Estado estadunidense. O site de revelação de dados secretos anunciou que publicará gradualmente mais de duzentos e cinqüenta mil documentos durante os próximos meses. Desta maneira, os documentos poderão ser analisados e receber a atenção que merecem. Os “cabos” são comunicações internas escritas entre embaixadas dos Estados Unidos de todo mundo e também com o Departamento de Estado (correspondência diplomática interna). WikiLeaks fala do vazamento como “o maior conjunto de documentos confidenciais que jamais se tenham dado a conhecer, que proporcionam uma visão sem precedentes das atividades no exterior do governo estadunidense.”
Os críticos sustentam, assim como fizeram quando vazaram documentos secretos referidos a Iraque e Afeganistão, que terá vítimas fatais como resultado destas vazamentos. No entanto, se poderia, em realidade, salvar vidas, dado que a forma em que os Estados Unidos fazem diplomacia se encontra mais exposta que nunca – bem como a aparente facilidade com a qual o governo dos Estados Unidos cumpre (ou não) com o dito do jornalista pioneiro I.F. Stone: “Os governos mentem.”
Observemos o caso de Khaled O-Masri. O-Masri foi seqüestrado na Macedônia no marco do chamado "programa de rendição extraordinária" da CIA, por meio do qual o governo dos Estados Unidos seqüestra pessoas em qualquer parte do mundo e a entrega secretamente a um terceiro país, onde possam ser objeto de torturas. Khaled O-Masri conta o que lhe sucedeu: “Levaram-me a uma habitação, estava algemado e me vendaram os olhos. Quando a porta se fechou, fui golpeado em todas as partes do corpo. Então fui humilhado. Pude ouvir que tiravam fotos durante o processo de tortura, quando já estava completamente nu. Depois amarraram as minhas mãos atrás das costas, puseram-me correntes nos tornozelos e um saco plástico na cabeça. Depois fui atirado brutalmente em um avião e no aeroporto me jogaram no chão. Quando acordei, estava no Afeganistão. Sacaram-me brutalmente do avião e puseram-me no porta-malas de um automóvel.”
Khaled O-Masri esteve prisioneiro e foi torturado em um cárcere secreto no Afeganistão durante meses até que a CIA o deixou abandonado em uma estrada deserta da Albânia. Isto aconteceu apesar de que a CIA sabia já de algum tempo que tinha seqüestrado ao homem equivocado. O-Masri, cidadão alemão, tentou que se fizesse justiça nos tribunais alemães e tudo indicava que treze agentes da CIA enfrentariam processos. Nesse momento interveio a embaixada dos Estados Unidos em Berlim e realizou, segundo um dos cabos diplomáticos, a seguinte ameaça: “a emissão de ordens de captura internacional teria um impacto negativo nas relações bilaterais.” Nunca se apresentaram denúncias na Alemanha, o que sugere que a ameaça diplomática funcionou. Mesmo assim, os treze agentes enfrentam ainda denúncias legais e processos na Espanha, onde os promotores gozam de um pouco mais de liberdade com respeito às pressões políticas.
Ou ao menos nisso acreditávamos. De fato, a Espanha também se destaca nos documentos vazados. Entre os cabos-diplomáticos, há um datado de 14 de maio de 2007 escrito por Eduardo Aguirre, um banqueiro cubano-estadunidense conservador que fora nomeado embaixador em Espanha por George W. Bush. Na correspondência, Aguirre escreveu: “Para nós, terá conseqüências importantes que se continue propondo o caso Couso, pelo qual três soldados estadunidenses enfrentam denúncias em relação à morte do câmara espanhol José Couso, ocorrida durante a batalha por Bagdá em 2003.”
Couso era um jovem operador câmara da corrente espanhola de televisão Telecinco que estava filmando da sacada da varanda do Hotel Palestina em Bagdá, no dia 8 de abril de 2003, quando um tanque do exército estadunidense disparou sobre o hotel, onde estavam alojados principalmente jornalistas, causando a morte a Couso e a um da agência de notícias Reuters. O Embaixador Aguirre tentava invalidar o julgamento iniciado pela família Couso na Espanha.
O irmão de José Couso, Javier Couso, iniciou o processo judicial em nome de seu irmão José, e o fez em conjunto com a sua mãe. Ainda que um tribunal espanhol tenha reaberto a causa recentemente, Javier Couso reagiu ante o cabo-diplomático vazado nestes dias pelo WikiLeaks e disse: “Nós estamos em primeiro lugar indignados e horrorizados; horrorizados porque não podemos achar que o governo de meu país e a promotoria atuem conspirando com um governo estrangeiro para impedir a investigação do que lhe passou a um cidadão espanhol; e indignados porque mentiram-nos continuamente, nos reunimos com todas essas pessoas do governo e da promotoria e eles diziam que não iam a obstaculizar o caso.”
Ademais, o embaixador estadunidense pressionou ao governo espanhol para que desistisse de realizar um julgamento, que abriria precedente, contra o ex-Secretário de Defesa Donald Rumsfeld e outros servidores públicos do governo de Bush. No mesmo memorando Aguirre escreve: “O Vice Ministro de Justiça disse também que o governo espanhol se opõe firmemente à acusação apresentada contra o ex Ministro Rumsfeld e tratará de que seja desestimada. O juiz que é titular na causa nos disse que tem iniciado já os procedimentos para desestimar o caso.”
Estas revelações têm convulsionado ao governo de Espanha, já que os cabos-diplomáticos mostram claramente as tentativas dos Estados Unidos para incidir no sistema de justiça desse país.
Há vários anos, o Embaixador Aguirre declarou ao jornal espanhol O País: “Sou o bombeiro de George Bush, vou resolver todos os problemas que George ponha em minhas mãos.”
Em outra série de cabos-diplomáticos, o Departamento de Estado dos Estados Unidos ordena a seu pessoal das Nações Unidas e do resto do mundo que espionem a servidores públicos governamentais, e incrivelmente, também dá instruções de que consigam informação biométrica dos diplomatas. O cabo-diplomático diz textualmente: “Os dados devem incluir endereços de correio eletrônico, números de telefone e fax, impressões digitais, imagens faciais, escaneio de íris e de DNA.”
WikiLeaks segue associada a um grupo de meios de comunicação de todo mundo: o jornal inglês The Guardian; El País, da Espanha; o New York Times; a revista alemã Der Spiegel e o jornal francês Le Monde. David Leigh, editor de investigações do jornal The Guardian me disse: “Esta série de revelações não acabou ainda. Desde o jornal The Guardian e outras cadeias de notícias do mundo iremos fazendo revelações, a partir de agora e dia a dia, possivelmente durante toda a semana próxima e quiçá mais. Pelo qual, ainda não temos visto nada.” Restam ainda mais de 250 mil cabos-diplomáticos que ainda não vieram a ser conhecidos publicamente.
Faz quarenta anos, Noam Chomsky, reconhecido analista político e lingüista, professor do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), ajudou a Daniel Ellsberg, o primeiro informante dos Estados Unidos, a revelar os Documentos do Pentágono. Perguntei-lhe a Chomsky a respeito das correspondências diplomáticas recentemente publicados por WikiLeaks e ele me respondeu: “A principal importância dos cabos-diplomáticos que têm sido publicados até agora radica no que nos dizem sobre a liderança ocidental. O que revelam é um profundo ódio à democracia.”
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Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.
© 2010 Amy Goodman
Texto traduzido da versão em castelhano e revisado do original em inglês por Bruno Lima Rocha; originalmente publicado em português em Estratégia & Análise. É livre a reprodução de conteúdo desde que citando a fonte.
Amy Goodman é a âncora de Democracy Now!, um noticiário internacional transmitido diariamente em mais de 550 emissoras de rádio e televisão em inglês e em mais de 250 em espanhol. É co-autora do livro "Os que lutam contra o sistema: Heróis ordinários em tempos extraordinários nos Estados Unidos", editado por Le Monde Diplomatique Cono Sur.
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Abaixo, seguem dois exemplos dessas fofocas. Gostaríamos de saber, como reagiriam tais articulistas, se algum de seus parentes aparecessem, de repente, no Afeganistão?
E que ninguém se iluda: num total estado de ilegalidade em que se vive, ninguém está salvo como prova o caso de Khaled O-Masri.
Escreve Amy Goodmann, publicado especialmente em Estratégia e Análise:
WikiLeaks e o fim da “diplomacia” estadunidense
The one click group No mundo da globalização corporativa, o criminoso é quem pratica o ato justo. Julian Assange, editor e fundador do WikiLeaks, de caçador de segredos inconfessos oriundos dos núcleos mais sórdidos do poder planetário, torna-se caça através de um alerta vermelho dado pela Interpol contra a sua pessoa. Quem supor esta virada como armação do Departamento de Estado do Império, estará muito perto da verdade a ser revelada. |
Uma vez mais WikiLeaks tem publicado uma enorme quantidade de documentos. Desta vez, trata-se de correspondência diplomática do Departamento de Estado estadunidense. O site de revelação de dados secretos anunciou que publicará gradualmente mais de duzentos e cinqüenta mil documentos durante os próximos meses. Desta maneira, os documentos poderão ser analisados e receber a atenção que merecem. Os “cabos” são comunicações internas escritas entre embaixadas dos Estados Unidos de todo mundo e também com o Departamento de Estado (correspondência diplomática interna). WikiLeaks fala do vazamento como “o maior conjunto de documentos confidenciais que jamais se tenham dado a conhecer, que proporcionam uma visão sem precedentes das atividades no exterior do governo estadunidense.”
Os críticos sustentam, assim como fizeram quando vazaram documentos secretos referidos a Iraque e Afeganistão, que terá vítimas fatais como resultado destas vazamentos. No entanto, se poderia, em realidade, salvar vidas, dado que a forma em que os Estados Unidos fazem diplomacia se encontra mais exposta que nunca – bem como a aparente facilidade com a qual o governo dos Estados Unidos cumpre (ou não) com o dito do jornalista pioneiro I.F. Stone: “Os governos mentem.”
Observemos o caso de Khaled O-Masri. O-Masri foi seqüestrado na Macedônia no marco do chamado "programa de rendição extraordinária" da CIA, por meio do qual o governo dos Estados Unidos seqüestra pessoas em qualquer parte do mundo e a entrega secretamente a um terceiro país, onde possam ser objeto de torturas. Khaled O-Masri conta o que lhe sucedeu: “Levaram-me a uma habitação, estava algemado e me vendaram os olhos. Quando a porta se fechou, fui golpeado em todas as partes do corpo. Então fui humilhado. Pude ouvir que tiravam fotos durante o processo de tortura, quando já estava completamente nu. Depois amarraram as minhas mãos atrás das costas, puseram-me correntes nos tornozelos e um saco plástico na cabeça. Depois fui atirado brutalmente em um avião e no aeroporto me jogaram no chão. Quando acordei, estava no Afeganistão. Sacaram-me brutalmente do avião e puseram-me no porta-malas de um automóvel.”
Khaled O-Masri esteve prisioneiro e foi torturado em um cárcere secreto no Afeganistão durante meses até que a CIA o deixou abandonado em uma estrada deserta da Albânia. Isto aconteceu apesar de que a CIA sabia já de algum tempo que tinha seqüestrado ao homem equivocado. O-Masri, cidadão alemão, tentou que se fizesse justiça nos tribunais alemães e tudo indicava que treze agentes da CIA enfrentariam processos. Nesse momento interveio a embaixada dos Estados Unidos em Berlim e realizou, segundo um dos cabos diplomáticos, a seguinte ameaça: “a emissão de ordens de captura internacional teria um impacto negativo nas relações bilaterais.” Nunca se apresentaram denúncias na Alemanha, o que sugere que a ameaça diplomática funcionou. Mesmo assim, os treze agentes enfrentam ainda denúncias legais e processos na Espanha, onde os promotores gozam de um pouco mais de liberdade com respeito às pressões políticas.
Ou ao menos nisso acreditávamos. De fato, a Espanha também se destaca nos documentos vazados. Entre os cabos-diplomáticos, há um datado de 14 de maio de 2007 escrito por Eduardo Aguirre, um banqueiro cubano-estadunidense conservador que fora nomeado embaixador em Espanha por George W. Bush. Na correspondência, Aguirre escreveu: “Para nós, terá conseqüências importantes que se continue propondo o caso Couso, pelo qual três soldados estadunidenses enfrentam denúncias em relação à morte do câmara espanhol José Couso, ocorrida durante a batalha por Bagdá em 2003.”
Couso era um jovem operador câmara da corrente espanhola de televisão Telecinco que estava filmando da sacada da varanda do Hotel Palestina em Bagdá, no dia 8 de abril de 2003, quando um tanque do exército estadunidense disparou sobre o hotel, onde estavam alojados principalmente jornalistas, causando a morte a Couso e a um da agência de notícias Reuters. O Embaixador Aguirre tentava invalidar o julgamento iniciado pela família Couso na Espanha.
O irmão de José Couso, Javier Couso, iniciou o processo judicial em nome de seu irmão José, e o fez em conjunto com a sua mãe. Ainda que um tribunal espanhol tenha reaberto a causa recentemente, Javier Couso reagiu ante o cabo-diplomático vazado nestes dias pelo WikiLeaks e disse: “Nós estamos em primeiro lugar indignados e horrorizados; horrorizados porque não podemos achar que o governo de meu país e a promotoria atuem conspirando com um governo estrangeiro para impedir a investigação do que lhe passou a um cidadão espanhol; e indignados porque mentiram-nos continuamente, nos reunimos com todas essas pessoas do governo e da promotoria e eles diziam que não iam a obstaculizar o caso.”
Ademais, o embaixador estadunidense pressionou ao governo espanhol para que desistisse de realizar um julgamento, que abriria precedente, contra o ex-Secretário de Defesa Donald Rumsfeld e outros servidores públicos do governo de Bush. No mesmo memorando Aguirre escreve: “O Vice Ministro de Justiça disse também que o governo espanhol se opõe firmemente à acusação apresentada contra o ex Ministro Rumsfeld e tratará de que seja desestimada. O juiz que é titular na causa nos disse que tem iniciado já os procedimentos para desestimar o caso.”
Estas revelações têm convulsionado ao governo de Espanha, já que os cabos-diplomáticos mostram claramente as tentativas dos Estados Unidos para incidir no sistema de justiça desse país.
Há vários anos, o Embaixador Aguirre declarou ao jornal espanhol O País: “Sou o bombeiro de George Bush, vou resolver todos os problemas que George ponha em minhas mãos.”
Em outra série de cabos-diplomáticos, o Departamento de Estado dos Estados Unidos ordena a seu pessoal das Nações Unidas e do resto do mundo que espionem a servidores públicos governamentais, e incrivelmente, também dá instruções de que consigam informação biométrica dos diplomatas. O cabo-diplomático diz textualmente: “Os dados devem incluir endereços de correio eletrônico, números de telefone e fax, impressões digitais, imagens faciais, escaneio de íris e de DNA.”
WikiLeaks segue associada a um grupo de meios de comunicação de todo mundo: o jornal inglês The Guardian; El País, da Espanha; o New York Times; a revista alemã Der Spiegel e o jornal francês Le Monde. David Leigh, editor de investigações do jornal The Guardian me disse: “Esta série de revelações não acabou ainda. Desde o jornal The Guardian e outras cadeias de notícias do mundo iremos fazendo revelações, a partir de agora e dia a dia, possivelmente durante toda a semana próxima e quiçá mais. Pelo qual, ainda não temos visto nada.” Restam ainda mais de 250 mil cabos-diplomáticos que ainda não vieram a ser conhecidos publicamente.
Faz quarenta anos, Noam Chomsky, reconhecido analista político e lingüista, professor do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), ajudou a Daniel Ellsberg, o primeiro informante dos Estados Unidos, a revelar os Documentos do Pentágono. Perguntei-lhe a Chomsky a respeito das correspondências diplomáticas recentemente publicados por WikiLeaks e ele me respondeu: “A principal importância dos cabos-diplomáticos que têm sido publicados até agora radica no que nos dizem sobre a liderança ocidental. O que revelam é um profundo ódio à democracia.”
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Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.
© 2010 Amy Goodman
Texto traduzido da versão em castelhano e revisado do original em inglês por Bruno Lima Rocha; originalmente publicado em português em Estratégia & Análise. É livre a reprodução de conteúdo desde que citando a fonte.
Amy Goodman é a âncora de Democracy Now!, um noticiário internacional transmitido diariamente em mais de 550 emissoras de rádio e televisão em inglês e em mais de 250 em espanhol. É co-autora do livro "Os que lutam contra o sistema: Heróis ordinários em tempos extraordinários nos Estados Unidos", editado por Le Monde Diplomatique Cono Sur.