Lula Miranda
Distinto historiador, remeto-lhe essa missiva, em formato de crônica, numa última e extemporânea tentativa de comunicação, pois o diálogo com meus contemporâneos tornou-se impossível. Sinto-me, nos dias de hoje, como que pregando num deserto. Todos os corações e mentes estão ou anestesiados pela alienação e indiferença ou tomados pela paixão da ideologia e do partidarismo – ouvidos já não escutam, olhos já não veem, cérebros já não pensam. Os que não têm a visão embaçada pelas paixões, pelo preconceito ou pelos seus próprios interesses pessoais, partidários e/ou de classe, parecem estar hipnotizados pelas reiteradas mentiras, intrigas e manipulações veiculadas diuturnamente pela TV, pelos rádios, pelos jornais e revistas desse país. As instituições, bastante comprometidas, apodrecem em silêncio, nas sombras. Não tenho mais, pois, a quem recorrer.
Sei que a história é sempre contada pelos vencedores, mas ouso passar-lhe, sub-reptícia e humildemente, a visão de um perdedor (sinto-me esmagado e derrotado pela infâmia e pela ignomínia desses tempos de anomia e lassidão).
Sei também que os historiadores analisam, em seu trabalho de pesquisa, os jornais e revistas publicados no período estudado. Por isso, aqui vai uma advertência: não faça isso ao se debruçar sobre o período que engloba os governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidenta Dilma Rousseff.
Os jornais diários e as revistas semanais mentiram e mentem. Mentiram e mentem de modo desavergonhado, reiteradamente. Mentiram, distorceram, carregaram nas tintas, exerceram uma crítica capciosa e propugnaram uma moral seletiva. Manipularam os fatos de modo constrangedor, inacreditável, inaceitável. De sorte que, se alguém me contasse, estando eu aí no seu papel de historiador, ou até mesmo de mero observador dos fatos, eu também não acreditaria.
Aviso-lhe, pois: não acredite no que está escrito nas páginas de diários como a "Folha de S. Paulo", "O Estado de S. Paulo" ou "O Globo". Não acredite piamente no que dizem jornalistas como Merval Pereira, Dora Kramer, Eliane Cantanhêde, Ricardo Noblat, dentre tantos. São prepostos de eminências pardas. Seus patrões ganharam esses verdadeiros impérios das comunicações como "prêmio" da ditadura militar. São sabujos dos poderosos. E se aprazem na condição de vigias e zeladores do status quo.
À opinião dos jornalistas citados procure ao menos contrapor a de outros mais isentos, qualificados e ponderados como Mauro Santayana (sim, aquele mesmo que escrevia os discursos do ex-presidente Tancredo Neves), Mino Carta, Luis Nassif, Bob Fernandes e Paulo Moreira Leite – esses são, asseguro-lhe, mais isentos e equidistantes. Por via das dúvidas, consulte Jânio de Freitas – um dos últimos dignos. Mas se quiser testemunho de alguns intelectuais, e não de homens da imprensa, leia os textos de Cândido Mendes e do professor Jose de Souza Martins, definitivos.
Portanto, prezado historiador, pode registrar aí em suas anotações de campo: o governo do presidente Lula não foi o mais corrupto governo da história do Brasil. Não foi. Isso é uma deslavada mentira. Daquelas que, estratégica e ardilosamente, repetem inúmeras vezes, na tentativa de que sejam perpetradas, como se verdade fora.
Repito, enfaticamente, com a intenção de desconstruir/desfazer uma ignomínia, uma injúria, uma injustiça: é mentira!
Ao contrário, ele, presidente Lula, reaparelhou a Polícia Federal, criou a CGU e contratou mais auditores para o Tribunal de Contas da União do que qualquer outro governo. Pode pesquisar: a PF nunca atuou tanto e prendeu tanta gente (inclusive gente da alta sociedade e do próprio partido do presidente). Observe o aumento do contingente de policiais federais nesse governo. Sim, há corruptos e corruptores em todos os partidos e classes sociais. Hipocrisia à parte, esse mal é como um câncer que se alastra por toda a sociedade. É preciso combatê-lo. O governo Lula fez isso. O governo Dilma, idem.
O prezado historiador deve estar tecendo conjecturas a respeito da credibilidade desse meu depoimento. Não estou certo? Deve estar verificando, em suas fontes de consultas, quem foi esse tal de Lula Miranda. Quais os seus interesses em defender o governo? Estaria defendendo interesses próprios, privados, decerto – você deve estar pensando. Pode pesquisar à vontade. Não tenho e nunca tive cargo no governo. Nunca frequentei a intimidade de palácios. Não tenho nenhuma relação, pessoal ou profissional, com presidente(s), tampouco com nenhuma autoridade desses governos. Deles nunca recebi benefício ou favor.
Não, não sou pobre. Tampouco sou negro. Por que então defenderia um governo que é pródigo em políticas públicas voltadas para inclusão de negros e pobres? – seguiria indagando você. Meus filhos, sequer os tive, veja bem, tamanha a minha amargura com esses tempos em que vivemos, ou os filhos das companheiras que tive, ou mesmo sobrinhos, não cursaram universidade sob os auspícios do louvável ProUni. Ninguém da minha família recebe bolsa-família.
Sou, meu prezado arqueólogo dos fatos, talvez para seu espanto, um membro da tal "elite branca". Um autêntico "pequeno burguês". Estudei em boas escolas. Cursei as melhores faculdades. Comi, desde sempre, em bons restaurantes, bebi as melhores bebidas. Pude adquirir e ler os melhores livros; viajar; conhecer novas paisagens e culturas. Sou, portanto, um dos poucos privilegiados desse país.
Mas não posso – em absoluto! – associar-me com os que desejam um país só para uns poucos. Não posso compactuar com a mentira, com a injustiça e com o linchamento de um homem de bem e de um governo voltado a atender os interesses dos mais pobres. A exemplo dos abolicionistas de outrora – sim, talvez seja apenas um idealista, não nego – sonho com a libertação desse povo escravizado do meu país. Sim, pois a escravidão não acabou, ao contrário do que diz a História. O povo segue escravizado por privações e interdições de seus direitos mais básicos e essenciais – primários até. Ela, a escravidão, persistiu por muito tempo, diga-se, e ainda resiste dissimulada, sob outras roupagens e nomenclaturas.
É bem verdade que homens do partido do presidente cometeram erros – erros que foram, entretanto, estrategicamente superestimados e supervalorizados, alçados à condição de "escândalos". Foram erros – condenáveis, decerto – porém erros que esses mesmos jornalistas e políticos que aí estão, e que agora a esses outros julgam e sumariamente condenam, sempre cometeram ou compactuaram, e com a mais plena e total desenvoltura.
Sim, vivemos numa sociedade de hipócritas. A lógica é simples: os donos do poder sempre operaram o jogo político de modo sujo e, registre-se, foram eles mesmos que fizeram as regras desse jogo – claro, em benefício próprio. Quando os neófitos parlamentares e dirigentes do Partido dos Trabalhadores, de modo equivocado, decerto, tentaram fazer a luta política com as mesmas armas, jogar seguindo as mesmas inconfessáveis regras, aí eles não permitiram. Pois só a eles era permito jogar e usufruir a lassidão ou, digamos, "frouxidão" moral dessas regras. Só a eles era permitido o exercício dos "podres poderes". E por que diabos afinal eles mudariam as regras de um jogo que foi feito na medida para eternizá-los no poder, para subjugar a maioria aos interesses de uma minoria?!
Apesar de ser um tanto "romântico" e "ingênuo" não lhe remeterei essa mensagem dentro de uma singela garrafa lançada ao mar. Por precaução, e por via das dúvidas, ainda hoje a enviarei, para publicação em alguns websites da blogosfera espalhando-a assim na internet. Não que ainda nutra a esperança de ser compreendido pelos homens de meu tempo, mas apenas, como disse, por precaução, já que o registro digital estaria supostamente imune às intempéries e à sordidez dos homens.
Insisto: não acredite, sem questionar, no que está escrito nos livros ou periódicos dessa época, e no que muitos lhe disserem, quase em uníssono.
O Partido dos Trabalhadores, ou o atual governo, não é composto por bandidos, não é uma quadrilha. O PT não é nenhuma "gangue partidária" – como chegou a insinuar certo histriônico e intempestivo ministro do Supremo. Procure estudar a história desse partido, a sua luta incansável na organização dos trabalhadores e dos movimentos sociais, e de massas, nesse país. Essa história eles não podem ter conseguido apagar completamente. Isso ainda deve estar registrado em algum lugar. Eles não conseguirão transformar bandidos em heróis e homens públicos decentes e dedicados em bandidos, assim num piscar de olhos. Não se pode, impunemente, transformar mentiras em verdades.
Se por algum acaso, dedicado historiador de tempos futuros, quando essa mensagem chegar a suas mãos, e se vocês, homens de tempos avançados, já tiverem inventado, por essas remotas e incertas paragens, a fabulosa máquina do tempo, por favor, de posse desse meu relato faça a viagem de volta a esse "passado-presente", onde as sombras insistem em sepultar a luz, e venha nos ajudar a escrever uma outra história.
Invoco seu testemunho isento, meu prezado historiador, pois retroceder assim, de uma forma tão brusca, a um passado sombrio, perder todas as conquistas realizadas a duras penas, será um triste fim, será – agora sim, arrisco-me a dizer – o fim da história.
Não permitirei que apenas as mentiras e o testemunho de velhacos se perpetuem nas páginas da história. Desculpe-me se fui por demais prolixo e me estendi demasiado nesse meu relato, é que a situação assim exige.
N.A – Esse texto é uma reedição atualizada e "esmerilhada" de crônica publicada em 2006 no site da Carta Maior. Dedico essa "carta" aos meus professores do colégio 2 de Julho (1979-1982): Fábio Paes e Isadora, de História, e Wilson (o saudoso "Andorinha"), de Sociologia, que me ensinaram a importância de conhecer o passado para melhor entender o presente e a subverter a lógica das aparências, que pode cegar.