Entrevista de Flávio Koutzii aos jornalistas Guilherme Kolling e Paula Coutinho, do Jornal do Comércio, de Porto Alegre, publicada em 05.03.12.
(foto: Marco Quintana/JC)
Um dos quadros mais respeitados do PT gaúcho, Flavio Koutzii deixou o Palácio Piratini após um ano como secretário de Estado na Assessoria Superior do Governador, por razões pessoais. Fora do governo, ele elogia iniciativas do primeiro ano da gestão Tarso Genro (PT), como reajustes salariais ao funcionalismo e a busca de empréstimos para investir. Num contexto de crise internacional e cortes em países da Europa, Koutzii destaca medidas do petista para preservar direitos, nas quais ele inclui o projeto de reforma da previdência, barrado no Judiciário. Entretanto, nesta entrevista ao Jornal do Comércio, observa que o governo Tarso ainda tem “uma dívida” por não ter implementado o Orçamento Participativo - adotado no governo Olívio Dutra (PT, 1999-2002) e que deu destaque às gestões petistas na prefeitura da Capital.
Jornal do Comércio - Um dos temas caros ao governador é a participação popular. Mas o Orçamento Participativo (OP) ainda não foi implementado.
Flavio Koutzii - Implantar o Orçamento Participativo ainda é uma dívida do governo do Estado, (o OP) é um processo extraordinário.
JC - Mas outros mecanismos de participação foram criados na gestão. Não substituem o OP?
Koutzii - De jeito nenhum. Cada um tem o seu valor específico, podem ser até inovadores, mas não substituem (o OP). O Gabinete Digital, por exemplo, tem uma sintonia com possibilidades de comunicação virtual, que são cada vez mais atuais e necessárias. Mas o OP tem um elemento nuclear que consiste no vínculo direto entre o cidadão e decisões sobre uma parte do orçamento do Estado, através de um sistema organizado e interativo. Para muitos, se transformou num pequeno novo degrau de cidadania. Houve algumas deformações...
JC - Houve um certo aparelhamento ao longo dos anos?
Koutzii - Que, às vezes, nem era partidário. O sujeito virava “o cara do OP”. Acho difícil até haver atividade humana em que isso não aconteça. Mas (o OP) tem uma vitalidade fundamental. E cheguei a ler que há uma orientação explícita do governador para acelerar (sua implementação).
JC - O governador diz que um dos eixos do governo é tornar o Estado referência internacional em participação. Sem o OP isso é possível?
Koutzii - Acho que não.
JC - E de uma maneira geral, como avalia o governo Tarso e a conjuntura política do Estado?
Koutzii - A primeira coisa que chama atenção é a situação mundial. Nos anos 1990, houve a materialização das divergências entre o campo popular nucleado pelo PT e a nova onda neoliberal que elegeu seus presidentes - Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso. De lá para cá, já tivemos a gigantesca crise de 2008 e estamos desde o ano passado vivendo uma espécie de degradação profunda de grande parte dos países europeus. A Grécia está se transformando em um protetorado da banca europeia e alemã. Aquele modelo (neoliberal) está dando no que está dando. O fato de que os governantes foram substituídos por outros diretamente ligados à esfera financeira mostra que cada vez mais os interesses do mercado aumentam e cada vez menos os interesses e os direitos da população permanecem.
JC - Tarso Genro fala em “governos de joelhos para o capital financeiro internacional”.
Koutzii - É uma expressão utilizada por ele, assim como citou Chico Buarque: “Tornar essa terra um imenso Portugal”... Então, aqui as coisas se encontram, se as condições para governar o Estado são mais ou menos com as dificuldades que sabemos, de crise estrutural, então vamos ter duas “mágicas” iniciais: a primeira, caminhamos por um discurso de governo no qual não priorizávamos o lado da crise nem o habeas-corpus de alguns meses dando explicações. E isso balizou o jeito com que o governo vai se comportar. Criamos um ritmo de iniciativas e de lógicas, um privilégio, já que no primeiro ano de governo vamos alcançar uma série de resultados significativos, comparado aos anos anteriores.
JC - Quais resultados?
Koutzii - Anunciamos, antes de assumir, empréstimos na ordem de R$ 2,1 bilhões e eles se materializaram. Fomos o primeiro Estado a chegar ao Bndes (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e ao Bird (Banco Mundial), isso já estava elaborado no final da campanha (de 2010). Outra coisa muito marcante é a inflexão para dar um jeito nesta balança dura: como lidar com o mínimo de reposição salarial sem a unilateralização de investimentos. Conseguimos garantir a chegada dos empréstimos incluindo aquela pendenga de 20 anos que envolvia a CEEE. Não é um dinheiro do governo, mas permite também desafogar a situação. São resultados financeiros que garantem um patamar básico para incrementar certas linhas de investimento, como o das estradas.
JC - E o funcionalismo?
Koutzii - Oferecemos 10,5% para o magistério no terceiro mês do primeiro ano de governo. E no terceiro mês do segundo ano colocaremos mais 23%. Também informamos o nosso plano para 2014. Claro que existe essa polêmica sobre o índice de cálculo para alcançar o piso nacional (INPC ou Fundeb), mas é extremamente importante que o professor terá, descontando inflação, um acréscimo real de salário de mais de 50%. Claro que é pouco frente à gigantesca defasagem, mas é muito frente à capacidade de resposta parcial que vários governos deram. Ou seja, somos contrários à política que se desenvolve na Grécia e Portugal, a política de redução de direitos.
JC - Ao citar essas medidas, o senhor quer dizer que o governo não cortou e rompeu com o dilema “investir ou repor salários”?
Koutzii - Isso. Esse governo não está dando as costas para o magistério, pelo contrário, está propondo em direção a uma meta dentro de limites. Me incomoda um pouco essa lógica... O papel do sindicato é defender as ideias que ele considera adequadas, mas o papel de um governo ou de um agente político é discutir o sentido das ideias. Ou seja, ser do Cpers não quer dizer que a realidade não conta. Quando tentam deixar tudo igual, “nada é melhor, tudo é porcaria”, a direção vai se enfraquecendo.
JC - Isso pode ser um rompimento do Cpers com o PT?
Koutzii - Isso é uma ideia (relação PT e Cpers) que a direita desenvolvia muito nos governos Antonio Britto (PMDB, 1995-1998), Germano Rigotto (PMDB, 2003-2006) e Yeda (Crusius, PSDB, 2007-2010). Os núcleos mais conhecidos de dirigentes (do Cpers) tinham filiação no PT, hoje há um peso maior do que antes de partidos como o P-Sol e o PSTU. Mas esse dilema vale para todos (governos). Vivi isso como chefe da Casa Civil no governo Olívio, era especialmente sensível para mim, que tinha lutas junto ao magistério. Eles não vão romper com o partido, alguém pode achar que sim... Mas acho que há uma espécie de disjuntor que desliga um pedaço da realidade de alguns líderes sindicais. Coloquei o quadro mundial porque isso reforça a necessidade, mesmo para lideranças sindicais, de perceber quem são os que têm mais proximidade com parte dos valores que eles defendem e quem são os que têm absoluta distância disso.
JC - O governo Tarso deu reajustes e vai investir. Mas isso será feito com empréstimos. E o Estado já deve mais de R$ 40 bilhões. Até quando isso é sustentável?
Koutzii - O drama é real e estrutural. As receitas são diferentes: no governo anterior (Yeda Crusius) era o “déficit zero”, o caixa estar equilibrado e não aumentar o buraco. Nós estamos mais interessados no “buraco da vida de cada um”. É uma diferença gigantesca, por isso, acho muito válido esse esforço que fizemos. É claro, isso vai aumentar o volume da nossa dívida, mas destaco o fato de que o tema da dívida não tem solução nos termos em que está, nem para nós nem para os outros estados, é impagável. Não tem como escapar de uma renegociação da dívida nos próximos anos, alterando seus termos. Para começo de conversa, deixar de ter aqueles 13% obrigatórios (da receita do Estado para pagar a dívida com a União).
JC - Neste momento, aumentar a dívida pode ser positivo?
Koutzii - É positivo porque dinamiza a capacidade de investir, de ter um volume mais respeitável aos assalariados no Estado. Então, todos esses elementos são ativantes e positivos, com a ressalva de sermos obrigados a aumentar a dívida. Mas, ao mesmo tempo, existe um elemento da dinâmica econômica que ajuda em geral o Estado em vários compartimentos.
JC - O projeto de reforma da previdência de 2011 não é contraditório à tese de preservar direitos dos trabalhadores?
Koutzii - Não, pelo contrário. Estamos falando de um drama estrutural, um desequilíbrio profundo na arrecadação. Nossa tradição política sempre foi de tentar defender isso como um direito indiscutível das pessoas. Mas nos diferentes governos, quase ninguém conseguiu passar de uma preliminar. É singular e notável que esse governo, no primeiro ano, deu um primeiro passo no assunto mais difícil, que mexe com interesses legitimíssimos das pessoas. E graças ao arco de alianças mais amplo que lhe dá base - que outros governos tiveram, mas a prova de como era difícil é que provocava fraturas na sua base - consegue aprovar. Então, passo um, o Executivo projeta e envia; dois, o Legislativo aprova; três, o Judiciário bomba. A modificação de alíquota (de contribuição para a previdência, que foi reajustada, mas com um redutor para salários menores) foi o que os desembargadores contestaram. E tinha a criação da previdência complementar, uma medida razoável, mas o combate completo a isso tenta mistificar dizendo que é “privatização”, mas não era. Nosso projeto tinha uma cláusula específica para não acontecer o que houve outras vezes, Britto e Yeda criaram fundo previdenciário e, perdendo a eleição, resolveram pagar contas com esse dinheiro. Então, o projeto permite manter o Instituto da Previdência e não o desvitalizar a cada ano. Quero registrar de forma muito crítica essa decisão do Judiciário gaúcho. Não por ser um doutor que sabe mais de leis do que eles, porque não sei. A questão é um pouco mais profunda.
JC - Em que sentido?
Koutzii - Um tema dessa magnitude é central para a sociedade. A desmoralização completa ou a falência futura do sistema da previdência são uma derrocada para a sociedade. E o Judiciário nos fez voltar à estaca zero. O fundo complementar e um aumento pequeno de alíquota apenas estancam a hemorragia. É muito dramático. Certas decisões acabam desvitalizando a democracia, porque se os caminhos legais, institucionais, são esses e em um poder fundamental do tripé, que é o Judiciário, não passa... E já digo, preliminarmente, que provavelmente do ponto de vista de amparo legal não se tem dúvida. Mas também não se tem dúvidas de que as grandes Cortes decidem sobre as coisas com uma grande possibilidade de prosperar na sociedade para o lado positivo.
JC - O governo Tarso apresentou projetos de ampliação de incentivos fiscais via Fundopem. O PT mudou?
Koutzii - O PT não sei, o governo sim...
JC - E sua posição sobre os incentivos fiscais?
Koutzii - Continuo pensando o mesmo, prós e contras. A Grécia é a expressão mais aguda dessa lógica de concessão crescente de competências do Estado para o setor privado. Como está posto no caso da Andrade Gutierrez (na questão da Copa), que é emblemático. E esse é o padrão, não é uma exceção! Parecia uma sociedade secreta, não se comunicava, quase uma máfia, mamando em dinheiro público... Achei formidável a reação do Banrisul. É um fato ruim, mas legal do ponto de vista de maturidade política, a opinião pública entendeu que o banco estava correto. Como vai emprestar sem garantia? O que me impressionou foi a desfaçatez da empresa, que é uma multinacional, ter avaliado a questão com tanta ignorância e desprezo à realidade do Estado. Mas essa lógica chantagista - “e tu me dá tudo porque te darei a graça de construir esse negócio” - é a mesma que eu via das montadoras. Não há diferença na lógica de base. Pelo menos a montadora construiu e produziu. Agora (no caso da Andrade Gutierrez) temos uma situação em que não sabemos como vai terminar (se vai reformar o estádio Beira-Rio).