Da Coluna de Maria Inês Nassif, do Valor Econômico
Era o dia 22 de agosto de 1979. No plenário da Câmara, onde o Congresso se reuniria mais tarde para examinar a proposta de anistia do governo do general João Figueiredo - famoso por ter pedido para ser esquecido, depois de ter deixado o governo, e ter sido obedecido - 800 soldados à paisana ocuparam quase todos os 1200 lugares das galerias. Os manifestantes que ainda tentavam mudanças no projeto de anistia do governo - que perdoou só os crimes de sangue cometidos pelos próprios militares - ganharam os lugares de volta quase aos gritos. Às 14 horas, os soldados bateram em retirada.
As cadeiras no plenário para assistir ao espetáculo de imposição militar dos termos da anistia - que era mais auto-anistia do que qualquer outra coisa - talvez tenha sido a única conquista efetiva dos movimentos que se mobilizavam para restituir os direitos políticos dos adversários da ditadura. Desde o envio do projeto ao Congresso, em 27 de junho, até sua aprovação, 56 dias depois, imperou o ato de vontade dos militares, acatado pelos civis que formavam, no parlamento, uma maioria destituída de coragem e vontade.
Em tese de doutorado defendida em 2003 no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), intitulada "Dimensões Fundacionais da Luta pela Anistia", Heloísa Amélia Greco reconstitui, passo a passo, a aprovação da lei. O texto do projeto do governo foi enviado ao Congresso sem que ninguém da oposição consentida, o MDB, pelo menos oficialmente, tenha sido consultado. Na cerimônia convocada por Figueiredo, no Palácio do Planalto, para oficializar o envio do projeto, estavam presentes todos os ministros e toda a bancada de deputados e senadores do partido do governo, a Arena. O MDB boicotou a cerimônia para marcar uma posição contra um projeto que excluía setores importantes da oposição à ditadura de seus benefícios.
A Comissão Mista do Congresso Nacional que analisou a proposta foi escolhida a dedo. Dos 23 integrantes, 13 eram incondicionalmente fiéis ao governo. O presidente da Comissão, o arenista Teotônio Vilela, dissidente e partidário de uma anistia ampla, somente exerceria o seu voto no caso de empate, o que jamais aconteceu. O relator, Ernâni Satyro, seguiu à risca o roteiro traçado para ele. As emendas aceitas em seu substitutivo foram definidas no Ministério da Justiça, em reuniões com o ministro Petrônio Portela, o líder da maioria no Senado, Jarbas Passarinho, o líder da maioria na Câmara, Nelson Marchezan e o presidente do partido, José Sarney. Todas as votações da comissão cravavam um inevitável placar de 13 a 9.
Por maioria governista, entenda-se um Congresso plenamente constituído pelo Pacote de Abril do governo anterior, do presidente-general Ernesto Geisel. O pacote, baixado por força do AI-5, em 1974, criou os senadores biônicos (o terço do Senado escolhido indiretamente por colegiados estaduais) e redefiniu a composição da Câmara de forma a dar mais peso ao eleitorado do Norte e do Nordeste, regiões onde a Arena mantinha prestígio por meio de lideranças tradicionais de caráter patrimonialista. Produziu seus resultados na eleição de 1978. Em 1979, a Arena tinha 231 deputados, contra 189 do MDB; no Senado, eram 41 senadores arenistas - destes, 22 eram biônicos - e 26 pemedebistas.
O projeto do governo, aprovado pelo Congresso em 22 de agosto, foi uma obra solitária do governo militar, referendada por uma maioria parlamentar bovina, totalmente submissa ao poder. Mesmo o voto final do MDB ao substitutivo de Satyro não pode ser colocado na conta da concordância, ou da negociação - foi apenas o voto naquilo que sobrou. O substitutivo do MDB foi rejeitado no plenário, mesmo com a ajuda de 12 parlamentares arenistas; a emenda do deputado Djalma Matinho (Arena-RN), vista como uma opção menos pior que o projeto do governo, também foi rejeitada, mesmo com a ajuda de 14 dissidentes. O MDB entendeu que antes o substitutivo de Satyro do que nada - ainda assim, com a abstenção de 12 de seus 26 senadores e o voto contrário de 29 dos 189 deputados, que preferiram marcar posição contra a anistia limitada dos militares.
A anistia de agosto, aprovada pelo Congresso, perdoou torturadores. Beneficiou também os adversários do regime que pegaram em armas mas não tiveram sentença transitada em julgado. Os presos políticos condenados por luta armada, no entanto, cumpriram penas - depois reduzidas -, mas não foram anistiados. A ditadura designava os adversários que optaram pela luta armada como "criminosos de sangue". Não consta que tenham considerado da mesma forma os que torturaram e mataram a mando do Estado.
A anistia foi essa. Na última hora, na promulgação da lei, o general Figueiredo vetou a expressão "e outros diplomas legais" - passaram a ser anistiados só os punidos por atos institucionais. O veto a quatro palavras excluiu do benefício os militares, os sindicalistas e os estudantes punidos por sanções administrativas, pelo decreto 477 e por outras determinações legais impostas pela ditadura.
Este é, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF) em decisão proferida na semana passada, o "acordo histórico" feito pela sociedade brasileira: de um lado, a sociedade civil mobilizada em comitês que pleiteavam anistia ampla, derrotada; de outro, baionetas e maiorias forjadas por atos institucionais e Pacote de Abril. A autora da tese de doutorado cita, a propósito, uma frase do jornalista Aparício Torelly, o Barão de Itararé: "Anistia é um ato pelo qual os governos resolvem perdoar generosamente as injustiças e os crimes que eles mesmos cometeram". Foi isso.
O Brasil vai sentar no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos por conta dos crimes cometidos pela ditadura. A OEA pode condenar o país a anular a sua lei de anistia, a exemplo do que já fez com o Chile e o Peru, para punir os que torturaram e mataram. O STF que explique direitinho para a OEA esse complicado pacto em que a ditadura resolveu tudo sozinha.
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras