De novembro de 1979 a fevereiro de 1980, o Brasil viveu o chamado “Verão da Anistia”. Afinal, desde o início daquele ensolarado novembro, centenas de exilados começaram a retornar ao Brasil e inúmeros presos políticos foram libertados. No entanto, a “Lei da Anistia”, sancionada pelo General-Presidente João Figueiredo em agosto de 1979, não era exatamente aquela pela qual havia se mobilizado boa parte da sociedade brasileira, em uma das mais belas e intensas campanhas populares da nossa história. Afinal, além de não ser “ampla, geral e irrestrita” como reivindicava a sociedade organizada, a lei aprovada pelo regime dos generais também “perdoava” os torturadores e algozes do povo brasileiro. Porém, apesar disto, aquele verão foi uma estação de festa e teve em Fernando Gabeira o seu grande “muso”. Ao retornar de quase dez anos de exílio, divididos entre Chile, Cuba e Suécia, o ex-guerrilheiro causou um frisson nacional ao aparecer na Praia de Ipanema vestindo uma sumária tanga de crochê em tons de verde e roxo, que havia pegado emprestado de sua prima Leda Nagle. Naquele momento, em meio a imensa polêmica gerada pelo seu gesto, a declaração de Gabeira foi exemplar: “as pessoas, mesmo que não queiram, têm um corpo e ninguém pode fingir que é puro espírito enquanto está seminu” (Ah, bons tempos em que o Gabeira era "subversivo", crítico e contestador. Hoje ao vermos o nobre deputado verde aliado ao que há de pior na política carioca e nacional e a brandir um discurso neo-udenista, que faz o Lacerda sorrir de satisfação no além-túmulo, não dá para se ter nem uma pálida idéia do que ele foi e representou no passado). Hoje, trinta anos depois, com as proximidades de um novo verão que se prenuncia como o da caretice generalizada, pois já nasce com as marcas do proto-fascismo da legislação anti-tabagista e da onda neo-moralista que gera episódios como o da estudante da UNIBAN, não dá para deixar de lembrar desse longínquo e libertário verão do final da década de 1970.
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Em 1979, em quase todas as manifestações da Campanha pela Anistia, eram lidos em voz alta os pungentes e doloridos versos de “Marcha”, de Pedro Tierra (pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva), poeta e militante de esquerda que esteve encarcerado nas prisões da ditadura, entre 1972 e 1977. Reproduzo-os aqui, na íntegra:
Venho da pátria dos tormentos.
Venho de um tempo de crimes.
Venho das chagas que a noite
lavrou na carne dos homens.
Não pedirei perdão
à corte dos meus carrascos
pelo grito de rebeldia
arrancado do meu sangue,
pelo sonho,
pelo sonho,
pelas armas,
pela marcha do meu povo
contra os muros!
Como se desata o cereal da terra,
levanto meu corpo de trigo
do corpo estendido de Orocílio Martins
sementeira de fúrias e esperanças –,
sangrando nas ruas rebeladas de Minas.
Liberto meu canto de pássaro
da voz impossível dos mortos:
luz acesa no porão da treva,
memória enterrada do povo.
E canto pela boca destroçada
do Comandante Carlos Marighella
dez séculos depois do silêncio;
pela garganta emudecida
de Mário Alves,
grito eterno que anda;
pelos olhos vazados
de Bacuri,
estrelas sangrando na memória;
pelas cabeças cortadas
no vale do Araguaia,
terra de rebelião;
pelo peito metralhado
do Capitão Carlos Lamarca,
granito de sonho enterrado
entre as pedras do sertão;
pelo corpo mutilado
de Manoel Raimundo Soares,
nas águas do Rio Guaíba,
sangue dos ventos do sul;
pelas mãos atadas de Alexandre,
arados de terra livre;
pelo sangue derramado
de Aurora Maria do Nascimento,
promessa de amanhecer.
E me faço boca
de todas as bocas
assassinadas,
canto de todos os cantos
aprisionados,
sonho de todos os sonhos
submergidos
pela mão armada
dos carrascos do meu povo.
Hoje, o Poder se absolve dos seus crimes.
Mantém à sombra dos seus muros
os açoites e as vergastas.
Recolhe sob a manga verde-oliva
as mãos ensangüentadas dos verdugos
e espera...
E as mães aflitas do povo
tecem nos cegos teares da dor
um espesso tecido de agulhas infinitas:
quem responderá pela morte
dos meus filhos?
Quem responderá pelos torturados
até a loucura?
Quem assassinou a esperança
de Frei Tito?
Quem prestará contas ao meu coração
pelo destino dos devorados?
Pelas vidas, pelos sonhos
que a Noite transformou em cruzes?
Hoje, o Poder se absolve dos seus crimes.
Recolhe sob a manga verde-oliva
as mãos ensangüentadas dos verdugos
e espera...
Do ventre fecundo
das filhas do povo,
das cinzas dos ranchos,
da terra queimada,
das marchas, das greves,
das ruas feridas
nascerão seus julgadores!