Lembrando Neruda...

Em 23 de setembro de 1973, poucos dias após o golpe que derrubou o governo da Unidade Popular, morria no Chile Pablo Neruda. Poeta, Diplomata, Senador da República e militante do Partido Comunista do Chile, Neruda teve participação ativa nos acontecimentos políticos que marcaram a história de seu país, ao longo de boa parte do século XX. No último capítulo de seu livro de memórias, "Confesso que Vivi", escrito logo após os trágicos acontecimentos de 11 de setembro de 1973, ele fez um relato emocionado do drama que havia se abatido sobre o seu país e da morte de seu amigo e companheiro de muitas lutas, o presidente Salvador Allende, tendo falecido pouco depois de colocar o ponto final em seu derradeiro livro. Após sua morte, a casa de Neruda foi invadida por agentes da repressão e todos os seus pertences foram revirados. Porém, o seu enterro, apesar de todo o aparato repressivo da ditadura do Gal. Pinochet, acabou se transformando em uma das últimas manifestações contra o regime recém-implantado, na longa noite que se abateu sobre o Chile. Este enterro foi retratado de forma pungente nos instantes finais de "Chove sobre Santiago", do diretor Helvio Soto, em uma das cenas que mais me emocionaram até hoje em um filme. Para lembrar Neruda, publico aqui um trecho de um de seus poemas mais conhecidos, "Farewell":

Amor el amor que se reparte
en besos, lecho y pan.

Amor que puede ser eterno
y puede ser fugaz.

Amor que quiere libertarse
para volver a amar.

Amor divinizado que se acerca
Amor divinizado que se va.

***************

Ya no se encantarán mis ojos en tus ojos,
ya no se endulzará junto a ti mi dolor.

Pero hacia donde vaya llevaré tu mirada
y hacia donde camines llevarás mi dolor.

Fui tuyo, fuiste mía. Qué más? Juntos hicimos
un recodo en la ruta donde el amor pasó.

Fui tuyo, fuiste mía. Tú serás del que te ame,
del que corte en tu huerto lo que he sembrado yo.

Yo me voy. Estoy triste: pero siempre estoy triste.
Vengo desde tus brazos. No sé hacia dónde voy.

...Desde tu corazón me dice adiós un niño.
Y yo le digo adiós.
Clique para ver...

Laerte Braga: "É economia seu estúpido"

Jornais ficam mais burros a cada dia. Temem a diversidade ideológica, opiniões diferentes das suas. Portanto, repetem sempre velhas fórmulas, as mesmas opiniões. Mas, andam refletindo sobre seu futuro. Acreditam que o motivo da notória queda de circulação e da perda de receita publicitária se deve aos novos meios. O maior diário carioca, em novo posicionamento de marca, encomendou a uma “ligada” agência o material publicitário para esta divulgação. Em anúncio, afirma que o que vale é o conteúdo que faz, não importa como é produzido, ou o quê e para quem. Para ser mais claro, ao falar da informação, diz coisas “inteligentes” como: “se existisse comestível, nós cozinharíamos”. Interessante abordagem, talvez deseje lembrar que jornais já são conhecidos por embrulharem peixe, talvez em breve estejam comercializando o produto inteiro. Por estas e outras não há lugar na imprensa para um veterano como o jornalista Laerte Braga, hoje publicando suas precisas observações apenas na mídia alternativa, muitas vezes somente em listas de e-mails, onde recebi este texto sobre a atual crise financeira americana, de longe uma das melhores abordagens sobre o assunto. Compartilho com vocês:


“É ECONOMIA SEU ESTÚPIDO”

Laerte Braga

Quem se recorda do debate entre os candidatos Bill Clinton e George Bush pai, em 1992, vai se lembrar dessa frase do candidato democrata, decisiva para sua vitória sobre o Bush. Bush pai tentava a reeleição. Ele e Jimmy Carter foram os únicos presidentes desde 1960, que não se reelegeram (considerando que a eleição de Lyndon Johnson seria a reeleição de John Kennedy, assassinado em 1963).

"É economia seu estúpido". Foi o que Clinton respondeu a série de explicações do pai sobre guerra do Iraque, terrorismo, todos esses chavões que norteiam os presidentes republicanos e ao final acabam levando o país a uma realidade como a de hoje.

Os Estados Unidos assumiram o papel de "condutores da humanidade para o paraíso" ao final da Segunda Grande Guerra e depois de quatro governos sucessivos de Franklin Delano Roosevelt, democrata, o último deles completado por Harry Truman.

O "new deal" foi a primeira grande intervenção do Estado na economia. Fez frente à crise de 1929 e basicamente tirou o país da quebradeira geral, o que chamaram de "grande depressão", através de obras públicas e intervenção do Estado na economia.

O mercado havia se enrolado de tal forma que não conseguia responder ao pânico que tomou conta dos EUA, gerou desemprego e uma das mais altas taxas de suicídios numa só época, num só período, como conseqüência do grande desastre.

A Segunda Grande Guerra foi outro elemento a tirar os EUA da crise. Um parque industrial formidável sustentou os aliados ocidentais a partir da Grã Bretanha e a contrapartida do bloco soviético fez com que ao final do conflito duas grandes superpotências emergissem e dividissem o mundo em dois.

O fim da União Soviética criou a sensação entre os norte-americanos que anjos haviam descido do céu, punido o mal e ungido o bem, com catedrais distintas. Uma em Washington, outra em Wall Street.

Esqueceram-se de ler Mao Tsé Tung. "O imperialismo é um tigre de papel". Boa parte da economia norte-americana depende hoje da China. Os poderosos escudos antimísseis construídos desde o governo Reagan são insuficientes para garantir a benção dos anjos. Não protegem por dentro.

A economia dos EUA é mais ou menos como uma casa dos três porquinhos, uma história infantil centenária e que com certeza todos já ouvimos. O lobo chega e sopra, joga as paredes no chão e os porcos irmãos são obrigados a correr e a construir outra casa até que consigam segurar os sopros do lobo.

O problema aí é que o lobo está dentro de casa e plantado no centro das decisões, logo é ele quem decide o material da "construção". Atende pelo nome de mercado.

Quando se fala em Banco Central nos EUA imagina-se uma instituição bancária do governo a controlar entre outras coisas juros e emissão de moeda. Não é não.

O Banco Central dos Estados Unidos é uma associação de bancos privados que detém o poder de emitir moeda e definir juros. Hoje 32% das ações do FED (Federal Reserve) pertencem ao Chase Manhattan Bank e 20,51 pertencem ao City Bank. Duas instituições bancárias privadas controlam a economia do país. Em toda a sua história o FED jamais foi submetido a uma auditoria.

O que chamam Sistema Federal de Reserva foi transformado em lei pelo presidente Woodrow Wilson, no final de 1913 e permanece intocado até hoje. Dois presidentes desafiaram esse poder. Roosevelt e Kennedy.

A emissão de moeda pelo FED se dá a juros inferiores a 3% para banqueiros, que repassam em forma de empréstimo ao governo federal dos EUA a juros de 7,5% a 8%. Qualquer governo nos EUA trabalha para pagar o que chamam de "serviço da dívida".

A isso se junta a tal lógica do capitalismo. Que é mais ou menos como a necessidade de se ter um estoque de produtos, bens e serviços em constantes transformações e inovações para que o distinto público financie todo esse complexo mafioso, tanto quanto ampliar esse mercado, estender-se ao mundo inteiro e tornar-nos a todos, países e povos, consumidores e pagadores dos juros do FED.

Plantaram os alicerces da casa com papéis. Montaram um extraordinário poder militar com o objetivo de desestimular qualquer reação a essa ordem política e econômica e criaram uma espécie de mundo Walt Disney para os cidadãos norte-americanos, "o mundo de Truman", irreal, fictício, que exportam sob a forma de democracia, liberdade, justiça, o tal american way of life, embalado em sanduíches da Casa McDonalds e engarrafado na tonificante coca cola.

Fica mais ou menos assim. O cara assiste a um filme em que Cary Grant e Débora Kerr marcam um encontro no último andar do Empire State Building, alguns anos depois de terem se encontrado num cruzeiro marítimo, mas um deles se acidenta quando a caminho e não chega. Ou vai para dentro da tela na versão mais realista de Woody Allen.

Vitório de Sicca fez melhor em "ladrões de bicicletas".

É o caso típico de quem faz e quem deixa. Depois é só ir berrar na porta de Wall Stret com o "NEW YORK TIMES" nas mãos, mostrando que os fundos de pensões e aposentadorias, todos privados, foram para o buraco.

A verdadeira lógica é simples. Um trabalhador na Indonésia trabalha vinte horas por dia em condições subumanas e a Reebok vende tênis em que agrega toda essa parafernália capitalista a embasbacados consumidores/escravos em todos os cantos do mundo.

Acumula os dividendos da escravidão.

Se o indonésio berrar, o salário de um dólar por dia vira um monte de marines em missão de paz e combate às drogas.

Só na semana passada nos arredores de Wall Street, ou seja, naquilo que está umbilicalmente ligado ao mundo dos papéis sem lastro, 50 mil pessoas perderam o emprego e viram suas aposentadorias e pensões embarcarem numa viagem sem volta numa nave espacial da NASA.

Mercado. Grandes empresas. American way life. Hollywood.

No topo dessa montanha George Walker Bush decidindo o que é bom e o que é ruim para o mundo.

Palestinos, afegãos, iraquianos, o governo Chávez, Evo Morales, Fernando Lugo, Rafael Corrêa, o povo paquistanês, viram a encarnação de Lúcifer em combate com o anjo que abençoou Wall Street.

Sarah Palin, governadora do Alasca e candidata a vice-presidente na chapa do republicano John McCain, considera tudo isso missão divina.

E até o pacote de 700 bilhões de dólares para salvar os bancos da falência e manter o modelo, nem que seja com tapumes azuis e verdes, para esconder o sombrio da perversidade capitalista.

De quebra querem vender o pacote de salvação para o resto do mundo, no pressuposto que é preciso ajudar o gigante do norte, num momento que as pernas estão trôpegas e cambaleantes.

Nesse tipo de negócio Pastinha nem passa perto. Não conhece nada além de milzinho para sentar em cima e uma semana na praia para esquecer outro papelório em desajuste com os negócios, mas dentro do mercado.

George Bush pai perdeu para Clinton no momento que não soube responder à afirmação do democrata. "É economia seu estúpido". Não faz a menor idéia do que seja isso.

Só o colar da senhora McCain usado na convenção do Partido Republicano custou 300 mil dólares. A senhora em questão é do meio oeste e voluntária na ajuda a crianças pobres do resto do mundo. Promove pipocas dançantes.

Como afirma César Benjamin, "Karl Marx manda lembranças".
Clique para ver...

Não me perguntes onde fica



Clique para ver...

Diálogo de traíras

Clique para ver...

A Disneylandia de bombachas


A identidade que o senso comum registra do gaúcho é uma das tantas tradições inventadas, pelo mundo afora. O mito gaúcho é uma narrativa fixa de três combinações histórico-culturais: o republicanismo farroupilha, um comtismo crioulo, e um rústico positivismo estancieiro. A vulgarização fetichizada disso é o que chamamos de “disneylandia de bombachas”.

Cristóvão Feil*

“Quando se corre muito, há que parar e esperar pela alma” (Provérbio dos índios Guarany, antigos habitantes do Brasil meridional).

Max Weber dizia que ninguém nasce religioso, mas torna-se religioso. Simone de Beauvoir sustentou que não se nasce mulher, mas torna-se mulher. Parafraseando os dois, diremos que, igualmente, ninguém nasce gaúcho, alguns se tornam gaúchos.

O gaúcho, segundo a mitificação tradicionalista, é o cálculo acumulado de uma imposição cultural inventada e cevada no ideário rude de uma certa elite do Rio Grande do Sul. Mendes Fradique escreveu, no início do século XX, a História do Brasil pelo método confuso, pois a sabedoria “gauchista” tentou arremedá-lo contando a história do Rio Grande do Sul. A confusão, e não o método, inspirou a plataforma do tradicionalismo de fancaria.

Os primeiros esboços desse constructo mental que procura representar o tipo ideal dos indivíduos nascidos na região mais meridional do Brasil foram dados por jovens líderes políticos republicanos, ainda no final do século XIX, todos seguidores do positivismo de Auguste Comte. Júlio Prates de Castilhos, fundador do Partido Republicano Rio-grandense (1882), foi um dos que passaram a fazer uma lenta e continuada apropriação dos despojos da Revolução Farroupilha (1835-1845). A modernização conservadora que propugnavam, e depois levaram a efeito na Província do Rio Grande do Sul, através dos governos de Castilhos e Borges de Medeiros, e mais tarde no resto do Brasil, com Getúlio Vargas, vinha a cavalo e estava adornada de toda a memória heróica dos revoltosos farroupilhas, ainda que respingado pelo sangue coagulado da escravidão.

A influência do positivismo
O pensamento comtiano curiosamente vicejou no pastoril cenário austral brasileiro. Embora positivista e reacionário no plano geral da modernidade, numa província xucra e áspera como o Rio Grande do Sul, o comtismo representava um verniz de civilidade e institucionalização republicana. Havia, pelo menos, algum pensamento. Basta saber que, ainda no período 1893-95, na chamada Revolução Federalista, foram mortos mais de 10 mil pessoas, entre civis e militares de ocasião, numa Província que contava com 1 milhão de almas, onde a secção da carótida por lâmina branca (degola) de prisioneiros era prática comum em ambos os lados - liberais e republicanos. Joseph Love chega a afirmar que, no Rio Grande, no final do século XIX, ainda vagavam “hordas semibárbaras egressas do regime agro-pastoril”. Pelear era um meio de vida e de morte; especialmente, onde não havia trabalho assalariado regular no campo.

Comte, um dos tantos pensadores positivistas, concebia um mundo republicano, positivo (em relação ao ideal burguês da Revolução Francesa), organicista, não-estático, em evolução através de estágios civilizatórios, e com valores dispostos numa hierarquia. Havia o dogma da superioridade do amor sobre a razão. As mulheres eram superiores aos homens, por diversas razões, mas a principal era a do suposto predomínio dos sentimentos afetivos sobre os valores da razão, na alma feminina. Os negros eram superiores aos brancos. Os latinos eram superiores aos anglo-saxões. Todos pelas mesmas imaginadas razões altruísticas e de valoração puramente moral.

Uma mitologia do mundo rural
O segundo e definidor impulso do tradicionalismo crioulo foi dado somente a partir de 1947, por jovens de classe média do grêmio estudantil do colégio estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Um movimento urbano, estudantil, pequeno-burguês, reivindicando e propondo uma mitologia do mundo rural, cuja unidade econômica era o universo da estância latifundiária agro-pastoril, seus símbolos, sua oligarquia militarizada, suas relações objetivas de trabalho, onde a acumulação primitiva estava fundada na escravatura, no abigeato, em terras havidas pela força das armas, pelo bandoleirismo, pelo saque, pelas vantagens da fronteira móvel, pela ausência do Estado, e pelo contrabando de mão-dupla; na esfera subjetiva, a estância foi matriz de relações de trabalho com conflitos não-manifestos, onde a relação patrão-peão estava dissimulada por laços de sociabilidade marcados pela mútua convivência em peleias contra os “castelhanos” ou contra facções políticas rivais. Relações de trabalho economicamente opostas, ainda não agudizada pelas contradições de classe, naqueles perdidos confins de coxilhas, ventos e horizontes sem curvas como o mar, mas que, no plano subjetivo é fator de solidariedade, coesão social e que tende a favorecer a unidade política.

Barbosa Lessa e Glaucus Saraiva acabam sendo os intelectuais orgânicos do chamado movimento tradicionalista gaúcho. Um oxímoro: “movimento tradicionalista”. São palavras de sentido oposto: tradicionalismo pressupõe algo fixo no tempo; logo, não há movimento. Assim foi, e é. Eles, primeiro, recuperam o vocábulo “gaúcho” que sempre teve qualificação negativa, sendo sinônimo de desajustado social, um desclassificado teatino, guacho, peão andarilho, etc. Antes do re-cozimento da história, é preciso apresentar identidades, heróis, um verniz cultural, uma bravura, própria das solenidades da origem, na luz sem sombra da primeira manhã. Entretecer as narrativas que montarão o imaginário da “pequena pátria” (Comte) carente de identidade. Ao fazê-lo, emprestam-lhe um passado heróico de glórias infinitas, cujas ilustrações vivas, que o saber histórico não deixa mentir, são as revoluções por causas nobres e justas. Sendo a principal delas a Revolução Farroupilha de 1835 a 1845, com seus personagens míticos, sua bandeira republicana e autonomista, mesmo escondendo a ausência de uma consigna abolicionista.

A história como lenda
Escondem, aliás, tudo que possa cheirar a povo, à autenticidade das manifestações populares, seja do branco despossuído, do negro, do índio e da mulher. É carimbado com o selo do tradicionalismo somente a memória do regime patrimonialista latifundiário ou da história convertida em lenda das revoluções sulinas. Com isso, a história transforma-se numa redução narrativa degradada. Já não é mais história, mas fábula, lenda, alegoria. O passado é cuidadosamente recortado numa seletiva representação de fatos deformados ou exagerados. A invenção da tradição, como cálculo político de identidade e dominação, agora é um mosaico de fatos positivos prontos para serem exibidos como espetáculo, esquecendo os aspectos sempre revolucionários do republicanismo e dos elementos modernos do comtismo, como o respeito à mulher e ao negro.

Eles operaram com um pau de dois bicos: de um lado, uma expropriação da história; de outro, a montagem de uma representação histórica. Paixão Côrtes, um dos idealizadores do tradicionalismo de espetáculo, admite que “o Rio Grande do Sul é um dos Estados brasileiros mais pobres em folclore”, e confirma: “o que assistimos é o culto das nossas tradições e não a vivência do folclore” (in jornal ZH, 22.08.1977). O tradicionalismo de espetáculo - inventado e curado nas charqueadas da ignorância - substituiu o folclore como fonte autêntica de manifestação popular na arte, na música, na poesia, nas cantigas e jogos infantis, na dança de perdidas origens, no artesanato, nas narrativas orais das tantas etnias que cimentam a cultura meridional do Brasil, como os povos europeus, o judeu, o libanês, o palestino, o negro de diversas extrações africanas, e os indígenas que tem uma história riquíssima de vida pré-colombiana e depois com a experiência das reduções jesuíticas, na região missioneira.

O estereótipo do tradicionalismo
A cultura do Rio Grande do Sul é muito mais rica do que o estereótipo do tradicionalismo fetichizado. O tradicionalismo crioulo é excludente e autoritário, sufoca todas as outras manifestações culturais de um Estado múltiplo, colorido de etnias, artes, linguagens e imaginários, parecendo-se com um corredor que se recusa a esperar sua alma. Uma das provas desse fenômeno nocivo da hegemonia unidimensional do tradicionalismo é o da culinária, onde o churrasco parece ser o monarca das mesas sulinas. Existe até uma lei estadual que o consagra como “comida oficial do Estado”. Nada mais inútil e tolo. E as ricas e saborosas culinárias das tantas etnias que temperam a mesa sulina? Numa região que teve nas charqueadas a base da sua economia, por longos decênios do século 19 e 20, o saboroso charque é pobremente servido de uma única forma, o “arroz de carreteiro”.

O tradicionalismo unidimensional e monotemático é um fator de inibição da criatividade e da livre manifestação de tantas culturas em um solo generoso e multitudinário. Uma prova da má consciência do tradicionalista de espetáculo é a relação difícil e conflituosa que sempre tiveram com os intelectuais sulinos. Ignoram, por exemplo, Érico Veríssimo, o escritor que construiu a maior e melhor narrativa literária de uma região brasileira, teceu tipos inesquecíveis e que vivem entre nós como se fossem de carne e osso, tamanha a sua sensibilidade, força artística e exemplo ético. Ignoram Pedro Weingärtner, José Franz Lutzenberger e Vasco Prado, para citar alguns artistas plásticos de épocas diferentes, mas que tiveram como temática pictórica e escultural o homem e a alma do Rio Grande, nos cenários da querência pampeana, missioneira e serrana, nos utensílios, no vestuário, nos instrumentos de trabalho, nos hábitos, no cavalo, nas vacarias, nos aperos, etc., mas sem convergir para o fantasioso mundo artificial do tradicionalismo de espetáculo.

O uso da bombacha tem a sua introdução nos Pampas (seja brasileiro, argentino ou uruguaio) por uma dessas ironias do destino (e do oportunismo comercial dos ingleses): conta o pesquisador uruguaio, Fernando Assunção, que durante a guerra da Criméia (1854-56), as fábricas inglesas produziram um grande excedente de uniformes para o exército da Turquia, o qual era ornado pelas tais calças bufantes, e como o conflito teve curta duração, os comerciantes ingleses resolveram desová-las para as tropas da Tríplice Aliança na guerra contra Solano Lopez, do Paraguai.

A "ideologia do gauchismo"
Alguns críticos do tradicionalismo de espetáculo exageram ao classificá-lo como uma “ideologia do gauchismo”. Não é nesse brevíssimo artigo que se debaterá a interessante polêmica, mas, desde já, não adotaríamos tal categoria para tais propósitos. Trata-se de uma mitologia tão pobre e mal ajambrada que seria elogioso classificá-lo como “ideologia”, de resto, uma categoria com múltiplas noções. Mas, sem dúvida, funciona como uma usina de produção de verdades, que preenche o vazio do desencantamento do mundo, fortalecendo o senso comum em detrimento do senso crítico. Cumpre a função de cobrir as lacunas e buracos de um imaginário popular que tem as ilusões cada vez mais erodidas pela pós-modernidade. Se não é um partido político na forma, milita politicamente em favor de uma “ordem” para todos, e um “progresso” para os eleitos.

Num mundo fetichizado pela miséria da mercadoria, os espelhos são inutilizados a tantos quadros por segundo. O homem, já sem espelho, auto-imagem, auto-referência, não se reconhece no mundo das coisas. É quando o tradicionalismo de espetáculo providencialmente estende espelhos simbólicos que oferecem um conforto identificador, um repouso ôntico, ao homem-multidão. Agora ele reconhece-se, agora ele identifica-se, ainda que na fantasia pilchada de uma ilusão galponeira. Tivesse bala na agulha, ousadia, empreendedorismo, o movimento tradicionalista gaúcho (MTG) poderia associar-se à Walt Disney Corporation no sentido de negociar o direito de ser objeto da dramaturgia materializada em parques temáticos e embalsamar mitologias e histórias. Uma mega disneylandia de bombachas é a aspiração mais legítima do tradicionalismo de espetáculo. A estância-fetiche como sagração da vida boa, e o gaúcho, qual quixote temporão, se defendendo na coxilha da vida com um peleguinho já deslanado e a ferrugenta espada do tradicionalismo.

(*) Cristóvão Feil é sociólogo e ensaísta. Nasceu no Rio Grande do Sul.

====================
Mais um 20 de Setembro, data comemorativa da Revolução Farroupilha. Dia em que a capital, Porto Alegre fede a churrasco e bosta de cavalo!

Comemoramos a derrota para as tropas imperiais e pior do que isso, uma traição: assassinato na calada da noite dos Lanceiros Negros. Se por um lado tivemos momentos de heroismo, crédito deve ser dado aos peões e não seus patrões.

Serão reproduzidos os textos de Cristovão Feil, da série Porque o Rio Grande é assim! A desconstrução desta lorota do gauchismo deve seguir, pois nem todos neste estado pastam de quatro nas coxilhas!
Clique para ver...
 
Copyright (c) 2013 Blogger templates by Bloggermint
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...