A imprensa tem o dever de informar, e não é meu papel criticá-la nesse sentido. Só que às vezes o que se tem de menos é informação, mas sobram análises fundamentalistas e nada isentas. Alguém pode me chamar atenção de que exigir isenção é tolice, porém seria interessante fornecer mais informação. A cobertura da mídia em relação aos cartões corporativos sofre desse mal. Se não fosse a blogsfera, que tem ajudado a melhorar a qualidade da informação, o déficit de informação seria gigantesco. O problema é que pode levar parcela da sociedade a acreditar que menos transparência é bom. Digo isso porque há sinais de que parte da opinião pública (ou publicada como preferirem) adquiriu uma certa resistência à utilização dos cartões corporativos. A forma com que o tema foi colocado até agora pode levar o cidadão comum (inclusive a classe média instruída) ao erro de preferir o retorno da sistemática antiga: o servidor deverá portar dinheiro e trazer notas fiscais e papéis para justificar os gastos.
Os cartões corporativos do governo são um avanço para a administração pública. Ingenuidade é imaginar que papel e dinheiro na caixinha dos órgãos públicos para gastos com suplementos de fundos seriam uma melhor solução para promover transparência das despesas para a sociedade. A sistemática anterior é obsoleta e ficou para trás. Nos tempos da informática, os cartões corporativos permitem controlar mais eficazmente os gastos de servidores públicos no trabalho. Como tudo fica registrado, o usuário não poderá alegar futuramente que não realizou tal despesa. Portanto, cartão corporativo eleva a transparência. Pode-se ser contra ou a favor do governo, mas elevar a utilização do cartão é uma medida acertada.
Isso não quer dizer que não possa existir má utilização dos cartões corporativos. As notícias da imprensa nas últimas semanas mostraram indícios de que algumas despesas com cartões não foram corretas. A questão é que não há evidência de que esse seja um problema específico do cartão corporativo. A ausência de cartão não impede que despesas sejam realizadas incorretamente. Não há razão para supor que uma despesa realizada indevidamente com cartão corporativo não teria sido com a sistemática de portar dinheiro e comprovar posteriormente o gasto. A diferença é que a identificação do dinheiro gasto com cartão é feita com maior agilidade. Pode-se saber mais rapidamente dos desvios.
Antes da disseminação dos cartões corporativos na estrutura do governo federal gastava-se mais com a rubrica de suplementos de fundos (que envolvem os cartões corporativos e as chamadas contas tipo B – dinheiro nas caixinhas dos órgãos públicos). Prova disso é que as despesas nessa modalidade foram bem superiores nos anos de 2001 e 2002, em que o governo FHC gastou R$ 213,60 milhões e R$ 233,2 milhões respectivamente. Com maior utilização dos cartões, essa despesa caiu em 2003 para R$ 145,1 milhões; em 2004 de R$ 145,9 milhões: em 2005 de R$ 125,4 milhões; em 2006 de R$ 127,1 milhões; e no ano de 2007 em R$ 176,9 milhões. O governo diz que a elevação das despesas foi resultado de despesas extraordinárias como dois censos do IBGE em regiões isoladas, Jogos Pan-americanos e ações especiais da Polícia Federal. A explicação é razoável, quem quiser contestar que apresente dados mais consistentes, pois isso ainda não ocorreu.
A idéia de que houve uma explosão de gastos com cartão corporativo, sem contextualização, não é justa. Como justiça é algo utópico, a cobertura deveria apresentar simplesmente mais informação. E deixar que a opinião pública decida sozinha. Afinal, somos todos adultos. Análises distorcidas, fundamentalistas e com pouca informação, não ajudam em nada a formação de opinião. O que os números mostram é que houve uma redução nas despesas gerais de suplementos de fundos, não o contrário (como a cobertura jornalística tenta passar). Evidentemente, se há maior uso do cartão corporativo, sua despesa cresce. Mas não houve elevação do gasto geral na modalidade de suplementos de fundos. Isso é também uma informação. É uma informação tão relevante quanto aquela dos desvios (embora possam ser menos sensacionalistas). Ajudariam ao cidadão comum avaliar a verdadeira dimensão do cartão corporativo.
No caso do uso do cartão corporativo, é preciso separar o joio do trigo. O que é abuso daquilo que é absolutamente normal. A cobertura da imprensa deve conseguir separar gastos legítimos dos ilegítimos. O que se vê é uma corrida dos jornalões para apresentar todas as despesas com cartões corporativos, sem uma devida análise, como se fossem todos ilegítimos. O noticiário cobriu de gastos com a família do presidente Lula como se fossem ilegítimos, mas não deu qualquer destaque às explicações do governo (ver aqui as explicações do Ministro Chefe da Segurança Institucional - Má fé da imprensa). Nesse caso, o único erro que parece ter havido por parte do governo foi a publicação dos gastos no sítio Portal da Transparência, pois são informações que deveriam ser realmente sigilosas.
Compreendo a ansiedade da sociedade, que exige sempre mais transparência (não menos), mas não há qualquer cabimento publicar na internet, gastos do presidente, da segurança de seus familiares ou mesmo de ministros mais importantes do governo. Transparência é sempre desejável, mas há limites. Ninguém está falando que não deva ter controles (TCU, CGU ou alguma comissão especial do Legislativo), mas não deve estar disponível para quem queira acessar. Há razões de Estado que merecem prevalência nesse quesito. A segurança dos mandatários é uma delas. O governo pecou pelo excesso de transparência.
Um exemplo do absurdo na cobertura jornalística foi destacado pelo Blog do jornalista Josias de Souza, hospedado no sítio da Folha de São Paulo. O jornalista divulgou gastos do Planalto, como padarias, supermercados, casa de carnes. E sugeriu que foram gastos ilegítimos, pois os cartões corporativos seriam apenas para gastos emergenciais. Finalmente, o jornalista sugere que deveriam ser realizadas licitações públicas, pelo menor preço, para comprar os mantimentos e bebidas que servem as instalações do presidente. O pior que ele se diz espantado. Espantado estou agora com essa tese ridícula de que o presidente deveria comer carne licitada pelo menor preço. Tudo direitinho, publicado no Portal da Transparência. Realmente, a discussão tem pouca racionalidade e muito sensacionalismo. Ninguém é obrigado a gostar do governo, como também do presidente Lula, que é bem avaliado, mas um pouco de bom senso e serenidade não fariam mal.
Se há mau uso do cartão corporativo, quem fizer que assuma as conseqüências, e pronto. Porém, é preciso ser razoável. Não é possível condenar qualquer despesa simplesmente por causa do cartão corporativo. A maioria das despesas com o uso do cartão é legítima, inclusive daquelas realizadas com saque em dinheiro. Não se aprende muito transformando o tema dos cartões em bandeira ética ou instrumento de luta política. Parece que alguns, inclusive da imprensa, embarcaram nessa onda.
Se o problema for a simples luta política, seria desejável um pouco de isenção na cobertura. Como isenção é algo praticamente impossível, talvez mais informação e equilíbrio. Destacar os gastos realizados pelo Governo Serra, por exemplo. Conforme dados coletados pelo SIGEO (Sistema de Informações Gerenciais da Execução Orçamentária), informados no sítio do IG pelo Conversa Afiada do jornalista Paulo Henrique Amorim, em 2007 foram gastos mais de R$ 108 milhões em cartões corporativos do governo Serra. Desse total, mais de R$ 48 milhões foram saque em dinheiro, ou seja, 44,58% do total. Comparando com o governo federal, que tem em sua estrutura o IBGE, a Polícia Federal, a ABIN e outros órgãos que usam intensamente cartões corporativos (inclusive saques em dinheiro) pela sua especificidade, os valores do governo Serra são substantivos. Apesar do líder do PSDB na Câmara dos Deputados, Antônio Carlos Pannunzio, negar a existência dos cartões, o Secretário da Casa Civil do Governo Serra, Aloysio Nunes Ferreira, confirmou sua existência e defendeu o uso, sob o argumento de que facilita a identificação da despesa. Ou seja, seria um instrumento mais transparente.
Da mesma maneira, é dever da imprensa informar - e já que está tudo publicado no sítio do Portal da Transparência -, que o segurança do ex-presidente FHC, Eduardo Maximiano, em um único dia, 06/08/2006, encheu o tanque de gasolina do carro seis vezes. Pelos valores envolvidos, o tanque estava bem vazio. Na verdade, considerando o valor mais alto obtido pela pesquisa semanal de combustíveis da ANP (Agência Nacional de Petróleo) em Higienópolis (SP), local em que foi usado o cartão, é possível que o tanque também seja maior que o encontrado nos carros normais. Há ainda situações que o segurança do ex-presidente encher o tanque de gasolina algumas vezes até quando o ex-presidente estava em viagem ao exterior, como no dia 30/10/2007. Tudo registrado, no Portal da Transparência.
A análise política não tem espaço para a ingenuidade. Por essa razão, não espero que a imprensa forneça mais informação para seu público. A informação que ela fornece é filtrada com seus interesses maiores. O que é uma pena. Porém, o mínimo que se exigiria é uma análise mais equilibrada e razoável. O que não pode acontecer é que o instrumento do cartão de corporativo caia no desuso, voltando-se para os métodos obsoletos e pouco transparentes. Ao se fazer uma cobertura condenando qualquer despesa com uso do cartão corporativo, sem distinção, corre-se o risco de em vez de aprimorar o uso dos cartões passar-se a condena-los. O que seria um retrocesso, pois implicaria em menos transparência. Isso não significa que não se deva controlar mais eficazmente sua utilização, principalmente no tocante aos saques em dinheiro (que, em certas ocasiões, é a única forma de realizar a despesa), bem como sua distribuição. A tecnologia dos cartões eleva a transparência dos gastos públicos. Certamente não representa obstáculo.