Na Receita, servidor crê estar acima do bem e do mal

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  • terça-feira, 24 de dezembro de 2013
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  • POBRE CONTRIBUINTE
    Na Receita, servidor crê estar acima do bem e do mal  
    O brasileiro que precisa resolver alguma pendência com o Fisco deve se preparar para um calvário marcado por desrespeito e autoritarismo

    DIEGO AMORIM



    Félix toma o café servido pela mulher, Marlene. Ele saiu de casa às 4h da manhã atrás de atendimento do Leão (Janine Moraes/CB/D.A Press)
    Félix toma o café servido pela mulher, Marlene. Ele saiu de casa às 4h da manhã atrás de atendimento do Leão


    Eliomar Cunha pagou os impostos, mas continua na lista de inadimplentes (Janine Moraes/CB/D.A Press)
    Eliomar Cunha pagou os impostos, mas continua na lista de inadimplentes


    Na televisão sem foco e sem volume, imagens de filmes e novelas repetidas tentam anestesiar quem aguarda atendimento no posto da Receita Federal em Brasília. No balcão onde, em tese, o cidadão deveria ser bem informado, servidores públicos demonstram pouca paciência. “Quem falou para vir aqui? Vou entrar no site e provar que não é aqui”, dizia um deles, irritado, diante de um acuado senhor que só estava obedecendo à orientação recebida anteriormente por outro funcionário do Estado.

    As informações erradas — ou, no mínimo, incompletas — e a intolerância por parte de quem deveria esclarecê-las dão a impressão de que, por detrás de guichês antigos, não há disposição alguma para resolver o problema. “Tratam a gente como se fosse lixo. E se atenderem um ou mil, tanto faz”, descreve o professor Félix Alves da Silva, 59 anos, que fez a declaração do Imposto de Renda no primeiro dia do prazo e quer saber apenas por que a restituição ainda não havia sido liberada.

    Para ter acesso à informação, Félix acordou às 4h a fim de fugir do trânsito pesado na saída de Valparaíso de Goiás, onde mora, e chegar antes de a Receita começar a funcionar, às 7h, como informa a folha rasgada na entrada do prédio. A mulher, Marlene, 42, levou café para amenizar a espera. Quando os portões abriram, o casal pegou a senha número 1, mas foi o quarto a ser atendido. “O Brasil precisa mesmo é ser reinventado”, diz o contribuinte, que leciona história na rede pública. São 40 anos de contribuição previdenciária, três infartos, mas até agora a aposentadoria não saiu. Félix é só mais um dos milhões de brasileiros que pagam impostos pesadíssimos ao Estado, mas quase nada recebem de volta, como mostra a série de reportagens do Correio iniciada ontem.

    Retrato do atraso
    Entra governo, sai governo, o brasileiro segue pagando imposto de país rico e consumindo serviços públicos de qualidade deplorável. O país tem uma das maiores cargas de tributos — administrados pelo Receita Federal — entre 30 grandes economias do mundo, mas o pior retorno à sociedade. Com uma gestão insistentemente atrasada, o Estado consegue empacar projetos, adiar planos e sufocar sonhos justamente daqueles que o sustentam. Não à toa, discussões muitas vezes acirradas — embora nunca bem-vindas — fazem parte do cotidiano de órgãos como a Receita. “Quero arrebentar tudo aqui, perdi a paciência”, resmunga o militar Alaor Antônio da Cunha, 55.

    Desde 2007 — são seis anos —, Alaor vive uma queda de braço com o Fisco. Numa pasta repleta de documentos, ele carrega a decisão que confirma o direito ao ressarcimento de tributos. “Estou cansado, sabe? Cansado de explicar a mesma coisa para um monte de gente”, afirma. “Um prédio deste tamanho, tanto servidor que se diz inteligente e ninguém para resolver o meu problema. Só falam que está em andamento e me pedem para aguardar. Vou morrer e esse dinheiro vai ficar aí para eles”, desabafa.

    O Correio acompanhou Alaor em uma nova tentativa de resolução do problema. Após se recusar a preencher mais um formulário, o militar foi orientado a procurar a ouvidoria da Receita. “Vai ali fora e liga. A moça que vai atendê-lo é paga para escutar seu problema”, esquivou-se uma servidora, já chamando o próximo da fila. Para chegar ao tal telefone da ouvidoria, Alaor teve de dar explicações a dois seguranças. Sem lugar para se sentar, duelou em pé por quase 10 minutos com alguém do outro lado da linha, sem sucesso.

    A empresária Lucimar Magalhães não encontrou forças para questionar. Quando viu a quantidade de pessoas para serem atendidas antes dela, caiu no choro. Era véspera de uma licitação aguardada há muito tempo. O contador, de última hora, descobriu um débito de julho deste ano com a Previdência Social, no valor de R$ 188,19. Sem o pagamento e a atualização do cadastro, Lucimar estaria fora da concorrência. “Foi um lapso meu. Mas o Estado não perdoa quando o interesse é dele. O problema é que existe um sistema e todos nós somos reféns dele: não tem outro jeito”, ressalta.

    Má vontade
    Nesse sistema do qual todos são escravos, prazos estabelecidos de nada valem. Em março, a Receita comunicou a Eliomar Mota da Cunha, 48, que o nome dele seria retirado do Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (Cadin) em 10 dias. Oito meses se passaram e a palavra do servidor se desfez. Eliomar preencheu dois requerimentos, foi à Receita cinco vezes e nada. “Eles não sabem dizer o que houve. É incrível. Pedem apenas para eu esperar”, conta ele, disposto a procurar um advogado.

    Com o nome no Cadin, por conta de débitos acumulados quando secretário de Esportes em Manaus — mas que já estão sendo pagos —, Eliomar não consegue a aprovação de um financiamento de um imóvel. “Já estive do outro lado do balcão e sei como é complicado. Não posso pegar o camarada pelo pescoço e mandá-lo resolver, porque não resolve. O cidadão se sente impotente”, argumenta ele, para quem o servidor carrancudo nada mais é do que reflexo do Estado.
     
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