ECONOMIA - "BRIC"

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  • quinta-feira, 24 de outubro de 2013
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  • A máscara de BRIC não nos cobre


    Carlos Lessa

    A expressão BRIC foi recorrentemente utilizada em um encontro político-cultural com mais de 500 participantes (em sua imensa maioria, europeus, asiáticos e africanos). O Novo Mundo estava praticamente ausente: apenas seis latino-americanos, um canadense e dois americanos, mas a expressão frequentou as conferências e foi utilizada em debates; está vulgarizada no vocabulário geopolítico e geoeconômico. Praticamente não foram utilizadas as antigas dualidades: centro-periferia, norte-sul, países desenvolvidos-subdesenvolvidos etc.
    É quase impossível encontrar o denominador comum, a não ser o tamanho geográfico e demográfico dos países. O Brasil é um estranho nesse ninho. Rússia, China e Índia têm domínio e armamento nuclear e dispõem de submarinos atômicos. O Brasil é insignificante potência militar e não tem acesso ao armamento nuclear nem à eletrônica dos drones e de interferências variadas. Rússia, China e Índia têm brutais problemas com seus vizinhos. Internamente, a Rússia tem o problema do Cáucaso; a China, do Tibete; e a Índia é, ainda, uma construção precária e pouco integrada. Todos os três têm barreiras internas religiosas e de grupos étnicos-culturais e são mosaicos de diferenças.
    O Brasil pratica um único idioma e é quase homogêneo. Quando comecei a viajar pelo interior, em qualquer pequena cidade encontrei um Grande Hotel, uma Padaria Ideal e uma Tinturaria Arco-Iris. Do Oiapoque ao Chuí, são mínimas as diferenças culturais. Conflitos religiosos que são comuns nos demais grandes países são aqui substituídos pelo “sincretismo” que, pragmaticamente, é praticado. Lembro de uma pequena propriedade leiteira cuja dona rezava para Santo Antonio, pregava folhas de arruda nos ângulos do curral, fumava charutos perto das vacas, amedrontada pela ameaça de mastite – mas, para cercar o problema por todos os lados, convocava o veterinário. Somos um país mestiço e multicolor. Integramos tudo que aqui nos chega. Na beira da estrada, um conjunto com feijão preto, polenta e carne de churrasco recebe agora a comida japonesa. Nosso povo combina conservadorismo de tudo que sabe e possui, com uma permanente prospecção, assimilação e digestão das novidades. É visível a nossa não arrogância (à exceção do futebol) e ausência de resistência ao que vem de fora.
    COM A AMÉRICA DO SUL
    BRIC é um conceito construído e dissolvente de nossa proximidade com os latino-americanos e, em especial, com nossa óbvia e indispensável integração com a América do Sul. Nos últimos anos, 50% das nossas exportações manufatureiras foram para os latino-americanos, sendo 30% para o Mercosul. O ritmo da integração sul-americana depende do modo como o Brasil venha a priorizar o mundo ibero-americano, o que não é fácil, pois é brutal a assimetria da luso-América com a hispano-América.
    O discurso BRIC sublinha esta dificuldade; nossa diplomacia deveria sublinhar nossa pertinência à Sul-América e nosso condomínio marítimo no Atlântico Sul com a África. Entretanto, a expressão BRIC parece acariciar os ouvidos da diplomacia brasileira. Temos a duvidosa dimensão de ser o terceiro maior credor do Tesouro americano. A China tem reservas de US$ 1,27 trilhão e o Brasil tem US$ 256,4 bilhões. Quando terminou a II Guerra Mundial, nossas reservas viraram fumaça. Qual a garantia de que isso não ocorrerá?
    O conceito de emergência é aplicável integralmente à China, que se industrializa e evolui rapidamente para dispor de tecnologias de ponta próprias. Contudo, o problema social chinês é avassalador: metade de sua população é rural com renda média de 1/3 em relação à da população urbana. Nossa questão social é relativamente pequena se comparada ao desafio que o futuro coloca para a China. A Índia, com suas diferenças sociais, não tem qualquer possibilidade de acelerar a urbanização; seu debate é como preservar sua agricultura camponesa com baixa produtividade dos efeitos da industrialização. Etiópia e Somália tem o Mediterrâneo a cruzar para a Lampedusa. Não há saída demográfica para a Índia e maior parte da Ásia. A Rússia se debate no dilema de alinhar-se com a Europa, ou seja, com a Otan, ou lançar-se em uma neoaventura eurásica, lançando-se em aliança com o Japão, para criar uma barreira à China. Para isso projeta um trem-bala transiberiano que faria uma “alça submarina” no Pacífico, se articulando com o Japão.
    A expressão BRIC, como um conglomerado de “baleias” emergentes, acaricia os ouvidos dos governantes e caminha suavemente pela mídia. O Brasil tem acelerada desindustrialização precoce; retrocedeu o peso da indústria no PIB em relação ao do final dos anos 50. Define o Brasil com a função de “celeiro do mundo”, sem ter superado a fome dentro da rede urbana nacional. Desmatamos a Amazônia, formando pastos e plantações de soja. Com a desindustrialização, destruímos empregos de qualidade e propensão à pesquisa científica e tecnológica.
    FALSO EMERGENTE
    O governo pratica um discurso eufórico em ser “emergente”, submergindo a uma exportação que retrocede nos itens manufaturados ou com alta tecnologia: exportamos minério de ferro, couro bovino cru e assistimos o aço e o calçado chinês ocuparem os nichos mercadológicos que o Brasil dispôs em passado recente. Voltamos a ser agroexportadores, porém o complexo de soja não reproduz o antigo complexo do café: os equipamentos, fertilizantes e defensivos são todos fabricados por filiais estrangeiras. A Monsanto domina e difunde a semente transgênica. As grandes exportadoras são filiais estrangeiras; o empresário nacional existe como fazendeiro de soja e, talvez, seja proprietário de caminhões transportadores.
    O café, na República Velha, era plantado, financiado, transportado, comercializado e exportado por empresas nacionais. As ferrovias abriram o planalto paulista e a Companhia Docas de Santos era controlada por capital nacional. O café não propunha a industrialização, porém sob a sombra dos cafezais, nasceram amplos segmentos industriais. A soja não propõe a industrialização. Getulio Vargas e Juscelino Kubitschek empurraram a industrialização, porém defenderam o café, o açúcar, o algodão, a borracha, o cacau, etc. Houve um projeto nacional de industrialização e urbanização concentrador de renda e deficiente nas políticas sociais. Continuamos ultra-concentradores: os bancos brasileiros tem uma rentabilidade patrimonial que é o dobro do setor industrial de transformação. Na repartição funcional de renda, diminui a participação dos salários; multiplicamos empregos de baixos salários.
    O conceito de classe média é ambíguo, principalmente se for medido pela posse de veículos automotores, eletrodomésticos etc. Em função da alta de preços de commodities derivado do boom chinês, da afluência de capitais especulativos em busca dos altos juros nacionais e das importações de manufaturas, houve base para aumentar o salário real, e isso foi extremamente positivo, porém houve contenção de investimento público e desânimo empresarial com investimento privado.
    Afirmar que o Brasil é emergente quando, estruturalmente, estamos submergindo, não assumir que fazemos parte da periferia mundial, não sublinhar que nosso bloco é sul-americano ou latino-americano, não discutir um projeto nacional e aprofundar nossa presença como supridor primário – e, talvez, involuir para país exportador de petróleo – é assustador. A máscara de BRIC não nos cobre nem resolve nossos problemas estruturais e é suprema ingenuidade imaginar que as outras baleias virão para proteger um país tropical.
     
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