Se há uma deficiência no Itamaraty da era Dilma é o excesso de discrição. O País cresceu demais para tentar manter um perfil baixo.
Por Antonio Luiz M. C. Costa, na revista “CartaCapital”
“Por mais que alguns analistas insistam, desde os primeiros dias, em procurar com lupa diferenças profundas ou mesmo antagonismos entre Dilma Rousseff e Lula, a política externa continuou substancialmente a mesma, com os mesmos objetivos. O BRICS e o G-20 dos emergentes continuam a ser o fulcro de suas articulações mundiais. Não mudou a posição do Brasil em relação ao Oriente Médio e à questão palestina, como mostraram os discursos na Assembleia Geral da ONU.
A política para a América Latina segue a mesma linha de boa vizinhança combinada com articulação com os governos progressistas do continente, combinando a defesa da democracia com a da não-intervenção. Qualquer dúvida a respeito foi dissipada pela reação ao golpe institucional no Paraguai, que isolou diplomaticamente o governo de Federico Franco na América Latina e, de quebra, serviu para integrar a Venezuela ao Mercosul, passo que há muito era bloqueado pelo Senado conservador de Assunção, mas sem impor as duras sanções comerciais pretendidas pelos governos bolivarianos, que abririam precedentes capazes de justificar embargos criticados pelo Brasil, como os que os Estados Unidos impõem a Cuba e ao Irã.
Há, porém, mudanças de estilo e ênfase. De um lado, a diplomacia tem sido mais discreta e menos marcada por atos simbólicos ambiciosos. Por outro, as questões monetárias, econômicas e financeiras ganharam maior peso, tanto pela formação da presidenta quanto pela necessidade de enfrentar um cenário internacional mais turbulento.
Uma dificuldade em potencial é a tendência à divisão da América Latina em dois blocos econômicos, a "Aliança do Pacífico" e um MERCOSUL ampliado. Em artigo de novembro, o politólogo uruguaio Raúl Zibechi chamou a atenção para a importância desse conflito em potencial.
A “Aliança do Pacífico”, que teve sua quarta cúpula em 2012, é formada por México, Colômbia, Chile e Peru e representaria o ramo latino-americano da “Aliança Transpacífica” (Trans-Pacific Partnership - TPP) fomentada pelos EUA, cujas negociações também incluem Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Malásia, Cingapura, Brunei, Vietnã e Japão (este, como observador) e nas quais também Coreia do Sul, Tailândia, Taiwan e Filipinas demonstraram interesse.
O governo de Barack Obama tem mostrado empenho especial nesse projeto como contraponto à expansão da influência de Pequim. Desde o início de 2012, a Casa Branca anunciou uma "virada para a Ásia Oriental" (pivot to East Asia), segundo a qual sua política externa passaria a enfatizar essa região, reduzindo a ênfase herdada da Guerra Fria nos assuntos da Europa e do Oriente Médio.
A viagem de Obama à Ásia em novembro incluiu a primeira visita de um presidente dos EUA a Mianmar, tradicional aliado de Pequim que Washington pretende seduzir, e quis promover e consagrar sua nova política asiática na cúpula da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático) em Phnom Penh, Camboja, mas não foi muito bem-sucedida. Obama foi ofuscado pela crise gerada por Israel ao bombardear Gaza, que tomou conta dos noticiários e obrigou Hillary Clinton a se deslocar às pressas para Tel-Aviv e para o Cairo. Além disso, a maioria dos países do Extremo Oriente mostrou que quer boas relações com Pequim tanto ou mais do que com Washington, ao aprovar uma "Aliança Econômica da Ásia Oriental" (Comprehensive Economic Partnership for East Asia - CEPEA) que inclui, além dos integrantes da ASEAN, China, Japão, índia, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia.
Do outro, um "MERCOSUL ampliado" que poderá incluir a maior parte da Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA): além da Venezuela, também a Bolívia, que aceitou o convite para converter-se em integrante pleno do MERCOSUL, e o Equador, que, segundo Evo Morales, também recebeu essa proposta.
O atrito entre Quito e Brasília, iniciado em outubro de 2008, em razão dos problemas que exigiram a paralisação da hidrelétrica de San Francisco e levaram à expulsão temporária da Odebrecht foi aparentemente superado. O Equador, que suspendeu os pagamentos devidos ao BNDES e recorreu à Câmara de Comércio Internacional, perdeu em juízo e, desde meados de 2012, houve reaproximação. Insatisfeito com as condições propostas pelos chineses, que quiseram pagamento em petróleo, o Equador voltou a recorrer ao Brasil e à Odebrecht para outro projeto hidrelétrico e, em novembro de 2012, o BNDES liberou a primeira parcela para a nova obra, em Manduriacu.
Apesar das dificuldades econômicas crescentes da Argentina, o Itamaraty e o governo Dilma continuaram a priorizar as relações com esse país. Em 28 de novembro, em vez de participar da cúpula da UNASUL, que decidiu não aprovar o retorno do Paraguai antes das eleições de 2013, Dilma foi prestigiar Cristina Kirchner, acossada por problemas políticos e econômicos, e foi a Buenos Aires defender o aprofundamento da integração binacional. Paralelamente, as Forças Armadas do Brasil e da Argentina começaram a elaborar um manual de cooperação, possível embrião de uma doutrina militar conjunta.
A política brasileira continua a ser, em primeiro lugar, de promoção da unidade latino-americana e dos interesses da região, tanto em questões comerciais e ambientais quanto, por exemplo, na disputa entre argentinos e britânicos pelas ilhas Malvinas e, em segundo lugar, de articulação dos países emergentes em geral, dentro dos quais a América Latina representaria um bloco que o Itamaraty gostaria de ver liderado pelo Brasil, ante os países ricos.
A evolução da rivalidade entre EUA e China e seus reflexos na América Latina, com provável aumento da pressão do Pentágono por mais presença e bases militares no Sul, pode vir a gerar divisões difíceis de superar dentro desse bloco, que Washington ainda quer ver como parte de sua esfera de influência imediata. Por enquanto, mesmo os países da “Aliança do Pacífico”, mesmo quando têm governos conservadores, interessam-se também por se aproximar dos seus vizinhos do MERCOSUL e defender políticas comuns.
Exemplo disso é o governo colombiano de José Manuel Santos, que, para irritação de seu predecessor Álvaro Uribe, melhorou as relações com a Venezuela, visitou Cuba e abriu negociações com as FARC, em Havana. O alinhamento do Chile com os EUA, mesmo hoje, não é incondicional, como mostrou seu voto pelo reconhecimento da Palestina na ONU, e deve ser ainda menos com o provável retorno do centro-esquerda liderado por Michelle Bachelet nas eleições presidenciais chilenas de 2013. O Peru tem um Executivo simpático aos governos bolivarianos (apesar de contido por um sistema político conservador) e fortes interesses comuns com o Brasil, dada a integração econômica na região da Amazônia e a construção de estradas e hidrelétricas que servirão aos dois países. O México e os pequenos países da América Central e Caribe, mais dependentes dos EUA, são o maior entrave real aos planos do Itamaraty, pois o Paraguai, com qualquer governo, depende muito do Brasil e de seus aliados.
Problema herdado do governo Lula, a intervenção, desde 2004, das Forças da ONU no Haiti, com a participação do Brasil, sempre foi de difícil solução e passou a sê-lo ainda mais após o terremoto de 2010 e a epidemia de cólera que se seguiu, aparentemente introduzida acidentalmente por soldados nepaleses da Minustah. Muitos haitianos rejeitam a aparentemente inútil presença das tropas estrangeiras, e o objetivo diplomático inicial, que era projetar o Brasil como força capaz e interessada em atuar em benefício da estabilidade mundial e reforçar sua candidatura a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, parece estar tão distante quanto antes.
Mais bem-sucedida tem sido a projeção do que o Itamaraty chama de “Soft Power”. Ou seja, programas de cooperação humanitária e técnica com o Haiti e países da África e Ásia (alimentos e medicamentos para a Etiópia, Moçambique, Coreia do Norte, Gaza e refugiados afegãos no Irã e Paquistão, por exemplo), que tornam o Brasil mais conhecido e prestigiado no mundo dos não-alinhados, visto a "cooperação humanitária" do Brasil não ser acompanhada de exigências políticas e estratégicas como a "ajuda humanitária" oferecida pelos EUA.
Para além da esfera latino-americana, a política do Brasil continua focalizada na articulação com Rússia, índia, China e África do Sul no grupo apelidado de BRICS, que hoje se contrapõe ao G-7 como espinha dorsal da defesa dos interesses dos países ditos "emergentes" representados no G-20, fundado em Cancún em 2003, para se opor na OMC ao bloco dos países ricos da OCDE. Os interesses do Brasil nem sempre coincidem com os dos outros parceiros do grupo, principalmente no que se refere à China, que é tanto um grande mercado para os produtos primários quanto um concorrente incômodo para a indústria brasileira, mas quase sempre estão mais próximos deles do que dos países do Norte - além de que, no futuro previsível, a importância econômica relativa dos BRICS só tende a aumentar.
Os desentendimentos de Brasília com Pequim em relação à subvalorização do yuan e à inundação de produtos baratos chineses são hoje menos importantes que aqueles que opõem ambos a Washington em relação à inundação de dólares trazida pela "flexibilização quantitativa" do FED, sem a qual o câmbio estaria naturalmente mais equilibrado e barreiras comerciais defensivas seriam menos necessárias. Além disso, as dificuldades no comércio com a China, certamente, não são maiores do que com os EUA e a Europa, que insistem na abertura dos mercados do Sul sem oferecer contrapartida e em tratar igualmente os desiguais no que se refere à política climática. Ou seja, querem congelar países ricos e pobres nos atuais padrões de emissão de carbono e, portanto, de produção e consumo relativos, sem reconhecer a necessidade da convergência dos níveis de desenvolvimento no futuro.
A política monetária expansionista dos ricos, não o câmbio do yuan, tem sido o principal alvo dos discursos de Dilma na ONU e em fóruns econômicos internacionais, ao mesmo tempo que os BRICS testam acordos bilaterais de câmbio para contornar a hegemonia monetária dos EUA e do dólar e mecanismos de financiamento alternativos ao FMI e Banco Mundial, como o "Banco do Sul", que está sendo articulado pelos países do "MERCOSUL ampliado". Desde a crise de 2008, esses aspectos da diplomacia, difíceis de entender para os leigos e os jornalistas não especializados, têm-se tornado cada vez mais importantes, o que contribui para a imagem mais "tecnocrática" com que se revestiu a política externa nos anos Dilma.
Ao mesmo tempo, não tiveram seguimento evidente as ousadas iniciativas diplomáticas dos últimos anos do governo Lula. Em parte, isso foi inevitável, pois os desdobramentos da “Primavera Árabe” embaralharam de novo as cartas nas quais a diplomacia brasileira fazia suas apostas, e derrubaram Muammar Kaddafi, Hosni Mubarak e outros líderes, antes tidos como referências indispensáveis na região pelo Itamaraty e por todo o mundo. Até a Turquia, que fazia a mesma aposta que o Brasil e estava cultural e geograficamente muito mais próxima, foi surpreendida pelos acontecimentos e custa a redefinir uma política externa consistente. Esforça-se para manter boas relações com o Irã, o Egito e novos governos islâmicos árabes e fustigar Israel, ao mesmo tempo que se apega à OTAN contra o regime sírio e os rebeldes curdos.
Mas, uma vez que o Brasil se lançou para além da política regional ao se projetar como integrante dos BRICS, sendo sexta economia do mundo e palco de eventos que chamam a atenção da mídia mundial, não é mais possível voltar a uma postura de "perfil baixo" [e submisso] da era FHC e ignorar tais questões como se fosse uma nação pequena, dependente e irrelevante. Integre ou não do Conselho de Segurança, o País ganhou peso e responsabilidades e cresceu demais para voltar a usar esse figurino. Isso o faz parecer um rapaz tímido e apegado aos pais, com receio tanto de se afirmar entre os adultos quanto de aceitar suas obrigações.
Nesse aspecto, o Itamaraty ainda parece recear em excesso a exposição pública e a opinião dos países ricos e suas mídias e poderia transmitir mais clareza e segurança. Os posicionamentos existem, mas discretos a ponto de passarem despercebidos.
Os direitos humanos, tratados por parte da mídia como divisor de águas e senha para uma diplomacia mais pró-ocidental, são regularmente citados sem deixar que sirvam de pretexto para os EUA e seus aliados imporem seus projetos geopolíticos, como se vê na insistência de Dilma e do Itamaraty em distinguir "responsabilidade de proteger" e "ao proteger". Na prática, isso significou não apoiar na Síria uma intervenção como a da OTAN na Líbia, que, com o pretexto de "defender a população civil", aumentou a violência e abriu espaço a extremistas religiosos para impor um regime ao gosto do Ocidente e suas empresas petroleiras, à custa da estabilidade de toda a África do Norte e do aumento da tensão com a Rússia e China.
0 Brasil, que no final do governo Lula abriu o caminho para o reconhecimento do Estado Palestino pela maior parte da América Latina, continua a manter a mesma posição e votou com consistência nas resoluções da ONU contra os ataques israelenses a Gaza e pelo estatuto de “Estado não membro” para a Palestina, mas poderia ser mais vocal nessas questões, de modo a se tornar referência para outros países da América Latina e do mundo. Quando Israel retaliou o reconhecimento da Palestina pela ONU com o anúncio de novas construções na Cisjordânia [invadida] que podem inviabilizar a solução de dois Estados, o Brasil convocou o embaixador de Israel a dar explicações, mas só no dia seguinte ao Reino Unido, França, Suécia, Dinamarca e Espanha, como se ainda julgasse necessário o posicionamento prévio dos países europeus para justificar o seu.
A menor preocupação com atos capazes de atrair os holofotes da mídia não é necessariamente uma expressão de modéstia louvável. Iniciativas como a fundação do G-20 dos países emergentes em 2003, da UNASUL em 2008, da CELAC (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos) em 2010 e mesmo a tentativa malsucedida [por culpa dos EUA e potências européias] de mediar um acordo nuclear entre os países ocidentais e o Irã e negociações entre Israel e a Palestina foram importantes para marcar uma política de independência e protagonismo do Brasil e para criar consciência da nova diplomacia, abrir debates e marcar posições não apenas nas cúpulas governamentais, como também junto a executores de políticas de menor estatura, a organizações não governamentais e ao público ao qual tem a obrigação de prestar contas.
Mesmo sem consequências imediatas, gestos simbólicos são importantes em política e ainda mais quando esta se quer democrática. Embora isso pareça não ter afetado sua popularidade, o pragmatismo do governo Dilma tem deixado a desejar nesse aspecto, ao dar a impressão de que trata as relações exteriores como um assunto de diplomatas e economistas e evitar a tomada de posições explícitas. Houve aparente retrocesso para enfoque tecnocrático, que pode evitar muitos pequenos erros e mal-entendidos e reduzir os mal-estares nas relações com as potências ocidentais, mas também impede os grandes acertos e tira clareza às suas posições.”
A política para a América Latina segue a mesma linha de boa vizinhança combinada com articulação com os governos progressistas do continente, combinando a defesa da democracia com a da não-intervenção. Qualquer dúvida a respeito foi dissipada pela reação ao golpe institucional no Paraguai, que isolou diplomaticamente o governo de Federico Franco na América Latina e, de quebra, serviu para integrar a Venezuela ao Mercosul, passo que há muito era bloqueado pelo Senado conservador de Assunção, mas sem impor as duras sanções comerciais pretendidas pelos governos bolivarianos, que abririam precedentes capazes de justificar embargos criticados pelo Brasil, como os que os Estados Unidos impõem a Cuba e ao Irã.
Há, porém, mudanças de estilo e ênfase. De um lado, a diplomacia tem sido mais discreta e menos marcada por atos simbólicos ambiciosos. Por outro, as questões monetárias, econômicas e financeiras ganharam maior peso, tanto pela formação da presidenta quanto pela necessidade de enfrentar um cenário internacional mais turbulento.
Uma dificuldade em potencial é a tendência à divisão da América Latina em dois blocos econômicos, a "Aliança do Pacífico" e um MERCOSUL ampliado. Em artigo de novembro, o politólogo uruguaio Raúl Zibechi chamou a atenção para a importância desse conflito em potencial.
A “Aliança do Pacífico”, que teve sua quarta cúpula em 2012, é formada por México, Colômbia, Chile e Peru e representaria o ramo latino-americano da “Aliança Transpacífica” (Trans-Pacific Partnership - TPP) fomentada pelos EUA, cujas negociações também incluem Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Malásia, Cingapura, Brunei, Vietnã e Japão (este, como observador) e nas quais também Coreia do Sul, Tailândia, Taiwan e Filipinas demonstraram interesse.
O governo de Barack Obama tem mostrado empenho especial nesse projeto como contraponto à expansão da influência de Pequim. Desde o início de 2012, a Casa Branca anunciou uma "virada para a Ásia Oriental" (pivot to East Asia), segundo a qual sua política externa passaria a enfatizar essa região, reduzindo a ênfase herdada da Guerra Fria nos assuntos da Europa e do Oriente Médio.
A viagem de Obama à Ásia em novembro incluiu a primeira visita de um presidente dos EUA a Mianmar, tradicional aliado de Pequim que Washington pretende seduzir, e quis promover e consagrar sua nova política asiática na cúpula da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático) em Phnom Penh, Camboja, mas não foi muito bem-sucedida. Obama foi ofuscado pela crise gerada por Israel ao bombardear Gaza, que tomou conta dos noticiários e obrigou Hillary Clinton a se deslocar às pressas para Tel-Aviv e para o Cairo. Além disso, a maioria dos países do Extremo Oriente mostrou que quer boas relações com Pequim tanto ou mais do que com Washington, ao aprovar uma "Aliança Econômica da Ásia Oriental" (Comprehensive Economic Partnership for East Asia - CEPEA) que inclui, além dos integrantes da ASEAN, China, Japão, índia, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia.
Do outro, um "MERCOSUL ampliado" que poderá incluir a maior parte da Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA): além da Venezuela, também a Bolívia, que aceitou o convite para converter-se em integrante pleno do MERCOSUL, e o Equador, que, segundo Evo Morales, também recebeu essa proposta.
O atrito entre Quito e Brasília, iniciado em outubro de 2008, em razão dos problemas que exigiram a paralisação da hidrelétrica de San Francisco e levaram à expulsão temporária da Odebrecht foi aparentemente superado. O Equador, que suspendeu os pagamentos devidos ao BNDES e recorreu à Câmara de Comércio Internacional, perdeu em juízo e, desde meados de 2012, houve reaproximação. Insatisfeito com as condições propostas pelos chineses, que quiseram pagamento em petróleo, o Equador voltou a recorrer ao Brasil e à Odebrecht para outro projeto hidrelétrico e, em novembro de 2012, o BNDES liberou a primeira parcela para a nova obra, em Manduriacu.
Apesar das dificuldades econômicas crescentes da Argentina, o Itamaraty e o governo Dilma continuaram a priorizar as relações com esse país. Em 28 de novembro, em vez de participar da cúpula da UNASUL, que decidiu não aprovar o retorno do Paraguai antes das eleições de 2013, Dilma foi prestigiar Cristina Kirchner, acossada por problemas políticos e econômicos, e foi a Buenos Aires defender o aprofundamento da integração binacional. Paralelamente, as Forças Armadas do Brasil e da Argentina começaram a elaborar um manual de cooperação, possível embrião de uma doutrina militar conjunta.
A política brasileira continua a ser, em primeiro lugar, de promoção da unidade latino-americana e dos interesses da região, tanto em questões comerciais e ambientais quanto, por exemplo, na disputa entre argentinos e britânicos pelas ilhas Malvinas e, em segundo lugar, de articulação dos países emergentes em geral, dentro dos quais a América Latina representaria um bloco que o Itamaraty gostaria de ver liderado pelo Brasil, ante os países ricos.
A evolução da rivalidade entre EUA e China e seus reflexos na América Latina, com provável aumento da pressão do Pentágono por mais presença e bases militares no Sul, pode vir a gerar divisões difíceis de superar dentro desse bloco, que Washington ainda quer ver como parte de sua esfera de influência imediata. Por enquanto, mesmo os países da “Aliança do Pacífico”, mesmo quando têm governos conservadores, interessam-se também por se aproximar dos seus vizinhos do MERCOSUL e defender políticas comuns.
Exemplo disso é o governo colombiano de José Manuel Santos, que, para irritação de seu predecessor Álvaro Uribe, melhorou as relações com a Venezuela, visitou Cuba e abriu negociações com as FARC, em Havana. O alinhamento do Chile com os EUA, mesmo hoje, não é incondicional, como mostrou seu voto pelo reconhecimento da Palestina na ONU, e deve ser ainda menos com o provável retorno do centro-esquerda liderado por Michelle Bachelet nas eleições presidenciais chilenas de 2013. O Peru tem um Executivo simpático aos governos bolivarianos (apesar de contido por um sistema político conservador) e fortes interesses comuns com o Brasil, dada a integração econômica na região da Amazônia e a construção de estradas e hidrelétricas que servirão aos dois países. O México e os pequenos países da América Central e Caribe, mais dependentes dos EUA, são o maior entrave real aos planos do Itamaraty, pois o Paraguai, com qualquer governo, depende muito do Brasil e de seus aliados.
Problema herdado do governo Lula, a intervenção, desde 2004, das Forças da ONU no Haiti, com a participação do Brasil, sempre foi de difícil solução e passou a sê-lo ainda mais após o terremoto de 2010 e a epidemia de cólera que se seguiu, aparentemente introduzida acidentalmente por soldados nepaleses da Minustah. Muitos haitianos rejeitam a aparentemente inútil presença das tropas estrangeiras, e o objetivo diplomático inicial, que era projetar o Brasil como força capaz e interessada em atuar em benefício da estabilidade mundial e reforçar sua candidatura a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, parece estar tão distante quanto antes.
Mais bem-sucedida tem sido a projeção do que o Itamaraty chama de “Soft Power”. Ou seja, programas de cooperação humanitária e técnica com o Haiti e países da África e Ásia (alimentos e medicamentos para a Etiópia, Moçambique, Coreia do Norte, Gaza e refugiados afegãos no Irã e Paquistão, por exemplo), que tornam o Brasil mais conhecido e prestigiado no mundo dos não-alinhados, visto a "cooperação humanitária" do Brasil não ser acompanhada de exigências políticas e estratégicas como a "ajuda humanitária" oferecida pelos EUA.
Para além da esfera latino-americana, a política do Brasil continua focalizada na articulação com Rússia, índia, China e África do Sul no grupo apelidado de BRICS, que hoje se contrapõe ao G-7 como espinha dorsal da defesa dos interesses dos países ditos "emergentes" representados no G-20, fundado em Cancún em 2003, para se opor na OMC ao bloco dos países ricos da OCDE. Os interesses do Brasil nem sempre coincidem com os dos outros parceiros do grupo, principalmente no que se refere à China, que é tanto um grande mercado para os produtos primários quanto um concorrente incômodo para a indústria brasileira, mas quase sempre estão mais próximos deles do que dos países do Norte - além de que, no futuro previsível, a importância econômica relativa dos BRICS só tende a aumentar.
Os desentendimentos de Brasília com Pequim em relação à subvalorização do yuan e à inundação de produtos baratos chineses são hoje menos importantes que aqueles que opõem ambos a Washington em relação à inundação de dólares trazida pela "flexibilização quantitativa" do FED, sem a qual o câmbio estaria naturalmente mais equilibrado e barreiras comerciais defensivas seriam menos necessárias. Além disso, as dificuldades no comércio com a China, certamente, não são maiores do que com os EUA e a Europa, que insistem na abertura dos mercados do Sul sem oferecer contrapartida e em tratar igualmente os desiguais no que se refere à política climática. Ou seja, querem congelar países ricos e pobres nos atuais padrões de emissão de carbono e, portanto, de produção e consumo relativos, sem reconhecer a necessidade da convergência dos níveis de desenvolvimento no futuro.
A política monetária expansionista dos ricos, não o câmbio do yuan, tem sido o principal alvo dos discursos de Dilma na ONU e em fóruns econômicos internacionais, ao mesmo tempo que os BRICS testam acordos bilaterais de câmbio para contornar a hegemonia monetária dos EUA e do dólar e mecanismos de financiamento alternativos ao FMI e Banco Mundial, como o "Banco do Sul", que está sendo articulado pelos países do "MERCOSUL ampliado". Desde a crise de 2008, esses aspectos da diplomacia, difíceis de entender para os leigos e os jornalistas não especializados, têm-se tornado cada vez mais importantes, o que contribui para a imagem mais "tecnocrática" com que se revestiu a política externa nos anos Dilma.
Ao mesmo tempo, não tiveram seguimento evidente as ousadas iniciativas diplomáticas dos últimos anos do governo Lula. Em parte, isso foi inevitável, pois os desdobramentos da “Primavera Árabe” embaralharam de novo as cartas nas quais a diplomacia brasileira fazia suas apostas, e derrubaram Muammar Kaddafi, Hosni Mubarak e outros líderes, antes tidos como referências indispensáveis na região pelo Itamaraty e por todo o mundo. Até a Turquia, que fazia a mesma aposta que o Brasil e estava cultural e geograficamente muito mais próxima, foi surpreendida pelos acontecimentos e custa a redefinir uma política externa consistente. Esforça-se para manter boas relações com o Irã, o Egito e novos governos islâmicos árabes e fustigar Israel, ao mesmo tempo que se apega à OTAN contra o regime sírio e os rebeldes curdos.
Mas, uma vez que o Brasil se lançou para além da política regional ao se projetar como integrante dos BRICS, sendo sexta economia do mundo e palco de eventos que chamam a atenção da mídia mundial, não é mais possível voltar a uma postura de "perfil baixo" [e submisso] da era FHC e ignorar tais questões como se fosse uma nação pequena, dependente e irrelevante. Integre ou não do Conselho de Segurança, o País ganhou peso e responsabilidades e cresceu demais para voltar a usar esse figurino. Isso o faz parecer um rapaz tímido e apegado aos pais, com receio tanto de se afirmar entre os adultos quanto de aceitar suas obrigações.
Nesse aspecto, o Itamaraty ainda parece recear em excesso a exposição pública e a opinião dos países ricos e suas mídias e poderia transmitir mais clareza e segurança. Os posicionamentos existem, mas discretos a ponto de passarem despercebidos.
Os direitos humanos, tratados por parte da mídia como divisor de águas e senha para uma diplomacia mais pró-ocidental, são regularmente citados sem deixar que sirvam de pretexto para os EUA e seus aliados imporem seus projetos geopolíticos, como se vê na insistência de Dilma e do Itamaraty em distinguir "responsabilidade de proteger" e "ao proteger". Na prática, isso significou não apoiar na Síria uma intervenção como a da OTAN na Líbia, que, com o pretexto de "defender a população civil", aumentou a violência e abriu espaço a extremistas religiosos para impor um regime ao gosto do Ocidente e suas empresas petroleiras, à custa da estabilidade de toda a África do Norte e do aumento da tensão com a Rússia e China.
0 Brasil, que no final do governo Lula abriu o caminho para o reconhecimento do Estado Palestino pela maior parte da América Latina, continua a manter a mesma posição e votou com consistência nas resoluções da ONU contra os ataques israelenses a Gaza e pelo estatuto de “Estado não membro” para a Palestina, mas poderia ser mais vocal nessas questões, de modo a se tornar referência para outros países da América Latina e do mundo. Quando Israel retaliou o reconhecimento da Palestina pela ONU com o anúncio de novas construções na Cisjordânia [invadida] que podem inviabilizar a solução de dois Estados, o Brasil convocou o embaixador de Israel a dar explicações, mas só no dia seguinte ao Reino Unido, França, Suécia, Dinamarca e Espanha, como se ainda julgasse necessário o posicionamento prévio dos países europeus para justificar o seu.
A menor preocupação com atos capazes de atrair os holofotes da mídia não é necessariamente uma expressão de modéstia louvável. Iniciativas como a fundação do G-20 dos países emergentes em 2003, da UNASUL em 2008, da CELAC (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos) em 2010 e mesmo a tentativa malsucedida [por culpa dos EUA e potências européias] de mediar um acordo nuclear entre os países ocidentais e o Irã e negociações entre Israel e a Palestina foram importantes para marcar uma política de independência e protagonismo do Brasil e para criar consciência da nova diplomacia, abrir debates e marcar posições não apenas nas cúpulas governamentais, como também junto a executores de políticas de menor estatura, a organizações não governamentais e ao público ao qual tem a obrigação de prestar contas.
Mesmo sem consequências imediatas, gestos simbólicos são importantes em política e ainda mais quando esta se quer democrática. Embora isso pareça não ter afetado sua popularidade, o pragmatismo do governo Dilma tem deixado a desejar nesse aspecto, ao dar a impressão de que trata as relações exteriores como um assunto de diplomatas e economistas e evitar a tomada de posições explícitas. Houve aparente retrocesso para enfoque tecnocrático, que pode evitar muitos pequenos erros e mal-entendidos e reduzir os mal-estares nas relações com as potências ocidentais, mas também impede os grandes acertos e tira clareza às suas posições.”
FONTE: escrito por Antonio Luiz M. C. Costa, na revista “CartaCapital”. Transcrito no portal da FAB (http://www.fab.mil.br/portal/capa/index.php?page=notimp) [Imagem do google e pequenos entre colchetes adicionados por este blog ‘democracia&política’].