Chega a intrigar que em plena campanha para a renovação de toda a cúpula do sistema político brasileiro nenhum candidato ou partido fale em reforma política.
A reforma ocupa o cenário nacional desde a Constituinte de 1988. Ora com estardalhaço, ora discretamente, tem sido vista tanto como necessidade da democracia, quanto como panacéia para resolver o mal que a política causaria aos cidadãos: um recurso para moralizar a atividade dos políticos e colocar a política no devido lugar.
Seria de se esperar que surgisse com pompa e ênfase na propaganda dos candidatos e nos debates entre eles.
Não é o que acontece. De política mesmo, os candidatos falam pouco, e quase sempre sem usar a palavra. Seus discursos concentram-se em realizações, passadas e futuras. Dedicam-se à conquista do governo, apresentado como instrumento para mudar o mundo. É um modo de falar de política, mas não o melhor modo, pois deixa de fora o que realmente importa: as relações entre o poder e os cidadãos, seja no sentido de controlar os excessos e a força do poder, seja no sentido de civilizar as lutas por sua conquista, ampliar e democratizar o acesso a ele e orientá-lo para um exercício socialmente justo e responsável.
Enquanto isso, em crescentes segmentos da opinião pública, permanece a expectativa de que a próxima legislatura faça algo para moralizar a política, punir os corruptos e aumentar a dose de democracia direta e participação no sistema representativo.
É constrangedor que os candidatos não falem de política no momento mais nobre da política, quando se acredita que muitas coisas possam ser modificadas.
É constrangedor, mas dá para entender.
O silêncio dos políticos em relação à política traduz a crise da política, mais que do sistema político. Expressa uma falta de consenso sobre o que fazer para melhorar a política e sobre a escala de prioridades em que deve vir a reforma. Não se sabe bem o que deve ser mudado, nem como ou quando mudar.
O silêncio reflete também o receio dos candidatos de que perderão votos se trouxerem a política para o centro do palco. Acredita-se que, se o fizerem, irão contra a expectativa das pessoas, que prefeririam políticos que não fazem política, tocadores de obras e distribuidores de benefícios palpáveis. Os candidatos, nesse quesito, copiam Lula. Ou melhor, se deixam pautar por ele, com seu estilo de governo “positivo”, de realizações, conversas e movimentações em cascata, que se apresenta como dedicado a proteger e amparar o povo, um estilo tão voltado para animar o imaginário popular e montar um “grande e único Brasil” que terminou por anestesiar a oposição, encantar a todos e fazer de sua candidata a sucessora natural.
O fato é que a política se converteu em assunto incômodo.
Mas não é verdade que ninguém ligue mais para ela ou que todos estejam desinteressados do Estado e das decisões públicas.
O que ocorre é que os ambientes políticos típicos – casas legislativas, partidos, mandatos parlamentares, órgãos governamentais – não são alcançados pelas pessoas. Grupos e indivíduos querem participar, mas só conseguem fazê-lo “fora” do Estado. Aderem a fóruns, seminários, assembléias, instâncias participativas, movimentos, que parecem mais receptivos à dinâmica social vigente. São novas formas de politização, que ajudam a ofuscar e pôr em dúvida as antigas.
O modo de vida atual é participativo. Antes de tudo porque cada um tem de lutar praticamente sozinho para organizar a cabeça, os códigos de conduta e a própria biografia. Não dispomos de suportes sociais consistentes, sejam eles provenientes da família, do Estado ou das igrejas. Estamos no mercado, ou seja, naquele ringue em que se briga palmo a palmo por espaço. Fora daí, há evidentemente vida e coletividade, mas isso pesa pouco no cômputo geral. Para modelar suas vidas, os indivíduos precisam ficar atentos e se mexer. A participação tornou-se um valor, muito mais relevante, por exemplo, do que a igualdade. Participar é bom, correto, meritório.
Impulsiona-se assim a contestação do sistema representativo. Queremos que nossos representantes sejam iguais a nós, limpos, transparentes, produtivos. E ao percebermos que os atos e atitudes dos políticos não são assim, fuzilamos os representantes em bloco, viramos-lhes as costas e passamos a pedir reformas que estanquem a corrupção e intimidem os políticos.
Uma expectativa de reforma que se volte para moralizar a política está fadada à frustração, porque elege um alvo equivocado e parte do pressuposto, igualmente equivocado, de que a representação deve imitar a vida cotidiana. Produzirá mais estragos que consertos, porque ajudará a diminuir o valor da política e a mantê-la permanentemente às portas dos tribunais.
Claro que é preciso dar uma perspectiva moral à vida pública, impedi-la de fugir do controle. Mas não se conseguirá isso nem com mordaças judiciais, nem com reformas políticas, por mais que essas últimas sejam importantes. Resultados efetivos somente virão se houver fortalecimento do sistema representativo, educação política e mobilização da sociedade. A Lei da Ficha Limpa é interessante, mas é controvertida, e sozinha fará quase nada.
Uma reforma política digna do nome não pode privilegiar a moralização. Seu eixo é o fortalecimento democrático das instituições, a busca de coerência dos partidos, a lisura dos pleitos, a expressão facilitada e equilibrada das preferências da população, a inclusão de novos eleitores. Sua razão de ser é a revitalização das relações entre as pessoas, a sociedade civil e o Estado. É a recuperação do valor da política.
Porque para se ter política mais “limpa” e de melhor qualidade, é preciso ter também mais política. A reforma de que necessitamos será um caminho para que a sociedade se articule melhor com o sistema político, projete nele seu modo de viver, pensar e fazer política. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/08/2010, p. A2].
O discurso ausente
Posted on sábado, 28 de agosto de 2010 by Editor in