Há tantos programas religiosos na TV e no rádio, e tantos canais e rádios religiosas, que esse exagero midiático já passa por algo normal. Mas, na boa, não é. Esta midiatização altamente capitalizada e quiçá altamente capitalizante da religião no nosso país precisa ser pensada, e para isso precisa ser ao menos notada.
Não se trata de ser contra ou a favor da religião, mas sim de pensar o uso de recursos públicos como as ondas de rádio. E também pensar a educação e formação dos jovens.
Uma boa formação precisa ser plural, mostrando aos jovens as várias possibilidades de vida, e deixando claro que as escolhas cabem apenas a eles, visto que eles e apenas eles serão responsáveis pelos próprios destinos. É por isso que precisamos de mais exposição e discussão de posições contrárias, como a religiosidade sem credo, a la Karen Armstrong, e também o ateísmo.
Claro, o que tô dizendo pode causar ahnãos, visto que muitos dos nossos ateus de internet são uns chatos, e uns bocós igrejeiros e intolerantes. Concordo, pois eu mesmo me entedio com o que leio por aí. Mas não é disso que tô falando. Na real, não tô nem falando a favor do ateísmo, visto que simpatizo com a
religiosidade dançante da Karen Armstrong. Tô falando apenas que é grave ter canais de TV apresentando shows de rock cristão, mas não fornecer aos jovens outras visões que podem estar de acordo com suas razões ou inclinações. É grave porque é deformante. E é deformante não porque o rock cristão é interessante, mas porque deforma a percepção da normalidade.
É por isso que curto materiais que trazem diversidade, e esclarecimento, ainda que sejam materiais modestos, como o livro
Discursos ímpios, do Marquês de Sade.
É claro, mal dá para comparar um livrinho com os ataques midiáticos e cheios de capital que citei antes. As diferenças são gritantes. Um chega ao aparelho de TV de cada um, outro está em livrarias, e precisa ser lido, além de entendido. Sei de tudo isso. Mas quero dizer, apenas, que em meio ao nada de pluralidade e à bocozice, eis algo interessante.
Os
Discursos ímpios em questão são uma excelente seleção de textos filosóficos de Sade sobre a religião. A característica fundamental é a argumentação detalhada de temas como a religiosidade cívica, o papel da religião na geração de guerras e violência, e os fundamentos de certos dogmas cristãos, incluindo a imortalidade da alma. Em cada ponto, Sade apresenta argumentos claros e articulados, convidando ao debate e à reflexão.
O livro traz seis textinhos bem bacanas. Dos Cadernos pessoais sai uma reflexão sobre a moralidade como algo independente da religiosidade. Da Filosofia na alcova sai uma comparação das vantagens cívicas do paganismo em relação ao cristianismo. O Diálogo entre um padre e um moribundo, escrito em 1782, mas publicado apenas em 1926, defende que se apoie as bases da felicidade apenas no que é compreensível à razão e pode ser observado pelos sentidos. A Nova Justine apresenta um argumento contra a imortalidade da alma, e a favor da imortalidade do corpo. A História de Juliette traz um argumento contra a existência do inferno, o qual se apoia na falta de menções claras ao mesmo na Bíblia, e também na coerência da doutrina cristã.
Em todos os textos da seleção, o que temos é filosofia da religião a partir de um ponto de vista ateu. Como os textos são claros e acessíveis, qualquer pessoa minimamente educada e interessada pode lê-los. É um bom presente pros adolescentes da família que se interessam um pouquinho por livros.