Ao ler o post “A Esquerda morreu, diz a Direita que não é Direita”, no Blog da Lola, resolvi escrever algumas reflexões pontuais sobre o assunto, fazendo o contraponto a uma série de questões levantadas, tanto no texto, quanto nos comentários postados sobre ele. Inicialmente, iria colocá-las, como comentário, na própria postagem da Lola, mas como ficaram um pouco longas, preferi publicá-las aqui.
1-No Brasil, é extremamente difícil encontrar alguém que se defina como de “direita”, devido a uma certa carga negativa que acompanha o termo e, por conta disto, até os mais ferrenhos direitistas se definem como de “Centro”. Um bom exemplo disto foi a articulação das forças conservadoras na Assembléia Constituinte que elaborou a constituição de 1988 que se autodenominou como “Centrão”. Parte disto deve-se ao fato de que, devido à ditadura militar, a direita ganhou a luta política no Brasil, mas perdeu a luta ideológica, já que boa parte da memória sobre o período foi construída a partir da perspectiva das forças de esquerda. Assim, carregar o rótulo de “direitista” passou a ser algo absolutamente incômodo para qualquer pessoa, nos meios políticos ou acadêmicos. É sintomático, também, que o novo nome do PDS - partido de sustentação do regime militar, em seus últimos anos – seja Partido Progressista, termo este geralmente associado às forças de esquerda;
2-Se em nosso país, tal fenômeno se manifestou com bastante força, não podemos dizer que ele é uma exclusividade brasileira. Norberto Bobbio, em seu “Direita e Esquerda – Razões e Significados de uma Distinção Política”, procura mostrar como a palavra “Esquerda” tem, “para quem a enuncia, um significado axiológico positivo”. Para exemplificar isto, ele cita um dos principais teóricos liberais contemporâneos, Isaiah Berlin, que considera que o liberalismo é de esquerda por se poder ao excessivo poder da autoridade baseada na força da tradição, que seria a principal característica das direitas, ao mesmo tempo que sustenta que o regime que existiu na URSS até o início da década de 1990 tornou imprestável a distinção entre direita e esquerda, por ter usurpado a palavra “Esquerda”;
3-No entanto, parece-me que, nos últimos anos, tal pudor vem se diluindo e uma nova direita, com um discurso mais moderno, começa a sair do armário, ao mesmo tempo em que ocorre uma forte campanha para desqualificar as esquerdas, associando-as ao atraso e à posturas arcaicas. Esta nova direita se identifica por um
ethos particular, que se traduz em uma certa “visão aristocrática” de mundo – uma consciência de perceber-se como diferente da “plebe” – e na crença em uma série de valores que se contrapõe ao que ela define como sendo uma visão “esquerdista” – maior intervencionismo do Estado, políticas distributivistas (qualificadas como "assistencialistas”), recomposição e reestruturação da máquina estatal, políticas de ação afirmativa - tais como: individualismo, empreendedorismo, discurso “meritocrata” e Estado mínimo. Neste sentido, esta direita moderna incorpora em seu discurso questões como meio-ambiente, gênero, direitos humanos, opção sexual e etc..., situando-as dentro da tradição liberal-iluminista de defesa das liberdades individuais e retomando-as do campo da esquerda que as levantaram como bandeiras nas últimas décadas;
4-Há um certo segmento da sociedade – notadamente dentre as camadas médias – que mesmo sem se auto-definir como “direita”, pelas questões levantadas mais acima, assume como seus esse
ethos e esses valores, em parte ou totalmente, embora normalmente levante as bandeiras da “neutralidade” e do “apoliticismo”. Este é o perfil de boa parte dos leitores da “Veja” e de “O Globo” que, não tendo grandes sofisticações intelectuais, vêem colunistas como o Jabor e o Mainardi – que repetem o supra-sumo do senso comum conservador – como seus grandes porta-vozes. O sucesso de cronistas do gênero entre esses setores, deve-se ao fato deles traduzirem de forma minimamente elaborada os anseios e a visão de mundo de seu público leitor;
5-Se esta direita moderna – consciente ou não – possui pontos que a diferenciam da direita tradicional, seja a cristã ou a de tendências autoritárias, ela também possui algumas semelhanças com suas congêneres mais extremadas, dentre as quais destaco a presença de um forte discurso em defesa da moralidade pública – nem sempre condizente com sua prática cotidiana -, associando desvios éticos à esquerda que teria por prática o “aparelhamento do Estado”. No Brasil, isto tem aparecido de forma bastante intensa no discurso neoudenista que veio à tona desde que Lula assumiu a presidência;
6-Outro aspecto deste renascimento da direita é a intensidade do revisionismo histórico – que serviu de mote para um excelente debate no
Blog do Idelber - que vem sendo levado a cabo nos últimos anos, tanto pelos grandes grupos de comunicação, quanto por alguns círculos acadêmicos. Um bom exemplo disto é uma certa produção intelectual que tem chegado às livrarias nesta última década que, propondo uma releitura do golpe de 1964 e do regime instaurado a partir dele, chega a culpabilizar a esquerda, mesmo que de forma indireta, pela intensa repressão do período. Outro caso bem recente foi a referência da “Folha de São Paulo” ao regime militar brasileiro como “ditabranda”, em uma ofensa grave à memória daqueles que morrerem ou foram perseguidos durante os anos do autoritarismo. Tal revisionismo não se limita somente a dar uma nova interpretação a fatos ou processos históricos, mas chega ao paroxismo de distorcê-los ou mesmo falseá-los, para justificar suas teses (Alguém se lembra do artigo do Ali Kamel dizendo que “O Globo” não era contra a Campanha das Diretas?);
7-Por outro lado, dentro do campo da esquerda há setores tão retrógrados quanto aqueles que estão no extremo oposto do espectro político. Há uma certa esquerda que continua a analisar a conjuntura do Brasil em 2009, como se estivesse analisando a da Rússia de 1917 e que ainda insiste em levantar bandeiras que não cabem mais no mundo contemporâneo. Mantendo uma visão binária do mundo e da sociedade brasileira, esta esquerda adota uma postura com fortes elementos de fundamentalismo religioso, construindo uma espécie de Religião sem Deus, ou melhor, uma religião que tem a História (pobrezinha da Clio!) como uma espécie de
Deus Ex Machina. Nesta perspectiva, qualquer líder político imbecil que apareça, em qualquer parte do mundo, com um discurso “revolucionário e antiimperialista” é saudado como o novo messias que liderará as massas rumo ao socialismo;
8-Norberto Bobbio afirma que o valor central para a direita é a liberdade, entendendo-se o mercado como o espaço, por excelência, dessa liberdade; já o valor essencial para esquerda é a igualdade e o espaço dessa igualdade é, indubitavelmente, o do Estado. Neste sentido, uma esquerda moderna terá que promover a síntese desses dois valores, adequando-os aos ditames de um mundo em acelerada transformação.
9-Creio que no Brasil de hoje, estamos a viver uma experiência bastante interessante e que pode servir de modelo para os demais países periféricos. O governo Lula, com todos os seus defeitos e limitações, está inaugurando um novo paradigma de Estado e de inserção internacional do país, o chamado "Estado Logístico" - definido por alguns autores como o Prof. Amado Cervo (UnB) - que combina, em sua ideologia subjacente, um elemento externo, o liberalismo, e outro interno, o desenvolvimentismo. A adoção de tal paradigma ajuda a explicar a manutenção da estabilidade econômica, bem como uma certa “imunidade” que o nosso país tem tido diante da crise mundial, além, é claro, de reforçar o papel do Brasil como ator global.
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Last but not least: o governo Lula não rompeu com a ordem estabelecida, manteve e aperfeiçoou as linhas gerais da política macroeconômica, aumentou a visibilidade internacional do Brasil, tem índices de corrupção – apesar da grande imprensa afirmar o contrário – menores que os do governo FHC, ajudou a consolidar o Sistema Financeiro brasileiro e contribuiu enormemente para a internacionalização das grandes empresas nacionais. Enfim, é um governo que aceitou as regras do jogo e o joga dentro da lógica do Estado Logístico. Logo a enorme resistência de certos setores a ele só pode ser explicada por três palavrinhas: preconceito de classe. Afinal a imagem do Lula não reflete a imagem que estes setores tem de si e que gostariam que fosse a imagem do Brasil. O problema é que para azar deles existe no Brasil uma entidade incômoda – cuja imagem o Lula reflete bem – chamada povo. Aquela mesma entidade que já foi chamada ao longo da história de plebe, ralé, patuléia, arraia-míuda, gentalha...
São estas as minhas (não tão) breves reflexões. Não são idéias fechadas e nem acabadas. Se alguém quiser debatê-las, estou na área.