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Ação penal 470: sem provas e sem teoria

Luiz Moreira 

Judiciário em democracia tem de ser garantista. O STF ignorou essa tradição. Direito penal com deduções não deve existir, por mais clamor popular que exista

Em 11 de novembro, a Folha publicou entrevista com o jurista Claus Roxin em que são estabelecidas duas premissas para a atuação do Judiciário em matéria penal. Uma é a comprovação da autoria para designar o dolo. A outra é e que o Judiciário, nas democracias, é garantista.

Roxin consubstancia essas premissas nas seguintes afirmações:

1) "A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção ["dever de saber"] é do direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso do Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou os sequestros e homicídios realizados."

2) "É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao direito".

Na seara penal, portanto, o Judiciário age como a instância que garante as liberdades dos cidadãos, exigindo que o acusador demonstre de forma inequívoca o que alega.

Assim, atribui-se ao Judiciário o desempenho de um papel previamente estabelecido, pelo qual "fazer justiça" significa o cumprimento correto dos procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico.

Com Roxin, sustento que cabe ao Judiciário se circunscrever ao cumprimento de seu papel constitucional, de se distanciar da tentativa de se submeter ao clamor popular e de aplicar aos jurisdicionados os direitos e as garantias fundamentais.

Nesse sentido, penso que, durante o julgamento da ação penal 470, o STF se distanciou do papel que lhe foi confiado pela Constituição de 1988, optando em adotar uma posição não garantista, contornando uma tradição liberal que remonta à Revolução Francesa.

Esses equívocos conceituais transformaram, no meu entender, a ação penal 470 num processo altamente sujeito a contestações várias, pois o STF não adotou corretamente nem sequer o domínio do fato como fundamento teórico apropriado. Tais vícios, conceitual e metodológico, se efetivaram do seguinte modo:

1) O relator criou um paralelo entre seu voto e um silogismo, utilizando-se do mesmo método da acusação. O relator vinculou o consequente ao antecedente, presumindo-se assim a culpabilidade dos réus.

2) Em muitas ocasiões no julgamento, foi explicitada a ausência de provas. Falou-se até em um genérico "conjunto probatório", mas nunca se apontou em que prova o dolo foi demonstrado.

Por isso, partiu-se para uma narrativa em que se gerou uma verossimilhança entre a ficção e a realidade. Foi substituída a necessária comprovação das teses da acusação por deduções, em que não se delineia a acusação a cada um dos réus nem as provas, limitando-se a inseri-los numa narrativa para chegar à conclusão de suas condenações em blocos.

3) Por fim, como demonstrado na entrevista de Roxin, como as provas não são suficientes para fundamentar condenações na seara penal, substituíram o dolo penal pela culpa do direito civil.

A inexistência de provas gerou uma ficção que se prestou a criar relações entre as partes de modo que se chegava à suspeita de que algo realmente acontecera. Ocorre que essas deduções são próprias ao que no direito se chama responsabilidade civil, inaplicável ao direto penal.
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LUIZ MOREIRA, 43, doutor em direito e mestre em filosofia pela UFMG, é diretor acadêmico da Faculdade de Direito de Contagem
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Algumas coisas nunca mudam

A Alçada 
Kenneth Maxwell

Em 17 de julho de 1790, a rainha Maria, de Portugal, estabeleceu um tribunal itinerante especial, ou Alçada, para julgar os conspiradores de Minas Gerais, detidos no Rio de Janeiro e em Minas, sem direito a visitas desde a traição na Inconfidência Mineira, em 1789.

Os prisioneiros incluíam Joaquim José da Silva Xavier, alferes nos Dragões de Minas e mais conhecido pelo apelido Tiradentes, e o desembargador Tomás Antônio Gonzaga.

O chanceler indicado para o Tribunal de Relação do Rio de Janeiro, desembargador Sebastião Xavier de Vasconcellos Coutinho, foi apontado para presidir a Alçada, formada também por Antônio Gomes Ribeiro e Antônio Diniz da Cruz e Silva, da Casa de Suplicação, que se juntaram a ele em Lisboa.

O chanceler Vasconcellos Coutinho foi instruído a ignorar "qualquer falta de formalidades [...] e invalidades judiciais [...] que possam existir nas devassas, e considerar as provas de acordo com a lei natural". A Alçada recebeu toda a autoridade necessária: "Não obstante todas as outras leis, disposições, privilégios e ordens em contrário, apenas para esta ocasião".

Em 15 de outubro de 1790, porém, a rainha enviou uma "carta régia", sigilosa, a Vasconcellos Coutinho recomendando clemência para os implicados na conspiração mineira, e as linhas gerais do sentenciamento haviam sido definidas por acordo antes que ele partisse de Lisboa.

Os conspiradores de Minas seriam exilados para Angola, Moçambique e Cabo Verde. Os padres seriam sentenciados em segredo e presos em Portugal. A exceção seria Tiradentes.

Com a reabertura da devassa no Rio, porém, logo se tornou evidente que muitos participantes que deveriam ter sido presos continuavam livres.

A ocasião mais dramática veio em julho de 1791, durante um confronto quanto aos testemunhos conflitantes do padre Carlos Corrêa e de Oliveira Lopes, antigo integrante dos Dragões de Minas.

Quando confrontado com relação a seu depoimento, Oliveira Lopes respondeu que havia "mentido sem objetivo, sem razão, porque quem não mente não é de boa gente". O chanceler ficou indignado. Considerou que a resposta fosse um ataque "à integridade e reputação dos magistrados de Sua Majestade". Oliveira Lopes respondeu que, "como homem rústico, nada mais podia dizer, ou tinha a responder".

Os membros da Alçada estavam sujeitos a influências externas -em um caso, inclusive, pelo pagamento de um grande suborno em ouro.

Ao final, Tiradentes foi sacrificado. E, se por acaso os processos da Alçada começam a lhe parecer estranhamente semelhantes com o mensalão, isso não deveria causar surpresa: de fato, são. Algumas coisas nunca mudam.

Tradução de Paulo Migliacci
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Uma modesta contribuição para rever o julgamento da vergonha

J. Carlos de Assis, na Carta Maior

É falso que o julgamento do chamado núcleo político do suposto mensalão não possa ser revisto ou anulado. Todas as pessoas medianamente informadas do país sabem agora que as condenações se basearam numa figura jurídica alemã, o “domínio do fato”, que não se aplica a rigor para condenar Dirceu e Genoíno. Um dos maiores especialistas alemães na matéria, o jurista Claus Roxin, desqualificou de forma cristalina a interpretação da tese em que se apoiou o Supremo.

Claro que, enquanto se mantiver a atual composição, o Supremo não reverá sua posição em relação ao julgamento da vergonha. Contudo, não é ele que faz leis. Quem faz leis é o Congresso Nacional. E as leis beneficiam retroativamente os condenados. Diante disso, embora não seja jurista, dou minha modesta contribuição para que o sistema político brasileiro, através de uma iniciativa legal no Congresso, crie uma saída honrosa para o embrulho jurídico em que o Supremo meteu a todos que dependem de Justiça e que não podem ficar ao sabor das interpretações subjetivas dos juízes, como é no monstruoso sistema anglo-saxão. Ei-la, na forma de uma emenda ao Código Penal:

Art. 1º. Define-se como domínio do fato a ação intelectual provada de autoridade pública ou privada que determine obediência de subordinados hierárquicos ou morais para execução material de crime.

Parágrafo 1º. Não se presumirá culpa de superior hierárquico ou moral sem inequívoca prova material ou testemunhal.

Parágrafo 2º Para formação de prova do domínio do fato, será desconsiderado testemunho de inimigo confesso ou reconhecido como tal por testemunhos idôneos.

Parágrafo 3º Uma vez provado o domínio do fato, o responsável será condenado a pena no mínimo igual à dos executantes materiais.
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Teórico do Domínio do Fato pode participar de defesa de Dirceu

Claus Roxin confirma interesse em escrever parecer para recursos que serão apresentados pelo ex-ministro da Casa Civil ao Supremo Tribunal Federal e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Jurista alemão desautorizou o uso pelo STF de sua doutrina. Segundo ele, não basta poder mandar; é preciso, efetivamente, mandar


Há mais um capítulo reservado para o embate jurídico da Ação Penal 470. O jurista alemão Claus Roxin confirmou que foi procurado pela defesa do ex-ministro José Dirceu e demonstrou interesse em fornecer pareceres relacionados à doutrina do "domínio do fato", desenvolvida por ele.

Ouvido pelo jornalista Luciano Alarcon, que o procurou em Munique e escreveu texto especial para a Folha deste domingo, Roxin afirmou que ainda não conhece o caso "em detalhes", mas disse que, em breve, "terá com certeza um conhecimento mais aprofundado do assunto".

Advogado de Dirceu, José Luiz de Oliveira Lima embarca para a Alemanha no fim do mês e tem agenda marcada com Roxin.

No início do processo, o procurador Roberto Gurgel falou em "provas tênues" contra José Dirceu e da inexistência do "ato de ofício". Passou a defender que, em crimes mais complexos, de quadrilha, fosse utilizada a teoria do "domínio do fato", segundo a qual a pessoa em posição hierárquica superior também devesse ser incriminada.

O tema gerou intensa discussão no plenário, com um aparte feito pelo revisor Ricardo Lewandowski, que alertou sobre as precauções que deveriam ser tomadas em relação à doutrina alemã, usada em casos muito específicos – como, por exemplo, para incriminar figuras do regime da antiga Alemanha Oriental pelos disparos feitos por soldados contra alemães que tentavam saltar o Muro de Berlim.

Em entrevista recente, Roxin afirmou que a teoria do domínio do fato não elimina a necessidade de provas. Ou seja: não basta poder mandar. É preciso também que fique provado que alguém, efetivamente, mandou.

Depois da entrevista de Roxin, alguns analistas passaram a relativizar o uso da teoria do domínio do fato na condenação de Dirceu. Foi o caso, por exemplo, de Merval Pereira, que afirmou que o ex-ministro foi condenado em função de "provas torrenciais" contra ele, e não pelo domínio do fato, ajustando, assim, seu discurso.
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O julgamento de Dirceu acabou; vamos agora ao do Supremo

J. Carlos de Assis, Carta Maior 

Este julgamento tem que ser simplesmente anulado. Diante de um Supremo Tribunal que ameaça as bases do Direito objetivo brasileiro, o Senado da República deve ser chamado a atuar. A cidadania não pode ficar à mercê de burocratas togados que se servem de interesses políticos, e não da lei.

O domínio do fato, a tese central estuprada pelo Supremo Tribunal Federal para condenar José Dirceu a mais de dez anos de cadeia, é mais ou menos o seguinte: alguém com superioridade moral, mesmo que não hierárquica, sobre três outras pessoas com funções específicas torna-se responsável por qualquer coisa que essas pessoas façam de irregular. Ou seja, o que se condena é a superioridade moral, não a ação irregular. Portanto, ai daqueles que, ao longo da vida, conquistaram o respeito e a superioridade moral sobre outros. Como dizia o Pequeno Príncipe, “tornam-se eternamente responsáveis por aqueles que cativam”.

De um ponto de vista estritamente objetivo, Jânio Freitas, comentando uma entrevista na Folha de S. Paulo do jurista alemão Claus Roxin, que se destaca entre os formuladores da tese do “domínio de fato”, deu um esclarecimento definitivo sobre a deturpação desse conceito pelo Supremo brasileiro em sua sanha de condenar sem provas. É difícil não se indignar diante do arroubo arbitrário dos que, não tendo poder oriundo do povo, agem como demagogos para agradar uma opinião pública claramente manipulada por grupos políticos minoritários e seus escudeiros na grande imprensa.

É em razão disso que me proponho imediatamente a subscrever a campanha de opinião pública crítica liderada pelo Blog da Cidadania e apoiada por Carta Maior. Este julgamento tem que ser simplesmente anulado. Os caminhos para isso não estão definidos literalmente pela Constituição, mas o espírito da Constituição Cidadã deve prevalecer sobre o rito burocrático violado. Diante de um Supremo Tribunal que ameaça as bases do Direito objetivo brasileiro, o Senado da República deve ser chamado a atuar. A cidadania não pode ficar à mercê de burocratas togados que se servem de interesses políticos, e não da lei.

Não tendo sido unânime a decisão do Supremo, não precisamos de ter escrúpulos em afirmar que a decisão tomada é tecnicamente equivocada. Ministros, pelo menos um ministro que examinou cuidadosamente o processo na qualidade de revisor, pensa dentro da técnica jurídica como nós pensamos dentro do espírito sociológico. Pois que pensemos seriamente em buscar meios para anular esse julgamento dentro da constitucionalidade. O Congresso, assim como criou uma Comissão de especialistas para rever o Código Penal, deve criar uma Comissão para examinar em que medida as bases jurídicas brasileiras foram violadas pelo julgamento da vergonha.

Esse debate serviria para dar à opinião pública o esclarecimento que não teve. Ao contrário, ela foi bombardeada pelo sensacionalismo da grande mídia, principalmente de algumas revistas, as quais, perdendo terreno para as novas tecnologias de informação, têm como principal recurso de ganhar leitores e anunciantes a produção de escândalos, notadamente os fabricados mediante a manipulação de fatos truncados. Isso tem levado a que mesmo pessoas pensem, com autêntica boa fé, que algo de realmente escabroso aconteceu na direção do PT pois, do contrário, não haveria tanto barulho. Não sabem que não foi o fato que produziu o barulho. Foi o barulho que produziu o fato.

Para a condenação dos importantes líderes políticos do PT – deixo de lado Delúbio, que honradamente chamou a si a responsabilidade pelo caixa dois de campanha -, pesou sem dúvida o mantra que penetrou no inconsciente coletivo brasileiro de que este é o país da impunidade. Como? Este país colocou para fora um Presidente suspeito de corrupção, cassou mandato de senadores e deputados, pôs juiz de Direito na prisão, condenou banqueiro à cadeia, tem condenado e expulso membros de toda a hierarquia da Polícia Militar, para não falar em gente da elite cultural e financeira condenada. É claro que não há impunidade. Houve impunidade, sim, no governo militar. Mas agora o que se faz, com esse julgamento, é saltar da impunidade dos culpados na ditadura para a condenação exemplar de inocentes na democracia.

Estou entre os jornalistas que introduziram o jornalismo investigativo na área econômica ao tempo da ditadura. Denunciei vários escândalos em jornal, escrevi livros, dei palestras. Na época, não havia Ministério Público independente, que foi uma criação da Constituinte; a Polícia Federal só cuidava de prender comunistas; o Judiciário estava amordaçado; o Congresso, submisso. Assim mesmo, com estrito trabalho jornalístico e sem o sensacionalismo da televisão, foi possível expor as entranhas dos desvios financeiros sob a ditadura. Agora o trabalho jornalístico da grande imprensa parece invertido: em vez de investigar por conta própria, ela usa e toma como verdade as investigações de escuta da Polícia Federal.

Pior, ela toma como verdade a acusação profissional do Ministério Público, a qual, no caso extremo do chamado mensalão, foi transformada em verdade pelo relator rancoroso do processo. Nessa atmosfera, o que se pode esperar da opinião pública? Assim, para restabelecer a Justiça, é fundamental uma mobilização popular pela revisão do julgamento. É daí que pode surgir uma comissão da verdade com vistas não ao passado, mas ao presente e ao futuro.

(*) Economista e professor da UEPB, presidente do Intersul, autor junto com o matemático Francisco Antonio Doria do recém-lançado “O Universo Neoliberal em Desencanto”, Ed. Civilização Brasileira. Esta coluna sai às terças também no site Rumos do Brasil e no jornal carioca Monitor Mercantil.
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STF deu golpe e assumiu o poder

Por Rui Martins, correspondente em Genebra - Correio do Brasil 

Não há dúvida, houve um golpe contra o governo petista e o STF assumiu o poder. O momento é de ditadura do Judiciário sobre o Executivo e Legislativo.

A mais recente tentativa de golpe pelo STF foi no julgamento do italiano Cesare Battisti, ameaçado de extradição a pedido do governo Berlusconi. Num artigo publicado na época, alertei quanto à tentativa de golpe pelo STF. O objetivo do Supremo, presidido então por Gilmar Mendes, era o retirar do presidente Lula o direito, que lhe era garantido pela Constituição, de decidir se Battisti seria ou não enviado ao governo italiano.

Antes disso houve, e o ex-ministro da Justiça Tarso Genro, denunciou diversas vezes, a inconstitucionalidade da decisão tomada pelo STF, ultrapassando seus poderes, de ignorar a decisão do ministro da Justiça negando expatriar Cesare Battisti. Gilmar Mendes e Peluso tudo fizeram para expatriar Battisti, julgando-se mais competentes na matéria que o Ministério da Justiça e, atingido esse objetivo, queriam se sobrepor ao direito do presidente Lula dar a última palavra. Essa tentativa de somar mais poder e desmoralizar o presidente se frustrou e Lula deu acolha ao italiano, que tinha passado mais de dois anos ilegalmente preso.

Porém ficou evidente – o STF era incompetente na questão Battisti, seu longo julgamento deve ser considerado nulo e desnecessário, pois a questão já havia sido resolvida pelo ministro da Justiça. Em todo caso, desrespeitando o princípio constitucional da equiparação dos Poderes, o STF decidiu por maioria de um voto pela extradição de Battisti sem dispor de provas, optando pela versão unilateral do governo italiano.

Não me lembro qual foi a posição do ministro Joaquim Barbosa quanto a Battisti, mas me parece não ter votado por estar em licença por doença.

O jurista Carlos Lungarzo, que publica nos próximos dias um livro sobre o caso Battisti, demonstrou com base em documentos europeus a inconsistência dos argumentos italianos contra Battisti e a leviandade de ministros do STF em condenar sem provas o italiano à extradição. Mas nessa primeira tentativa do STF se sobrepor ao Executivo, um precedente foi criado – a última instância judiciária do país, em desrespeito ao princípio básico de Direito, de que não pode haver pena sem prova de crime ou delito, criou a perigosa jurisprudência de que se pode condenar sem provas concludentes.

Tal procedimento lembra os do Tribunal Especial na França ocupada e que consistia em dar a aparência de julgamentos legais a condenações pré-decididas pelo governo de Vichy contra personalidades francesas contrárias à Ocupação nazista. Uma constante é a de que toda vez que o Judiciário se prestou a maquiar perseguições políticas como julgamentos legais foi em obediência a ditaduras de direita ou de esquerda.

Ora, no Brasil, ocorre uma diferença fundamental – a última instância do Judiciário assumiu autonomia própria e age inclusive contra o governo, com o intuito de desmoralizá-lo e de assumir suas prerrogativas e seu poder, para confiná-lo apenas na governança.

O exemplo mais recente de golpe legal, é o do ocorrido no Paraguai, onde o Parlamento, interpretando à sua maneira um texto da Constituição, decretou o impeachment do presidente eleito pelo povo, derrubou-o e passou o poder ao vice-presidente. Ou seja, o Legislativo, contanto com a complacência do Judiciário, deu o golpe no Executivo.

Agora no Brasil, a condenação do principal articulador do governo petista, José Dirceu, visa diretamente o governo e o PT, e é um recado claro do STF de que assume o poder, mesmo se seus ministros-juizes não foram eleitos pelo povo. A partir de agora, todas as questões importantes do governo poderão ser decididas pelo STF e não pela presidenta Dilma e isso pode implicar até na privatização de estatais, como a cobiçada Petrobras, como no impeachment de governadores, prefeitos e até numa inelegibilidade do ex-presidente Lula.

Outro aspecto importante na condenação de José Dirceu está na exigência de ser colocado em cela comum, desobedecendo-se outro preceito legal, que beneficia com tratamento diferentes todos os universitários e ao qual Dirceu teria direito como bacharel em Direito.

Essa exceção reforça a suspeita de não se tratar de um julgamento equitável, mas de um ajuste de contas, alguma coisa parecida com vingança ou revanchismo de perdedores.

Por que tanto ódio contra José Dirceu ? Não pertenço ao PT e me sinto à vontade para comentar. Mesmo se muitos petistas fundadores deixaram o partido por divergir das concessões feitas pelo governo Lula, não se pode negar ter sido Dirceu o principal articulador da eleição de Lula para a presidência. Além disso, foi um resistente contra a ditadura militar. E, embora acusado sem provas mas por ilação como envolvido no episódio do Mensalão, não se tratava de enriquecimento pessoal.

Se nos reportarmos ao ano 2005, quando estourou o caso Mensalão, fica evidente que o alvo daquela campanha era o presidente Lula – o objetivo principal era o de se provocar um impeachment e derrubar Lula. Eu fazia a correção das provas do meu livro sobre Maluf (Dinheiro Sujo da Corrupção – Geração Editorial), e tive tempo de incluir um capítulo sobre o que considerei como um escândalo de excessivas proporções. Não se tratava de se justificar o ato de compra dos votos do parlamentares, mas de uma observação realista.

E eu citava, como costumo citar, o exemplo suíço, país considerado dos mais honestos, onde existe uma versão legal de um tipo de mensalão. Todo deputado ou senador eleito recebe imediatamente o convite das grandes empresas suíças, desde bancos a laboratórios farmacêuticos  para ser vice-presidente do conselho de administração. O objetivo é o de evitar leis que prejudiquem tais bancos ou empresas e o de criar leis que os beneficiem. Trata-se de um compra indireta dos votos dos parlamentares, que poderia também ser considerada como lobby, mas que implica no pagamento de um salário mensal ao parlamentar.

O então presidente do equivalente à nossa Câmara Federal, Peter Hess, era em 2005, vice-presidente de 42 conselhos de administração de empresas suíças, o que lhe garantia mais de 400 mil dólares mensais. E isso sem qualquer escândalo.

A diferença é que, na Suíça, não é um partido que compra o voto de parlamentares mais ou menos honestos, porém as empresas privadas. O fato de na Suíça haver uma versão local de mensalão não justifica essa prática, mas pode lhe dar a verdadeira dimensão.

É evidente que, no Brasil, não se condena o Mensalão como prática desonesta, trata-se de um jogada política para se desmoralizar os petistas, que acabou não surtindo efeito nas eleições (por que diabo o STF escolheu a época das eleições para julgar o Mensalão?), mesmo porque dizem ter havido compra de votos na emenda constitucional que permitiu a reeleição de FHC. Iria o STF julgar agora, sem provas, também o FHC? Outro aspecto importante – estão condenando os chamados corruptores de parlamentares, mas não punem os parlamentares corruptos ?

E agora ? O STF deixou de interpretar as leis, de manter ou anular julgamento, para aplicar sentenças e mesmo acusados não parlamentares não tiveram direito a julgamentos normais em primeira e segunda instância. Deve-se aceitar a humilhação de José Dirceu e os riscos que correrá em prisão comum, quando dentro de dois anos a Suíça devolverá os milhões bloqueados de Maluf, por não ter havido condenação pelo STF ? quando Pimenta Neves vive tranquilo em prisão domiciliar depois de ter matado a sangue frio a jornalista Sandra Gomide ?

Em termos de recursos, as possibilidades de se adiar a execução da pena de José Dirceu são mínimas. Que tribunal acima do STF poderá arguir da condenação sem prova formal ? E da inconstitucionalidade do Judiciário ultrapassando sua competência ? Só um Conselho Constitucional, caso exista como na França, onde leis e sentenças ou decisões judiciárias podem ser anuladas em caso de inconstitucionalidade.

Ou será que José Dirceu é culpado por ter contribuído à diminuição da desigualdade social no Brasil, à ascensão dos negros às escolas e universidades, à projeção do Brasil como sexta potência mundial ? ou de ter articulado a eleição à presidência de um operário quebrando a hegemonia das elites brasileiras ?

Talvez o Brasil ainda não tenha se curado dos repetitivos golpes e tentativas de golpe, constantes na história da República. Getúlio se matou porque havia movimento de tropas para derrubá-lo; Café Filho e Carlos Luz queriam invalidar a eleição de Juscelino e Jango; depois da renúncia de Jânio, Jango só assumiu com a criação do parlamentarismo, um golpe indireto para anular seu poder presidencial; mesmo assim, foi derrubado pelos militares para não concretizar as reformas de base; depois da ditadura militar corremos agora o risco de uma ditadura light ou soft ditada pelo STF ?

Em todos esses episódios, os golpes e tentativas visavam governos populistas ou reformistas interessados em dar mais direitos aos trabalhadores ou excluídos e restringir os privilégios da elite dominante.
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Poderosos e "poderosos" no mensalão

Paulo Moreira Leite

Num esforço para exagerar a dimensão do julgamento do Supremo, já tem gente feliz porque agora foram condenados “poderosos…”

Devagar. Você pode até estar feliz porque José Dirceu, José Genoíno e outros podem ir para a cadeia e cumprir longas penas.

Eu acho lamentável porque não vi provas suficientes.
Você pode achar que elas existiam e que tudo foi expressão da Justiça.

“Poderosos?” Vai até o Butantã ver a casa do Genoíno…

Poderosos sem aspas, no Brasil, não vão a julgamento, não sentam no Supremo e não explicam o que fazem. As maiores fortunas que atravessaram o mensalão ficaram de fora, né meus amigos. Até gente que estava em grandes corrupções ativas, com nome e sobrenome, cheque assinado, dinheiro grosso, contrato (corrupção às vezes deixa recibo) e nada.

Esses escaparam, como tinham escapado sempre, numa boa, outras vezes.

É da tradição. Quando por azar os poderosos estão no meio de um inquérito e não dá para tirá-los de lá, as provas são anuladas e todo mundo fica feliz.

É só lembrar quantas investigações foram anuladas, na maior facilidade, quando atingiam os poderosos de verdade… Ficam até em segredo de justiça, porque poderoso de verdade se protege até da maledicência…
E se os poderosos insistem e tem poder mesmo, o investigador vira investigado…

Poderoso não é preso, coisa que já aconteceu com Genoíno e Dirceu.

Já viu poderoso ser torturado? Genoíno já foi.

Já viu poderoso ficar preso um ano inteiro sem julgamento sem julgamento?
Isso aconteceu com Dirceu em 1968.

Já viu poderoso viver anos na clandestinidade, sem ver pai nem mãe, perder amigos e nunca mais receber notícias deles, mortos covardemente, nem onde foram enterrados? Também aconteceu com os dois.

Já viu poderoso entregar passaporte?

Já viu foto dele com retrato em cartaz de procurados, aqueles que a ditadura colocava nos aeroportos. Será que você lembrou disso depois que mandaram incluir o nome dos réus na lista de procurados?

Poderoso? Se Dirceu fosse sem aspas, o Jefferson não teria dito o que disse. Teria se calado, de uma forma ou de outra. Teriam acertado a vida dele e tudo se resolveria sem escândalo.

Não vamos exagerar na sociologia embelezadora.

Kenneth Maxwell, historiador respeitado do Brasil colonial, compara o julgamento do mensalão ao Tribunal que julgou a inconfidência mineira. Não, a questão não é perguntar sobre Tiradentes. Mas sobre Maria I, a louca e poderosa.

Tanto lá como cá, diz Maxwell, tivemos condenações sem provas objetivas. Primeiro, a Coroa mandou todo mundo a julgamento. Depois, com uma ordem secreta, determinou que todos tivessem a vida poupada – menos Tiradentes.

Poderoso é quem faz isso.
Escolhe quem vai para a forca.

“Poderoso” pode ir para a forca, quando entra em conflito com sem aspas.

Genoíno, Dirceu e os outros eram pessoas importantes – e até muito importantes – num governo que foi capaz de abrir uma pequena brecha num sistema de poder estabelecido no país há séculos.

O poder que eles representam é o do voto. Tem duração limitada, quatro anos, é frágil, mas é o único poder para quem não tem poder de verdade e depende de uma vontade, apenas uma: a decisão soberana do povo.

Por isso queriam um julgamento na véspera da eleição, empurrando tudo para a última semana, torcendo abertamente para influenciar o eleitor, fazendo piadas sobre o PT, comparando com PCC e Comando Vermelho…

Por isso fala-se em “compra de apoio”, “compra de consciências”, “compra de eleitor…” Como se fosse assim, ir a feira e barganhar laranja por banana.

Trocando votos por sapatos, dentadura…

Tudo bem imaginar que é assim mas é bom provar.

Me diga o nome de um deputado que vendeu o voto. Um nome.

Também diga quando ele vendeu e para que.

Diga quem “jamais” teria votado no projeto x (ou y, ou z) sem receber dinheiro e aí conte quando o parlamentar x, y ou z colocou o dinheiro no bolso.

Estamos falando, meus amigos, de direito penal, aquele que coloca a pessoa na cadeia. E aí é a acusação que tem toda obrigação de provar seu ponto.

Como explica Claudio José Pereira, professor doutor na PUC de São Paulo, em direito penal você não pode transferir a responsabilidade para o acusado e obrigá-lo a provar sua inocência. Isso porque ele é inocente até prova em contrário.

O Poder é capaz de malabarismos e disfarces, mas cabe aos homens de boa fé não confundir rosto com máscara, nem plutocratas com deserdados…

Poder é o que dá medo, pressiona, é absoluto.

Passa por cima de suas próprias teorias, como o domínio do fato, cujo uso é questionado até por um de seus criadores, o que já está ficando chato.

Nem Dirceu nem Genoíno falam ou falaram pelo Estado brasileiro, o equivalente da Coroa portuguesa. Podem até nomear juízes, como se viu, mas não comandam as decisões da Justiça, sequer os votos daqueles que nomearam.

Imagine se, no julgamento de um poderoso, o ministério público aparecesse com uma teoria nova de direito, que ninguém conhece, pouca gente estudou de verdade – e resolvesse com ela pedir cadeia geral e irrestrita…

Imagine se depois o relator resolvesse dividir o julgamento de modo a provar cada parte e assim evitar o debate sobre o todo, que é a ideia de mensalão, a teoria do mensalão, a existência do mensalão, que desse jeito “só poderia existir”, “está na cara”, “é tão óbvio”, e assim todos são condenados, sem que o papel de muitos não seja demonstrado, nem de forma robusta nem de forma fraca…

Imagine um revisor sendo interrompido, humilhado, acusado e insinuado…

Isso não se faz com poderosos.

Também não vamos pensar que no mensalão PSDB-MG haverá uma volta do Cipó de Aroeira, como dizia aquela música de Geraldo Vandré.

Engano.

Não se trata de uma guerra de propaganda. Do Chico Anísio dizendo: “sou…mas quem não é?”

Bobagem pensar em justiça compensatória.

Não há José Dirceu, nem José Genoíno nem tantos outros que eles simbolizam no mensalão PSDB-MG. Se houvesse, não seria o caso. Porque seria torcer pela repetição do erro.

Essa dificuldade mostra como é grave o que se faz em Brasília.

Mas não custa observar, com todo respeito que todo cidadão merece: cadê os adversários da ditadura, os guerrilheiros, os corajosos, aqueles que têm história para a gente contar para filhos e netos? Aqueles que, mesmo sem serem anjos de presépio nem freiras de convento, agora serão sacrificados, vergonhosamente porque sim, a Maria I, invisível, onipresente, assim deseja.

Sem ilusões.

Não, meus amigos. O que está acontecendo em Brasília é um julgamento único, incomparável. Os mensalões são iguais.

Mas a política é diferente. É só perguntar o que acontecia com os brasileiros pobres nos outros governos. O que houve com o desemprego, com a distribuição de renda.

E é por isso que um deles vai ser julgado bem longe da vista de todos…

E o outro estará para sempre em nossos olhos, mesmo quando eles se fecharem.

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STF desvirtuou teoria do domínio do fato

Teoria do domínio do fato diferencia autor e partícipe 
Por Fernanda Lara Tórtima

Podem ser indicados como precursores da utilização do conceito de domínio do fato no tratamento da autoria e da participação em Direito Penal diversos autores alemães, que, a exemplo de H. Bruns, Hellmuth v. Weber, Eb. Schmidt, Lobe e, finalmente Welzel — este último já inserindo o conceito na teoria da ação — escreveram sobre o tema na década de 1930.

Posteriormente, a teoria do domínio do fato encontrou sofisticado e quiçá pleno desenvolvimento com os trabalhos oferecidos à comunidade jurídica pelo renomado professor emérito da Universidade de Munique Claus Roxin, a partir dos anos 1960. Segundo suas contribuições, pode o fato ser dominado de três diferentes formas:

I — Pelo domínio da ação, que se dá quando o agente realiza o fato típico pelas próprias mãos, portanto como autor e não instigador ou cúmplice (mero partícipe);

II — Pelo domínio da vontade, que se dá quando o autor imediato realiza o tipo atuando em erro ou sob coação, tendo sua vontade dominada pelo autor mediato, que, assim, deixa de ser mero partícipe instigador ou cúmplice, não se podendo olvidar aqui a formulação relativa ao domínio da vontade no âmbito de estruturas organizadas de poder; e, finalmente,

III — Pelo domínio funcional do fato, que fundamenta a coautoria, baseada na divisão de tarefas entre os autores.

O que nunca imaginaram os referidos autores tedescos é que a teoria por eles cuidadosamente estudada e desenvolvida viria a ser um dia desvirtuada e utilizada para flexibilizar a análise rigorosa que deve ser feita em um processo penal acerca da prova dos autos, a partir da presunção de que alguém tenha participado da prática de determinado crime em razão de sua posição hierárquica dentro de determinada estrutura de poder, como ocorreu recentemente em determinadas passagens do julgamento da Ação Penal 470.

Com base no que ouviram dos votos ali proferidos, não faltaram manifestações na imprensa no sentido de que a “nova” teoria do domínio do fato — que, como visto, de nova nada tem — possibilitaria condenações com base em prova indiciária.

Não se quer aqui questionar a existência de provas para a condenação de qualquer um dos que figuram como acusados no processo em questão, menos ainda afirmar ser inadmissível a condenação em ações penais em geral com base em provas indiciárias. Mas o que não se pode conceber é que a teoria do domínio do fato seja utilizada para finalidades para as quais não foi desenvolvida.

Como visto, a teoria do domínio do fato, notadamente em suas formulações mais modernas, serve simplesmente à distinção entre autor e partícipe (instigador ou cúmplice). É autor, e não partícipe, quem tem o domínio final sobre os fatos típicos, seja pelo domínio da ação, pelo domínio da vontade ou pelo domínio funcional dos fatos. A distinção é de fundamental importância, notadamente para fins de dosimetria da pena a ser aplicada em caso de condenação. Mas, querer vincular a análise da prova dos autos acerca da participação de acusados nos crimes que lhes foram imputados à teoria do domínio do fato é demonstração de supremo desconhecimento sobre sua origem e finalidade.

O concurso de acusados em determinada empreitada criminosa, seja na qualidade de meros partícipes (instigadores ou cúmplices) ou na qualidade de autores, deve ser comprovado independentemente da interferência da teoria em questão. E, uma vez comprovado, aí sim se poderá lançar mão do conceito de domínio do fato para que se conclua terem os acusados atuado como autores ou simples partícipes.

No Peru foi a teoria do domínio do fato utilizada corretamente por sua Corte Suprema, possibilitando-se a condenação do ex-presidente Fujimori como autor mediato dos crimes cometidos durante o seu governo por autores plenamente responsáveis, integrantes dos órgãos de repressão então existentes. No julgamento de Fujimori, ao contrário do que se fez aqui, a teoria em nada dizia respeito à análise da prova dos autos. Lá o que se fez foi condenar Fujimori como autor, e não mero partícipe, considerando-se ter ele exercido, por meio de uma estrutura organizada de poder, o domínio da vontade dos autores que realizaram o tipo pelas próprias mãos (imediatos). E isso por ter sido verificada a presença de quatro requisitos: o poder de Fujimori para emitir ordens, o afastamento da ordem jurídica da estrutura de poder, a fungibilidade do autor imediato — consistente no fato de que qualquer outra pessoa poderia substituir o autor originariamente designado — e a sua alta disposição para a realização do fato criminoso. Sem a teoria do domínio do fato, Fujimori não teria sido absolvido, mas condenado como partícipe.

Como se vê, ali teve a teoria, adotando-se formulação criada pelo professor Claus Roxin, aproveitamento adequado. Já no julgamento em andamento em nossa Corte Suprema, além de se lançar, de forma absolutamente descontextualizada, que determinados acusados tinham domínio “final” ou “funcional” do fato, nem se chegou a indicar de que forma se pretendeu utilizar a teoria em questão. De resto, no caso brasileiro, a teoria dos aparelhos organizados de poder sequer seria adequada, pois um aparato organizado de poder é, ao menos segundo a formulação original da teoria, uma organização alheia ao direito, isto é, algo como um grupo terrorista, um estado dentro do Estado, e não um partido político legalmente reconhecido.

A teoria do domínio do fato assumiu no julgamento da Ação Penal 470 ares de novidade. A adoção de teorias aparentemente herméticas, e, de toda sorte, conhecidas por uma parcela pequena da população e mesmo da comunidade jurídica, costuma servir de álibi para drásticas alterações de orientação de entendimento jurídico. A culpa passa a ser da “nova” teoria, como se ela não existisse antes, e como se servisse aos fins para os quais foi utilizada.

Fernanda Lara Tórtima é advogada criminal e presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ.
Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2012
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Mensalão: um julgamento político

Mauro Santayana
Jornal do Brasil

O julgamento da Ação 470, que chega ao seu fim com sentenças pesadas contra quase todos os réus, corre o risco de ser considerado como um dos erros judiciários mais pesados da História. Se, contra alguns réus, houve provas suficientes dos delitos, contra outros os juízes que os condenaram agiram por dedução. Guiaram-se pelos silogismos abengalados, para incriminar alguns dos réus.

O relator do processo não atuou como juiz imparcial: fez-se substituto da polícia e passou a engenhosas deduções, para concluir que o grande responsável fora o então ministro da Casa Civil, José Dirceu. Podemos até admitir, para conduzir o raciocínio, que Dirceu fosse o mentor dos atos tidos como delituosos, mas faltaram provas, e sem provas não há como se condenar ninguém.

O julgamento, por mais argumentos possam ser reunidos pelos membros do STF, foi político. Os julgamentos políticos, desde a Revolução Francesa, passaram a ser feitos na instância apropriada, que é o Parlamento. Assim foi conduzido o processo contra Luis XVI. Nele, de pouco adiantaram os brilhantes argumentos de seus notáveis advogados, Guillaume Malesherbes, François Tronchet e Deseze, que se valiam da legislação penal comum.

O julgamento era político, e feito por uma instituição política, a Convenção Nacional, que representava a nação; ali, os ritos processuais cediam lugar à vontade dos delegados da França em processo revolucionário. A tese do poder absoluto dos parlamentares para fazer justiça partira de um dos mais jovens revolucionários, Saint-Just. Ela fora aceita, entre outros, por Danton e por Robespierre, que se encarregou de expô-la de forma dura e clara, e com a sobriedade própria dos julgadores — segundo os cronistas do episódio — aos que pediam clemência e aos que exigiam o respeito ao Código Penal, já revogado juntamente com a monarquia.

“Não há um processo a fazer. Luís não é um acusado. Vocês não são juízes, vocês são homens de Estado. Vocês não têm sentenças a emitir em favor ou contra um homem, mas uma medida de segurança pública a tomar, um ato de providência nacional a exercer. Luís foi rei e a República foi fundada”. E Robespierre, implacável, explica que, em um processo normal, o rei poderia ser considerado inocente, desde que a presunção de sua inocência permanecesse até o julgamento. E arremete:

“Mas, se Luís é absolvido, o que ocorre com a Revolução? Se Luís é inocente, todos os defensores da liberdade passam a ser caluniadores”. Os fatos posteriores são conhecidos.

O STF agiu, sob aparente ira revolucionária de alguns de seus membros, como se fosse a Convenção Nacional. Como uma Convenção Nacional tardia, mais atenta às razões da direita — da Reação Thermidoriana, que executou Robespierre, Saint-Just e Danton, entre outros — do que a dos montagnards de 1789. Foi um tribunal político, mas sob o mandato de quem? Quem os elegeu? E qual deles pôde assumir, com essa grandeza, a responsabilidade do julgamento político, que assumiu o Incorruptível? E qual dos mais exacerbados poderia dizer aos outros que deviam julgar como homens de Estado, e não como juízes?

Como o Tartufo, de Molière, que via a sua razão onde a encontrasse, foram em busca da teoria do domínio do fato, doutrina que, sem essa denominação, serviu para orientar os juízes de Nurenberg, e foi atualizada mais tarde pelo jurista alemão Claus Roxin. Só que o domínio do fato, em nome do qual incriminaram Dirceu, necessita, de acordo com o formulador da teoria, de provas concretas. Provas concretas encontradas contra os condenados de Nurenberg, e provas concretas contra o general Rafael Videla e o tiranete peruano Alberto Fujimori.

E provas concretas que haveria contra Hitler, se ele mesmo não tivesse sido seu próprio juiz, ao matar-se no bunker, depois de assassinar a mulher Eva Braun e sacrificar sua mais fiel amiga, a cadela Blondi. Não havendo prova concreta que, no caso, seria uma ordem explícita do ministro a alguém que lhe fosse subordinado (Delúbio não era, Genoino, menos ainda), não se caracteriza o domínio do fato. Falta provar, devidamente, que ele cometeu os delitos de que é acusado, se o julgamento é jurídico. Se o julgamento é político, falta aos juízes provar a sua condição de eleitos pelo povo.

Dessa condição dispunham os membros da Convenção Nacional Francesa e os parlamentares brasileiros que decidiram pelo impeachment do presidente Collor. As provas contra Collor não o condenariam (como não condenaram) em um processo normal. Ali se tratou de um julgamento político, que não se pretendeu técnico, nem juridicamente perfeito, ainda que fosse presidido pelo então presidente do STF.

A nação, pelos seus representantes, foi o tribunal. O STF é o cimo do Poder Judiciário. Sua sentença não pode ser constitucionalmente contestada, mesmo porque ele é, também, o tribunal que decide se isso ou aquilo é constitucional, ou não. A História, mais cedo do que tarde, fará a revisão desse processo, para infirmá-lo, por não atender às exigências do due process of law, nem à legitimidade para realizar um julgamento político.

O julgamento político de Dirceu, justo ou não, já foi feito pela Câmara dos Deputados, que lhe cassou o mandato.
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Réus da Ação Penal 470 vão recorrer à OEA

Brasil 247

Um documento de 22 de novembro de 1969, que coincidentemente completará 43 anos no dia da posse de Joaquim Barbosa como presidente do Supremo Tribunal Federal, é o trunfo que será usado pelos réus condenados na Ação Penal 470 para contestar o processo conduzido por ele. Trata-se do Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, e que versa sobre direitos humanos e garantias judiciais (leia mais aqui sobre o pacto no próprio site do STF).

Uma dessas garantias básicas é o duplo grau de jurisdição, que garante a todo indivíduo o direito a um recurso contra eventuais penas impostas pelo Judiciário. No caso da Ação Penal 470, conhecida como mensalão, o julgamento foi direto para o Supremo Tribunal Federal, porque o então procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, denunciou 40 pessoas, mesmo aquelas sem foro privilegiado.

Por isso mesmo, no início do processo, o advogado Marcio Thomaz Bastos, que defendeu José Roberto Salgado, apresentou um memorial solicitando o desmembramento da ação - o que foi indeferido pelo STF, diferentemente do que ocorreu com o caso do "mensalão tucano". Assim, todos foram julgados no STF num julgamento de "bala de prata", sem direito a recurso, ou seja, sem o duplo grau de jurisdição.

O recurso à Corte de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), responsável pela aplicação do Pacto de San José, deverá ser apresentado pelos três principais condenados do núcleo político – José Dirceu, José Genoino, e Delúbio Soares – bem como por réus condenados nos núcleos financeiro e publicitário.

No caso de Dirceu, um dos trunfos será um parecer do jurista alemão Claus Roxin, criador da teoria do "domínio do fato", usada para condená-lo – e de forma equivocada, segundo o autor da doutrina. Com a missão de solicitar o parecer, o advogado José Luiz de Oliveira Lima embarca para a Alemanha nos próximos dias.

Outros réus devem recorrer a pareceristas brasileiros, como Celso Bandeira de Mello, justamente o responsável (arrependido) pela indicação de Carlos Ayres Britto ao STF. Com o recurso à OEA, de certa forma, os réus tentarão submeter a suprema corte brasileira também a um juízo externo.
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