Por Glauber Piva
Há muitas maneiras de se pensar a vida brasileira. Todas elas enraizadas em visões de mundo historicamente identificáveis e, portanto, passíveis de algum nível de entendimento. Uma dessas maneiras, talvez a hegemônica no Brasil das cidades grandes, é o que chamo de visão de classe média: um tipo de visão de mundo bastante alicerçado em valores como intenso consumo (tanto de bens quanto de serviços), segmentação das cidades em ilhas de convívio (como os condomínios, por exemplo) e a reiterada negação do Estado e do debate público.
Essa sorrateira e envolvente visão de classe média pensa a vida política brasileira como se estivesse num shopping center: olha o jogo democrático a partir da suposta assepsia de seu mundo privado - embora ache que está no ambiente público - concebido para ser uma solução dos problemas sociais onde reinam desajustes, desigualdades, contradições, imprevistos. E é assim que ela debate o aumento do IPTU em São Paulo, as denúncias de corrupção, a cocaína no helicóptero do deputado de Minas Gerais ou as propostas de financiamento público de campanhas eleitorais.
Essa lógica de classe média considera a política como suja e como o ‘mundo de fora’ em contraposição ao "shopping center" no qual vive, que, para ela, é o ‘mundo de dentro’. O ‘mundo de fora’ seria a realidade-real, o espaço urbano com seus problemas de transporte, de saneamento, coleta de lixo, filas na saúde, educadores cansados e maltratados, uma gigantesca parcela da população em habitações informais e todo o caráter público que o compõe. É como se esse mundo contivesse outra realidade construída artificialmente (uma realidade paralela que a classe média julga ser a verdadeira, única e correta): o ‘mundo de dentro’ (que, como nos shoppings, é limpo e isento dos fatores que agem no ‘mundo de fora’ - chuva, sol, frio, neve, mendigos, pedintes, trânsito, poluição etc.) [1]. O que ela não vê, nem aceita, é que a assepsia na qual julga viver foi concebida à custa de escravidão, desastres ambientais, desigualdade, privatização do debate público e negação de direitos. No seu mundo asséptico, empregados domésticos não devem ter direito a cuidar de seus próprios filhos, nem viajar de avião, nem entrar nos seus shoppings.
É essa visão asséptica do mundo que entende que a política sob a lógica dos interesses empresariais é limpa. Sujo é o Programa Bolsa Família que em vez de cesta básica, garante um mínimo de dinheiro para que as pessoas possam escolher a comida que querem comer, ou o metrô no bairro de Higienópolis, terra prometida à gente diferenciada, ou, ainda, um modelo de IPTU que reconhece que Itaim Paulista e Itaim Bibi não são iguais perante a prefeitura, assim como são diferentes perante o mercado. Para os que negam o debate público, tudo isso é sujo, tudo isso é coisa de quem precisa do Estado: ele, por si só, também uma coisa suja e de sujos.
O debate em torno do IPTU em São Paulo é um bom exemplo disso. Como Fernando Haddad propôs maior isenção a aposentados e, por várias razões que se entrecruzam, o aumento da quantidade de imóveis isentos e a divisão da cidade em três zonas com diferentes índices de cálculo para cada uma delas. Pela regra proposta, a régua que mede uma casa na periferia não será mais a mesma da construção em bairros mais centrais, mais valorizados. Já que o m2 de área construída em bairros nobres é mais caro, será mais caro também o imposto cobrado para os imóveis dessas áreas.
A questão aqui não é apenas se alguns pagarão mais que outros, mas a maneira como é percebia a atuação dos governos e como se estabelecem diferenciações hierárquicas entre ricos e pobres, entre os de dentro e os de fora do grande shopping. Sendo assim, quando falamos “classe média”, não estamos nos referindo àquela faixa de renda acima de x reais. Esse x só serve para identificar a faixa de renda e, portanto, a capacidade de consumo das famílias. O que define a classe média é sua posição em relação ao núcleo econômico da sociedade ou em relação ao núcleo do poder político: a classe média não detém o poder do Estado nem o poder social da classe trabalhadora organizada. Tampouco é detentora do capital e dos meios sociais de produção, assim como não é a força de trabalho que produz capital.
Sem identidade própria, a classe média se fragmenta e se alimenta de um individualismo competitivo intenso. Instável, alimenta permanentemente as ideias de ordem e segurança, povoando seu imaginário com o sonho de se tornar parte da classe dominante, e o pesadelo de se tornar proletária. Como aponta Chauí, para que o sonho se realize e o pesadelo não se concretize, é preciso ordem e segurança. Isso torna a classe média ideologicamente conservadora e reacionária e seu papel social e político torna-se o de “assegurar a hegemonia ideológica da classe dominante”, fazendo com que essa ideologia, por intermédio da escola, da religião, dos meios de comunicação, se naturalize e se espalhe pelo todo da sociedade. É sob esta perspectiva que se pode dizer que a classe média encara o ambiente público como um shopping center, um lugar de ordem e segurança, defendido por uma polícia privada e dotado de regras próprias daqueles que colocam o consumo e o indivíduo no centro das preocupações.
Há rachaduras profundas na sociedade brasileira que a classe média prefere ignorar, esperando que o mundo tenha a mesma cara asséptica que eles preferem ver nos centros de compras das grandes cidades. Como vive entre o pesadelo e o sonho, há uma contradição permanente na classe média. Quando debate o metrô em Higienópolis, não aceita que os pobres frequentadores do Estádio do Pacaembu utilizem suas ruas: quer ser diferenciada. Mas, quando debate o IPTU, quer ser igual, não aceitando que a alíquota de Guaianases seja diferente da sua.
Como, do ponto de vista simbólico, a classe média precisa substituir, ao mesmo tempo, sua falta de poder econômico e de poder político, ela se dedica à busca dos signos de prestígio, como diplomas e consumo de serviços e objetos indicadores de autoridade, abundância e ascensão social. Assim, o comportamento e o discurso da classe média brasileira são obstáculos que se erguem contra a democracia e alimentam a hegemonia do autoritarismo social que conhecemos.
Essa mistura de medo e ódio, silêncio e torpor, comporta seus preconceitos e alimenta suas opiniões sobre a política, os políticos, o Estado e o dissenso característico do dinamismo da vida social. Quando os meios de comunicação tradicionais proclamam insistentemente que somos democráticos, ‘cordiais’, fraternos e docemente miscigenados, estão apenas trabalhando para pasteurizar as tensões da luta de classes e carimbar “vândalos” na testa dos divergentes: maus são os outros (!), aqueles que não frequentam as festas de peão do interior paulista, os sambas requintados da zona sul carioca e nem aceitam os ideais de ordem, segurança e individualismo das democracias endinheiradas pelas compras de Natal.
Nota:
[1] Sobre isso, ver Valquíria Padilha em Shopping Center: a catedral das mercadorias, Editora Boitempo, 2006.
* Glauber Piva é sociólogo e ex-diretor da Ancine (Agência Nacional do Cinema).
Há muitas maneiras de se pensar a vida brasileira. Todas elas enraizadas em visões de mundo historicamente identificáveis e, portanto, passíveis de algum nível de entendimento. Uma dessas maneiras, talvez a hegemônica no Brasil das cidades grandes, é o que chamo de visão de classe média: um tipo de visão de mundo bastante alicerçado em valores como intenso consumo (tanto de bens quanto de serviços), segmentação das cidades em ilhas de convívio (como os condomínios, por exemplo) e a reiterada negação do Estado e do debate público.
Essa sorrateira e envolvente visão de classe média pensa a vida política brasileira como se estivesse num shopping center: olha o jogo democrático a partir da suposta assepsia de seu mundo privado - embora ache que está no ambiente público - concebido para ser uma solução dos problemas sociais onde reinam desajustes, desigualdades, contradições, imprevistos. E é assim que ela debate o aumento do IPTU em São Paulo, as denúncias de corrupção, a cocaína no helicóptero do deputado de Minas Gerais ou as propostas de financiamento público de campanhas eleitorais.
Essa lógica de classe média considera a política como suja e como o ‘mundo de fora’ em contraposição ao "shopping center" no qual vive, que, para ela, é o ‘mundo de dentro’. O ‘mundo de fora’ seria a realidade-real, o espaço urbano com seus problemas de transporte, de saneamento, coleta de lixo, filas na saúde, educadores cansados e maltratados, uma gigantesca parcela da população em habitações informais e todo o caráter público que o compõe. É como se esse mundo contivesse outra realidade construída artificialmente (uma realidade paralela que a classe média julga ser a verdadeira, única e correta): o ‘mundo de dentro’ (que, como nos shoppings, é limpo e isento dos fatores que agem no ‘mundo de fora’ - chuva, sol, frio, neve, mendigos, pedintes, trânsito, poluição etc.) [1]. O que ela não vê, nem aceita, é que a assepsia na qual julga viver foi concebida à custa de escravidão, desastres ambientais, desigualdade, privatização do debate público e negação de direitos. No seu mundo asséptico, empregados domésticos não devem ter direito a cuidar de seus próprios filhos, nem viajar de avião, nem entrar nos seus shoppings.
É essa visão asséptica do mundo que entende que a política sob a lógica dos interesses empresariais é limpa. Sujo é o Programa Bolsa Família que em vez de cesta básica, garante um mínimo de dinheiro para que as pessoas possam escolher a comida que querem comer, ou o metrô no bairro de Higienópolis, terra prometida à gente diferenciada, ou, ainda, um modelo de IPTU que reconhece que Itaim Paulista e Itaim Bibi não são iguais perante a prefeitura, assim como são diferentes perante o mercado. Para os que negam o debate público, tudo isso é sujo, tudo isso é coisa de quem precisa do Estado: ele, por si só, também uma coisa suja e de sujos.
O debate em torno do IPTU em São Paulo é um bom exemplo disso. Como Fernando Haddad propôs maior isenção a aposentados e, por várias razões que se entrecruzam, o aumento da quantidade de imóveis isentos e a divisão da cidade em três zonas com diferentes índices de cálculo para cada uma delas. Pela regra proposta, a régua que mede uma casa na periferia não será mais a mesma da construção em bairros mais centrais, mais valorizados. Já que o m2 de área construída em bairros nobres é mais caro, será mais caro também o imposto cobrado para os imóveis dessas áreas.
A questão aqui não é apenas se alguns pagarão mais que outros, mas a maneira como é percebia a atuação dos governos e como se estabelecem diferenciações hierárquicas entre ricos e pobres, entre os de dentro e os de fora do grande shopping. Sendo assim, quando falamos “classe média”, não estamos nos referindo àquela faixa de renda acima de x reais. Esse x só serve para identificar a faixa de renda e, portanto, a capacidade de consumo das famílias. O que define a classe média é sua posição em relação ao núcleo econômico da sociedade ou em relação ao núcleo do poder político: a classe média não detém o poder do Estado nem o poder social da classe trabalhadora organizada. Tampouco é detentora do capital e dos meios sociais de produção, assim como não é a força de trabalho que produz capital.
Sem identidade própria, a classe média se fragmenta e se alimenta de um individualismo competitivo intenso. Instável, alimenta permanentemente as ideias de ordem e segurança, povoando seu imaginário com o sonho de se tornar parte da classe dominante, e o pesadelo de se tornar proletária. Como aponta Chauí, para que o sonho se realize e o pesadelo não se concretize, é preciso ordem e segurança. Isso torna a classe média ideologicamente conservadora e reacionária e seu papel social e político torna-se o de “assegurar a hegemonia ideológica da classe dominante”, fazendo com que essa ideologia, por intermédio da escola, da religião, dos meios de comunicação, se naturalize e se espalhe pelo todo da sociedade. É sob esta perspectiva que se pode dizer que a classe média encara o ambiente público como um shopping center, um lugar de ordem e segurança, defendido por uma polícia privada e dotado de regras próprias daqueles que colocam o consumo e o indivíduo no centro das preocupações.
Há rachaduras profundas na sociedade brasileira que a classe média prefere ignorar, esperando que o mundo tenha a mesma cara asséptica que eles preferem ver nos centros de compras das grandes cidades. Como vive entre o pesadelo e o sonho, há uma contradição permanente na classe média. Quando debate o metrô em Higienópolis, não aceita que os pobres frequentadores do Estádio do Pacaembu utilizem suas ruas: quer ser diferenciada. Mas, quando debate o IPTU, quer ser igual, não aceitando que a alíquota de Guaianases seja diferente da sua.
Como, do ponto de vista simbólico, a classe média precisa substituir, ao mesmo tempo, sua falta de poder econômico e de poder político, ela se dedica à busca dos signos de prestígio, como diplomas e consumo de serviços e objetos indicadores de autoridade, abundância e ascensão social. Assim, o comportamento e o discurso da classe média brasileira são obstáculos que se erguem contra a democracia e alimentam a hegemonia do autoritarismo social que conhecemos.
Essa mistura de medo e ódio, silêncio e torpor, comporta seus preconceitos e alimenta suas opiniões sobre a política, os políticos, o Estado e o dissenso característico do dinamismo da vida social. Quando os meios de comunicação tradicionais proclamam insistentemente que somos democráticos, ‘cordiais’, fraternos e docemente miscigenados, estão apenas trabalhando para pasteurizar as tensões da luta de classes e carimbar “vândalos” na testa dos divergentes: maus são os outros (!), aqueles que não frequentam as festas de peão do interior paulista, os sambas requintados da zona sul carioca e nem aceitam os ideais de ordem, segurança e individualismo das democracias endinheiradas pelas compras de Natal.
Nota:
[1] Sobre isso, ver Valquíria Padilha em Shopping Center: a catedral das mercadorias, Editora Boitempo, 2006.
* Glauber Piva é sociólogo e ex-diretor da Ancine (Agência Nacional do Cinema).