As duas margens do Rio da Prata*

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  • sábado, 29 de outubro de 2011
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  • * por Eric Nepomuceno

    Na margem esquerda do rio da Prata, em Montevidéu, na madrugada desta quinta-feira o Senado aprovou uma lei que determina que os crimes praticados durante o longo período da ditadura que foi de 1973 a 1985 são imprescritíveis e não podem ser anistiados. Passam a ser reconhecidos como o que efetivamente são: crimes de lesa-humanidade, que, por acordos e convenções internacionais assinadas pelo Uruguai (aliás, pelo Brasil também), jamais prescreverão. Com isso, o Estado uruguaio recupera sua capacidade punitiva, ou seja, de levar a justiça às últimas conseqüências, um dos atributos essenciais da democracia.

    A anistia decretada no apagar das luzes da ditadura, e referendada pelo voto popular em duas ocasiões, 1989 e 2009, permitiu durante todo esse tempo que a Justiça não fosse aplicada contra militares e policiais que violaram de maneira desenfreada os direitos humanos. É verdade que nos últimos anos, com a Frente Ampla no poder, vários militares e políticos foram julgados e condenados. Mas tudo dependeu do governo, que podia decidir se pedia ou não à Justiça julgar determinado caso. Agora, qualquer caso pode ser e será julgado. Os crimes da ditadura iam prescrever no dia primeiro de novembro de 2011. Não prescrevem mais.

    Na margem direita do rio da Prata, em Buenos Aires, um tribunal condenou à prisão perpétua um dos símbolos mais abjetos do horror vivido pelos argentinos entre 1976 e 1983: o oficial da Marinha Alfredo Astiz. Junto com ele, foram condenados outros onze verdugos que atuaram no maior centro de tormento da ditadura, a antiga ESMA (Escola Superior de Mecânica de Armada).

    Astiz. Alfredo Astiz. Alguns nomes se tornam emblemas da barbárie, do que pode haver de mais desprezível sobre a face da terra. Astiz é um deles. O julgamento durou quase dois anos, e levou para o tribunal, como testemunhas de acusação, 79 sobreviventes da ESMA – passaram por lá, vale recordar, pouco mais de cinco mil pessoas, e os sobreviventes não chegam a 200.

    Nos autos do processo há um rosário de crueldades que ultrapassam qualquer limite da perversão. Os condenados foram de uma crueldade sem par. Ricardo Cavallo, grande torturador, somava a essa façanha a de ser um dos responsáveis pelos ‘vôos da morte’, quando prisioneiros eram arrancados dos cárceres, levados para aviões e atirados vivos para o mar ou para as águas desse mesmo rio da Prata. Adolfo Donda participou do assassinato da cunhada. Depois, roubou a filha dela, que foi dada ilegalmente em adoção. Donda continuou visitando a mãe de sua cunhada, avó da menina que ele seqüestrou e doou, como se não soubesse de nada. A menina recuperou sua identidade em 2003. Chama-se Vitoria Donda, e é deputada pela Frente Ampla Progressista.

    Vi as fotos dos acusados. Em alguns, a soberba indisfarçável. Em outros, um ar um tanto alheio, como se não entendessem o que fizeram para estar ali. Todos imperturbáveis em seus rostos de aço. Todos afinados num mesmo discurso: foram soldados que lutaram na defesa da pátria. Astiz, aliás, se esmerou: “Dei, ao combate, o melhor de mim”.

    O único combate real do qual participou foi na guerra das ilhas Malvinas, em 1982. Não disparou um só tiro: assim que topou com soldados britânicos ergueu os braços e se rendeu. Tinha acabado de fazer 31 anos. Sua foto entregando-se de graça ao inimigo, o rosto de menino, o olhar quase ingênuo, compungido, foi parar nos jornais. Nessa foto as Mães da Praça de Maio reconheceram o homem com ar angelical que havia participado de várias reuniões do grupo, que havia caminhado junto de senhoras com a cabeça coberta de branco, em silêncio, e que um dia sumiu, depois de ter entregue três delas para a ESMA. O rosto do anjo louro da morte.

    Examino a foto do julgamento, a hora da leitura da sentença. Vejo o Astiz de hoje – um tanto balofo, envelhecido antes do tempo. Examino essa foto uma, duas, cinco, um sem-fim de vezes. Vejo os olhos. Não aparentam medo, não aparentam nada. Parecem esculpidos em gelo.

    Deram a Astiz a Justiça que ele e seus comparsas negaram a milhares de pessoas. Que ele negou à jovem sueca Dagmar Hagelin, às Mães da Praça de Maio que sacrificou, a Rodolfo Walsh, às monjas francesas Léonie Duquet e Alice Domon.

    Ao saber da condenação de Astiz, o governo francês disse que essa decisão honra a Argentina. Disse também que o país assumiu, com coragem, seu dever de memória. Que honrou os que lutam contra a impunidade e em defesa dos direitos humanos.

    Na margem esquerda do rio da Prata, acaba a prescrição para crimes de lesa-humanidade. Na margem direita, agora são 262 condenados, entre eles dois generais-presidentes.

    Aqui, o Senado aprovou a Comissão da Verdade. Se a verdade algum dia for o primeiro passo para a Justiça, para o fim da impunidade, o Brasil estará honrando sua memória. Honrando si próprio. A todos nós.
     
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