| O marxismo continuará vivo enquanto perdurar o capitalismo O meu primeiro contato com Caio N. de Toledo, professor aposentado do Departamento de Ciência Política, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, foi no comecinho de outubro de 2011.
Conceição Lemes O Viomundo havia denunciado: USP homenageia vítimas da "Revolução de 1964″? Alunos, professores e funcionários administrativos da USP estavam sem entender. Como num verdadeiro abracadabra, um "Monumento em Homenagem a Mortos e Cassados na Revolução de 1964" começou a ser feito na Cidade Universitária. Mais precisamente na Praça do Relógio, em frente ao anfiteatro, ao lado do bloco A do CRUSP. Ninguém sabia de onde havia partido a ordem para fazê-lo. Ninguém havia debatido nem opinado sobre a sua construção. Nem mesmo professores que trabalham com direitos humanos tinham ciência do que realmente se tratava. Nós fizemos então várias reportagens sobre o monumento, que vou listá-las no final para quem quiser conhecer toda a história. O estudante Luiz Rabello mandou-me um texto que estava circulando numa lista alunos e professores da Unicamp. 1964: NOTA SOBRE UMA VITÓRIA SIMBÓLICA, assinado por Caio N. de Toledo. A Nota fazia um relato lisonjeiro das nossas reportagens e criticava a iniciativa do monumento, inclusive a expressão "Revolução de 1964″. Como ela circulava na lista restrita, fui atrás do professor Caio N. Toledo, para pedir autorização para a publicação. Com a ajuda de Luiz Rabello consegui localizá-lo e publicamos o artigo. Nascia aí a nossa bela parceria, prestes a comemorar dois anos. Parêntese: o N é de Navarro, que o professor costuma abreviar. Já nós passamos a chamá-lo apenas de professor Caio Toledo. Um bom tempo depois ele me mandou e um e-mail, contando, muito feliz, que, junto com vários colegas pesquisadores e professores, estava construindo o blog marxismo21. Trocamos a ideias a respeito. Pois o marxismo21 acaba de completar um ano no ar. Para comemorá-lo, fizemos esta entrevista com o professor Caio, que integra o comitê do blog. Aproveitamos para resgatar a sua história. Viomundo - Há um ano nascia o blog marxismo21. O que levou os senhores a criarem-no? Caio Toledo - O marxismo21 foi criado por um grupo de pesquisadores e docentes de diferentes universidades do país com o propósito de ser um banco de dados do conjunto da produção intelectual, difundida na web, que se reivindica marxista; igualmente, trabalhos qualificados que têm como objeto a obra de Marx ou suas diversas correntes teóricas - não identificados com os pressupostos do materialismo histórico e filosófico - integram este conjunto de materiais. O blog está organizado por seções: textos (artigos de revistas de esquerda e acadêmicas), trabalhos universitários (dissertações e teses de doutorado), materiais audiovisuais (filmes de ficção, documentários, palestras, simpósios etc.), notícias (eventos, lançamentos de livros e revistas), pesquisas em curso etc. Reconhecendo que existe um extenso e acirrado debate no campo do marxismo em todo o mundo - que se expressa por correntes que se orientam pelas obras de Lenin, Rosa de Luxemburg, Trotsky, Gramsci, Lukács, Althusser, escola de Frankfurt e outras -, marxismo21 tem o caráter inédito de divulgar, sem restrições e interditos, todas estas tradições teórico-ideológicas no terreno do marxismo. Com toda certeza, é o único blog no Brasil (e provavelmente no interior da cultura política de esquerda em todo o mundo) - que não limita à difusão de uma única corrente teórica dentro do marxismo. Prova disso é a divulgação de matérias (ensaios, artigos, vídeos etc.), informações sobre lançamentos de revistas e livros, eventos etc. que estão vinculados aos distintos marxismos realmente existentes no país. Acreditamos que o fato de marxismo21 ser, hoje, uma referência na cultura política marxista brasileira - fato assegurado pelo significativo acesso diário ao blog e pelo elevado número de seus leitores cadastrados - se deve ao caráter democrático e pluralista de seu trabalho editorial. Viomundo - O fato de o marxismo ser "esquecido" na mídia contribuiu para a criação do blog? Caio Toledo -- Não diria que a motivação original e central que explicaria a criação de blog se deva ao inegável fato do marxismo ser "esquecido" e sonegado pela grande mídia. Criamos marxismo21, posto que fomos interpelados por uma necessidade real do debate no interior da esquerda socialista no Brasil: a saber, a de existir um instrumento que informe os pesquisadores e os movimentos sociais e políticos acerca da diversidade da obra de Marx, dos marxismos existentes no país e suas respectivas produções intelectuais (publicações, eventos, debates etc.) Viomundo - A quem se destina o marxismo21? Caio Toledo - Produzido por pesquisadores vinculados aos meios acadêmicos brasileiros, reconhecemos que a maioria dos nossos seguidores é constituída de professores, pesquisadores e estudantes universitários. Mas também temos conhecimento - pela correspondência recebida e pelo cadastramento feito junto ao blog - que entre nossos leitores estão muitos professores do ensino médio e militantes de movimentos sociais e partidos de esquerda. Eles acessam marxismo21 a fim de se informar sobre os eventos, lançamentos de livros, revistas etc. e, notadamente, para baixar gratuitamente textos de revistas, teses acadêmicas e simpósios organizados por entidades de esquerda e marxista. Mais de 230 downloads de textos do blog são feitos por dia. Problematizando a produção teórica marxista que não ultrapassa os muros da universidade, marxismo21 busca - na tradição dos clássicos do marxismo (Marx. Engels, Lênin, Rosa de Luxemburgo, Trotsky, Gramsci) - ser um recurso intelectual útil no debate sobre os impasses e problemas do capitalismo contemporâneo. Estamos convencidos de que o trabalho editorial do blog apenas será bem sucedido na medida em que reflita as necessidades dos movimentos e partidos que se empenham na luta anticapitalista e construção do socialismo. Por último, como afirmamos em nossa proposta editorial, o marxismo21 não é propriedade intelectual de seus atuais criadores, mas um compromisso de todos os marxistas que se dispuserem a participar de sua construção, produção e funcionamento. Viomundo - Nesse um ano de existência o que mudou no blog? Caio Toledo - Concebido como um banco de dados da produção marxista no Brasil, marxismo21 passa a se configurar como um blog na medida em que, com frequência, divulga dossiês sobre a obra teórica e política de clássicos do pensamento marxista brasileiro (entre eles, Astrojildo Pereira, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Werneck Sodré, Jacob Gorender) e dossiês temáticos sobre questões conjunturais relevantes no debate político e ideológico atual. Em fins de junho, por exemplo, o blog divulgou um amplo e extenso dossiê sobre as "jornadas de junho" com mais de 80 textos de autores e entidades vinculados a todos os espectros político-ideológicos da esquerda brasileira. Vários textos divulgados pelo Viomundo e outros blogs democráticos ali foram postados. Dias atrás, foi editada uma página que examina os 40 anos do golpe militar que derrubou o governo democrático e popular de Salvador Allende, ocorrido em 11 de setembro de 1973 no Chile. Em suma, marxismo21 busca, de forma criativa e inovadora, combinar as características de um blog com as de um banco de dados da produção intelectual vinculada ao marxismo. Viomundo - Especialmente depois da queda do Muro de Berlim e do colapso da ex-URSS e países do leste europeu tem se decretado a "morte de Marx". Há espaço para o marxismo hoje em dia? Caio Toledo - Não apenas depois da queda do muro de Berlim e do colapso do chamado "socialismo real" (da ex-URSS e países do leste europeu) tem se afirmado (e comemorado!) a "morte de Marx". O fato é que o fantasma da obra intelectual de Marx continua rondando o pensamento e a sociedade contemporâneos. A este respeito, destaquemos alguns fatos e episódios: recentemente, em pesquisa feita pela insuspeita BBC, Marx foi eleito "o mais importante pensador de todos os tempos". (Nada foi comprovado sobre a mobilização de entidades socialistas no sentido de influírem ou manipulares a pesquisa telefônica feita pela BBC...). De outro lado, sabe-se que a recente crise econômica do capitalismo tem levado renomadas editoras europeias a reeditarem O Capital e os Grundrisse (primeira versão da obra magna de Marx). Em março deste ano, ao ser indagado "Por que ler Marx hoje?", Delfim Neto, o ex-czar da economia brasileira, durante a ditadura militar, não teve dúvida em responder: "Porque Marx não é moda. É eterno". (É de se convir, pois, que direita e esquerda no Brasil contemporâneo concordam num ponto: Delfim Netto é um intelectual cultivado e inteligente.). Apenas dogmáticos, sectários e "sicofantas do capital" deixam de reconhecer que o pensamento de Marx está vivo e continuará sempre interpelando todos aqueles que buscam conhecer em profundidade e de forma rigorosa o capitalismo contemporâneo. Prova da vitalidade da obra de Marx e do marxismo, no Brasil contemporâneo, também pode ser evidenciada por outros dados: a) existem dezenas de centros de estudos marxistas em funcionamento, fora e dentro das universidades brasileiras. Com frequência, eles promovem eventos (alguns com a presença de pesquisadores internacionais) e editam publicações (livros, anais, cadernos etc.); b) dezenas de revistas de esquerda, vinculadas ou não a estas entidades, são publicadas (marxismo21 informa a existência de mais de uma dezena destas publicações); c) editoras como Boitempo, Expressão Popular, Revan, Xamã e outras publicam livros de esquerda e de orientação marxista. Algumas dessas editoras realizam regularmente seminários e debates com autores socialistas brasileiros e do exterior; d) dezenas de blog de orientação de esquerda participam da luta teórico-ideológica sob a orientação do pensamento socialista e marxista. Tendo em vista o caráter crítico desses eventos e publicações, eles não são divulgados pela grande mídia que, invariavelmente, se apresenta como democrática, isenta e apartidária. Bem se sabe que o grande público - hoje alcançado basicamente pela TV - desconhece tais manifestações críticas e nem de longe é apresentado às ideias críticas de Marx e das tradições teóricas vinculadas a esse grande pensador. Não obstante esta realidade, o marxismo não está inerte nem é inexpressivo na cultura política brasileira. Mas como os marxistas devem sempre exercer a autocrítica, eles sabem que o caráter crítico-revolucionário do pensamento de Marx, no Brasil contemporâneo, longe está de ser incorporado pelos agentes históricos e sociais que podem ter um papel decisivo na radical transformação da ordem capitalista. Viomundo - Considerando que muitos dos nossos leitores são jovens, daria para o senhor explicar em "linhas gerais" o que é marxismo? Caio Toledo - Em "linhas gerais" e, portanto, de forma bastante sumária, a teoria de Marx - sobre a qual se fundam os distintos marxismos - pode ser sintetizada pela crítica da economia política e pelo materialismo histórico. Enquanto a primeira visa o conhecimento da lógica da acumulação e reprodução do capital, de sua dinâmica contraditória, de suas crises estruturais e transformações, o materialismo histórico busca desvendar as leis do desenvolvimento histórico e social, a dinâmica da luta de classes, as transformações da superestrutura (política, ideológica, cultural e filosófica) das sociedades classistas. As diferentes correntes que se reivindicam marxistas nem sempre desenvolvem estas dimensões fundamentais da obra teórica de Marx. Todas elas, contudo, se identificam na afirmação do caráter crítico e dialético do pensamento de Marx. O marxismo continua vivo e atual, posto que nenhuma outra teoria social no mundo contemporâneo se rivaliza com a produção de Marx. Em termos conceituais e metodológicos, a teoria de Marx é a que melhor permite o conhecimento objetivo da dinâmica e contradições do capitalismo contemporâneo. De outro lado, nenhuma outra teoria a ela se compara em matéria de crítica fundamentada e radical - não abstrata, moral ou idealizada - das iniquidades e discriminações sociais e econômicas da economia capitalista e da sociedade burguesa. A teoria de Marx é simultaneamente conhecimento e crítica do modo de produção capitalista. Em Marx, pois, teoria e política estão intrinsecamente articuladas e indissociadas. Dai se afirmar que, ao contrário de outras perspectivas teóricas, a obra de Marx é teoria científica e práxis revolucionária. Sabendo que toda teoria está historicamente enraizada, afirmamos que a obra de Marx terá plena e legítima validade enquanto perdurarem as irreconciliáveis contradições sociais e econômicas da ordem capitalista. Por último, levando em conta seus pressupostos crítico-dialéticos, a teoria de Marx jamais deve ser encarada como um receituário de fórmulas prontas, acabadas e dogmáticas. A famosa provocação de Marx, "eu não sou marxista", impõe que os pesquisadores que se orientam por sua obra estejam dispostos a enfrentar as novas interpelações teóricas e políticas postas pelo capitalismo contemporâneo. Obviamente, lacunas e problemas teóricos não deixariam de existir na obra de Marx. É nesta direção que nossa proposta editorial adverte: O marxismo apenas conseguirá responder aos desafios do século 21 caso se se mantiver aberto à confrontação permanente com os novos fenômenos da atualidade, seja na economia, seja na política, na cultura, etc., testando sempre a validade de suas hipóteses. | |