A ideia era transformar José Dirceu num caso exemplar e exemplarisante da Justiça. Chegaram lá: é a vitória da grande hipocrisia que impera no país.
Pouco antes das seis da tarde do sábado passado, um avião da Polícia Federal aterrissou no aeroporto de Brasília, levando os condenados pelo Supremo Tribunal Federal para começar, de imediato, a cumprir as sentenças recebidas. Três horas mais tarde, foram conduzidos à Penitenciária da Papuda. Entre os presos, havia de tudo – da herdeira de um banco privado a um publicitário dado a práticas heterodoxas na hora de levantar fundos para campanhas eleitorais. Práticas essas, aliás, testadas e comprovadas na campanha do tucano Eduardo Azeredo, em Minas Gerais, em 1998.
Lembro bem, porque trabalhei nessa campanha, sob as ordens do sempre presente e ativo Duda Mendonça. E fui pago.
Mas a imagem que importava era outra: era a de José Dirceu, talvez o mais consistente quadro ativo da esquerda brasileira, e de José Genoíno, o antigo guerrilheiro que chegou a presidir o PT, sendo presos. Essa a imagem buscada, essa a imagem conseguida.
Terminou assim a etapa mais estrondosa de um processo que começou, se desenvolveu e permaneceu vivo o tempo todo debaixo de uma pressão mediática praticamente sem antecedentes neste país de memória esquiva e oblíqua.
Durante meses, com transmissão ao vivo pela televisão, intensificou-se o atropelo de princípios elementares da justiça. E mais: foi aberto espaço para que vários dos magistrados máximos do país pudessem exibir seu protagonismo histriônico e singular, e no final chegou-se a sentenças próprias do que foi esse julgamento: um tribunal de exceção.
Jamais foram apresentadas provas sólidas, ou mesmo indícios convincentes, da existência do ‘mensalão’, ou seja, da distribuição mensal de dinheiro a parlamentares para que votassem com o governo de Lula.
O que sim houve, e disso há provas, evidências e indícios de sobra, foi o repasse de recursos para cobrir gastos e dívidas de campanha. Aquilo que no Brasil é chamado de ‘caixa dois’ e que é parte intrínseca de todos – todos – os partidos, sem exceção alguma, em todas – todas – as eleições.
Claro que é crime. Mas um crime que deveria ser tratado no âmbito do Código Eleitoral, e não do Código Penal.
Há absurdos fulgurantes nessa história, a começar pelo começo: o denunciante do esquema do tal ‘mensalão’ chama-se Roberto Jefferson, que pode ser mencionado como exemplo perfeito de qualquer coisa, menos de honradez no trato da coisa pública.
Ávido e famélico por mais e mais prebendas, além das admitidas na já muito flexível prática da política brasileira, foi freado por José Dirceu, na época poderoso ministro da Casa Civil. A vingança veio a galope: Jefferson denunciou a presença do ‘carequinha’ que levava dinheiro a políticos em Brasília.
Atenção: na época, o próprio Jefferson admitiu que tinha levado a metade, apenas a metade, dos milhões prometidos para cobrir dívidas de campanha eleitoral, repassados pelo tal ‘carequinha’, o publicitário Marcos Valério, que – vale reiterar – tinha testado esse mesmo esquema em Minas, em 1998, na campanha do tucano Eduardo Azeredo.
E acusou Dirceu, o mesmo que havia bloqueado seu apetite inaudito, de ser o responsável pelo esquema.
A entrevista de Roberto Jefferson ao jornal ‘Folha de S.Paulo’ foi o combustível perfeito para a manobra espetacular dos grandes conglomerados mediáticos do país, que desataram uma campanha cuja dimensão não teve precedentes. Nem mesmo a campanha sórdida de ‘O Globo’ contra Brizola teve essa dimensão.
O resultado é conhecido: caíram Dirceu e, por tabela, José Genoino. Duas figuras simbólicas de tudo que o conservadorismo endêmico deste país soube detestar com luxo de detalhes.
Todo o resto foi e é acessório. Fulminar Dirceu, devastar a base política de Lula, tentar destroças sua popularidade e impedir sua reeleição em 2006 foram, na verdade, o objetivo central.
Acontece que em 2006 Lula se reelegeu, e em 2010 ajudou a eleger Dilma. E José Dirceu se transformou no alvo preferencial da ira anti-petista em particular e anti-esquerda em geral.
Ele foi condenado, pelo grande conglomerado dos meios de comunicação, no primeiro minuto do primeiro dia, muito antes do julgamento no STF. A própria denúncia apresentada pelo inepto procurador-geral da República, Antônio Silva e Souza, depois aprofundada pelo rechonchudo Roberto Gurgel, é um compêndio de falhas gritantes.
Mas, e daí? Transformou-se na receita ideal para o que de mais moralóide e hipócrita existe e persiste na vida política – e, atenção: judiciária – deste pobre país.
A manipulação feita pelos meios de comunicação, alimentada por uma polpuda e poderosa matilha de cães hidrófobos, fez o resto.
Entre os acusados existe, é verdade, uma consistente coleção da malandrões e malandrinhos. Mas o objetivo era outro: era Dirceu, era Genoíno. Era Lula, era o PT.
Foram condenados, entre pecadores e inocentes, por uma corte suprema que abriga alguns dos casos mais gritantes de hipertrofia de egos em estado terminal jamais vistos no país, a começar pelo seu presidente.
Dirceu e Genoino foram condenados graças a inovações jurídicas, a começar pela mais insólita: em vez de, como rezam os preceitos básicos do Direito, caber aos acusadores apresentar provas, neste caso específico foi posta sobre seus ombros provarem que não tinham culpa de algo que jamais se pôde provar que aconteceu.
É curioso observar como agora ninguém parece recordar que Roberto Jefferson teve seu mandato cassado por seus pares porque não conseguiu provar que aconteceu o que ele denunciou.
Anestesiada e conduzida às cegas pelo bombardeio inclemente e sem tréguas dos meios hegemônicos de comunicação, a conservadora e desinformada classe média brasileira aplaudiu e aplaude esse tribunal de exceção. Aplaude as sentenças ditadas ao atropelo do Direito como se isso significasse o fim da corrupção endêmica que atravessa todos – todos, sem exceção – governos ao longo de séculos.
A ideia era transformar José Dirceu num caso exemplar e exemplarisante da Justiça.
Chegaram lá: é a vitória da grande hipocrisia que impera no país.
O Supremo Tribunal Federal não se fez tímido na hora de impor inovações esdrúxulas.
Afinal, uma única coisa importava e importa: a imagem de José Dirceu e José Genoino sendo presos.
Para o conservadorismo brasileiro, era e é como uma sobre-dose após tempos de abstinência aguda. Pobre país.
Era preciso expor José Dirceu ainda mais - e também José Genoino - à execração pública. Concentrar neles toneladas de ressentimento sem fim.
Quando se postulava a uma vaga no Supremo Tribunal Federal, o então juiz Joaquim Barbosa procurou José Dirceu, ministro-chefe da Casa Civil do primeiro governo de Lula (2003-2007). Apresentou um pedido de rotina: apoio para que seu nome fosse levado ao presidente, a quem cabe indicar os membros da corte suprema.
Dirceu recebeu o pedido, e comentou com o postulante: “Bom mesmo será o dia em que os que pretendem chegar ao Supremo obtenham sua indicação por seus próprios méritos, e não por indicações políticas como a que está me pedindo”.
Barbosa foi escolhido por Lula porque Lula queria ser o primeiro presidente a indicar um negro para a corte máxima do país. De origem humilde, Barbosa construiu sua carreira graças a um esforço descomunal. Teria méritos profissionais mais que suficientes para chegar aonde chegou. Mas não chegou por eles.
Antes, tentou entrar na carreira diplomática. Acabou frustrado pelo elitismo dominante na corporação: o teste psicológico do Itamaraty que o derrotou menciona uma personalidade insegura, agressiva, com profundas marcas de ressentimento. Com isso, não fez outra coisa além de reforçar a agressividade, a prepotência, o autoritarismo e, enfim, o ressentimento do candidato. Não terá sido a única razão, mas certamente contribuiu para que toda essa história desse no que deu.
O sistema judiciário brasileiro está, como todo o sistema político, impregnado de vícios de raiz. A condução mediática e espetaculosa do julgamento que levou Dirceu e Genoino para a cadeira é prova cristalina dos desmandos do Supremo Tribunal Federal.
Joaquim Barbosa tem vasta e sólida experiência. Não é um aventureiro doidivanas: sabe muito bem o que faz. E fez o que fez, ao expedir os mandados de prisão de maneira tão insólita, de propósito.
José Dirceu é uma espécie de ódio pessoal. Mais do que prendê-lo, era preciso expô-lo ainda mais – e também José Genoino – à execração pública. Concentrar neles toneladas acumuladas de ressentimento sem fim.
Não há outra explicação para que a ordem expedida aos responsáveis pela sua execução tenha sido tão absurdamente imprecisa. A pena a que estão condenados implica, necessariamente, legalmente, constitucionalmente, outro tipo de tratamento. Joaquim Barbosa tem plena consciência disso. Tecnicamente, ao menos, não há como negar essa consciência.
Mas parece que nada disso importa. O que importa é que agora ele, paladino do moralismo hipócrita que viceja neste país, tem uma ampla e luminosa alameda para caminhar rumo a uma estrepitosa carreira política na maré da direita mais hipócrita.
Alguma vez, algum dia, esse país exumará essa história, da mesma forma que está exumando, junto aos restos mortais do presidente Jango Goulart, os detalhes das manipulações impostas ao país pelas suas elites malandras. Agora, com meio século de atraso, admite-se que a farsa perpetrada por parlamentares submissos à elite civil que fez dos militares seus marionetes de ocasião seja desmascarada. A começar, aliás, pelo começo: a tal revolução do 31 de março de 1964 não passou de um golpe torpe perpetrado no dia primeiro de abril de 1964. O dia da mentira.
Algum dia se conhecerá a verdade, os bastidores dessa farsa consagrada pelo Supremo Tribunal Federal e construída e alimentada pelos grandes blocos que controlam os meios de comunicação deste país. Meios que não informam: deformam. Juízes que, em sua maioria, não fazem justiça: são figuras de um grande teatro de absurdos.
Eric Nepomuceno
No Carta Maior