Por Cynara Menezes, no blog Socialista Morena:
Enquanto o PSDB e o PT se digladiam pelo poder, os fundamentalistas já estão pavimentando o caminho para, novamente, mergulhar a disputa presidencial e o país no obscurantismo. E temo que nenhum dos dois partidos terá a coragem necessária para romper de uma vez por todas com a dependência, com fins meramente eleitoreiros, das lideranças religiosas medievais, erguendo a bandeira do estado laico que a modernidade exige.
No último final de semana tive uma experiência sinistra. Entrei ao acaso no cinema para ver o filme Blood Money – O Aborto Legalizado. A curta resenha que li dizia se tratar de um documentário contra o aborto. Fiquei curiosa. Ao comprar o bilhete, pensei: “Deve estar vazio”. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que havia no máximo meia dúzia de lugares vagos na sala do Espaço Itaú, cinema onde normalmente entram em cartaz filmes considerados “cult”. Ou entravam, sei lá.
Vi o documentário inteiro boquiaberta. Para começar, não é um filme religioso, mas a religião aparece como subtexto todo o tempo: uma Bíblia na mesa aqui, uma cruz detrás do entrevistado acolá, uma imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus ao fundo… Para dar um verniz “humanista” à coisa, quem apresenta o documentário, dirigido por David Kyle, é a sobrinha de Martin Luther King, a pastora conservadora Alveda King, empenhada em espalhar a mentira de que o tio era contrário à legalização do aborto.
Alveda faz questão de ignorar que a viúva de Luther King, Coretta, morta em 2006, apoiou durante 23 anos não só o direito de a mulher decidir sobre o aborto como também o casamento gay. E que o próprio reverendo Martin Luther King, segundo historiadores, situado à esquerda do partido Democrata (a sobrinha cara-de-pau o pinta como Republicano), foi um dos apoiadores da Planned Parenthood, a organização sem fins lucrativos para o controle de natalidade que realiza o maior número de abortos nos EUA desde que a prática foi legalizada, em 1973 (leia um perfil de Alveda King na revista online Salon, aqui).
Nas telas do cinema, Blood Money tenta transformar a Planned Parenthood em uma entidade criminosa. O principal discurso do documentário, como já diz o título, é que a “indústria do aborto” rende milhões de dólares nos EUA, como se tudo não rendesse dinheiro na nação mais capitalista do planeta. Em seguida, o filme ataca pelo lado racial, ao demonstrar que a maioria dos abortos é feita por mulheres negras. Mas, em vez de dar a explicação correta sobre este fato –que isto acontece porque há mais negras pobres nos EUA e por isso mesmo mais sujeitas a abortar–, o documentário abraça a bizarra teoria de Alveda King de que, na verdade, os abortos seriam um “genocídio negro”.
Por último, Blood Money explora a ideia de que as mulheres são forçadas a fazer abortos e não optam por não ter a criança. Que não é uma escolha da mulher, como defendem os ativistas a favor da legalização, mas uma opção desesperada. E que isso causaria traumas para o resto da vida nas mulheres, estragando seu futuro e algumas vezes levando até ao suicídio. Para fechar com chave de ouro, recorre ao sentimentalismo, mentindo deliberadamente ao informar que fetos sentem dor no momento em que são abortados, o que não tem nenhuma comprovação científica, já que até as 24 semanas não têm as terminações nervosas totalmente formadas. Quando o filme acabou, várias mulheres choravam ao meu lado.
No Brasil, o filme foi lançado por uma produtora espírita, a Estação Luz, que antes da sessão que assisti exibiu o trailer do seu próximo lançamento: um documentário sobre a garotinha Vitória de Cristo, que nasceu sem cérebro, e que morreu aos dois anos de idade no ano passado. Três meses antes, em abril de 2012, a menina havia sido levada pelos pais ao Supremo Tribunal Federal, como símbolo contra a liberação do aborto em casos de anencefalia, que acabou aprovada pelo tribunal.
Nos EUA, o objetivo da peça panfletária é tentar reverter a decisão da Suprema Corte que legalizou o aborto. Por aqui, me parece haver três metas claras: primeiro, derrubar a decisão do STF sobre o aborto de anencéfalos, que o filme sobre Vitória irá reforçar; em segundo lugar, aprovar no Congresso o absurdo estatuto do nascituro, que estabelece pena de prisão para quem abortar e dá pensão aos filhos de mulheres que não abortarem, inclusive em caso de estupro; e, por último, influir na eleição de 2014 contra qualquer possibilidade de discussão da legalização do aborto no País como uma questão de saúde pública.
Saí do cinema com a sensação de ter, literalmente, visto esse filme antes. Mas sabem o que é mais assustador? Do lado de fora, uma fila imensa aguardava a próxima sessão.
Enquanto o PSDB e o PT se digladiam pelo poder, os fundamentalistas já estão pavimentando o caminho para, novamente, mergulhar a disputa presidencial e o país no obscurantismo. E temo que nenhum dos dois partidos terá a coragem necessária para romper de uma vez por todas com a dependência, com fins meramente eleitoreiros, das lideranças religiosas medievais, erguendo a bandeira do estado laico que a modernidade exige.
No último final de semana tive uma experiência sinistra. Entrei ao acaso no cinema para ver o filme Blood Money – O Aborto Legalizado. A curta resenha que li dizia se tratar de um documentário contra o aborto. Fiquei curiosa. Ao comprar o bilhete, pensei: “Deve estar vazio”. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que havia no máximo meia dúzia de lugares vagos na sala do Espaço Itaú, cinema onde normalmente entram em cartaz filmes considerados “cult”. Ou entravam, sei lá.
Vi o documentário inteiro boquiaberta. Para começar, não é um filme religioso, mas a religião aparece como subtexto todo o tempo: uma Bíblia na mesa aqui, uma cruz detrás do entrevistado acolá, uma imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus ao fundo… Para dar um verniz “humanista” à coisa, quem apresenta o documentário, dirigido por David Kyle, é a sobrinha de Martin Luther King, a pastora conservadora Alveda King, empenhada em espalhar a mentira de que o tio era contrário à legalização do aborto.
Alveda faz questão de ignorar que a viúva de Luther King, Coretta, morta em 2006, apoiou durante 23 anos não só o direito de a mulher decidir sobre o aborto como também o casamento gay. E que o próprio reverendo Martin Luther King, segundo historiadores, situado à esquerda do partido Democrata (a sobrinha cara-de-pau o pinta como Republicano), foi um dos apoiadores da Planned Parenthood, a organização sem fins lucrativos para o controle de natalidade que realiza o maior número de abortos nos EUA desde que a prática foi legalizada, em 1973 (leia um perfil de Alveda King na revista online Salon, aqui).
Nas telas do cinema, Blood Money tenta transformar a Planned Parenthood em uma entidade criminosa. O principal discurso do documentário, como já diz o título, é que a “indústria do aborto” rende milhões de dólares nos EUA, como se tudo não rendesse dinheiro na nação mais capitalista do planeta. Em seguida, o filme ataca pelo lado racial, ao demonstrar que a maioria dos abortos é feita por mulheres negras. Mas, em vez de dar a explicação correta sobre este fato –que isto acontece porque há mais negras pobres nos EUA e por isso mesmo mais sujeitas a abortar–, o documentário abraça a bizarra teoria de Alveda King de que, na verdade, os abortos seriam um “genocídio negro”.
Por último, Blood Money explora a ideia de que as mulheres são forçadas a fazer abortos e não optam por não ter a criança. Que não é uma escolha da mulher, como defendem os ativistas a favor da legalização, mas uma opção desesperada. E que isso causaria traumas para o resto da vida nas mulheres, estragando seu futuro e algumas vezes levando até ao suicídio. Para fechar com chave de ouro, recorre ao sentimentalismo, mentindo deliberadamente ao informar que fetos sentem dor no momento em que são abortados, o que não tem nenhuma comprovação científica, já que até as 24 semanas não têm as terminações nervosas totalmente formadas. Quando o filme acabou, várias mulheres choravam ao meu lado.
No Brasil, o filme foi lançado por uma produtora espírita, a Estação Luz, que antes da sessão que assisti exibiu o trailer do seu próximo lançamento: um documentário sobre a garotinha Vitória de Cristo, que nasceu sem cérebro, e que morreu aos dois anos de idade no ano passado. Três meses antes, em abril de 2012, a menina havia sido levada pelos pais ao Supremo Tribunal Federal, como símbolo contra a liberação do aborto em casos de anencefalia, que acabou aprovada pelo tribunal.
Nos EUA, o objetivo da peça panfletária é tentar reverter a decisão da Suprema Corte que legalizou o aborto. Por aqui, me parece haver três metas claras: primeiro, derrubar a decisão do STF sobre o aborto de anencéfalos, que o filme sobre Vitória irá reforçar; em segundo lugar, aprovar no Congresso o absurdo estatuto do nascituro, que estabelece pena de prisão para quem abortar e dá pensão aos filhos de mulheres que não abortarem, inclusive em caso de estupro; e, por último, influir na eleição de 2014 contra qualquer possibilidade de discussão da legalização do aborto no País como uma questão de saúde pública.
Saí do cinema com a sensação de ter, literalmente, visto esse filme antes. Mas sabem o que é mais assustador? Do lado de fora, uma fila imensa aguardava a próxima sessão.