POLÍTICA - A guinada à direita do PT, vista por Luiza Erundina.

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  • segunda-feira, 14 de outubro de 2013
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  • A governabilidade acima de tudo


    Erundina: “PT nunca incorporou à sua história a experiência da minha prefeitura”

    Caio Sarack e Rodrigo Giordano, na Carta Maior
    O discurso da deputada federal e ex-prefeita paulistana Luiza Erundina ainda hoje reverbera e se atualiza nas ruas.
    Especialmente o plano de gratuidade do transporte público de sua gestão de 89-93, que este ano tomou corpo com mais de 2 milhões de pessoas nas ruas brasileiras, manifestações que compilaram bandeiras, mas a permanência no centro da tarifa zero foi resistindo até a revogação do aumento da passagem em cidades espalhadas pelo Brasil.
    A deputada foi responsável,  junto com Olívio Dutra em Porto Alegre (RS) e Vitor Buaiz em Vitória (ES), pela nomenclatura e prática do famigerado “modo petista de governar”, democrático-popular.
    Orçamento participativo, consulta e transparência da máquina pública. Na palavra da ex-prefeita: “uma inversão de prioridade”.
    A gestão tinha pretensões e conformação locais, isto é, na conjuntura de sua fundação até os anos 90 a atividade e intenção do PT se concentrava na conquista municipal.
    As cidades, com problemas particulares, demandam escolhas distintas de um presidente da república.
    O modo petista de governar dos idos 80/90 parece ter perdido força e caduca como historieta eventual.
    Segundo Erundina, uma história que o próprio partido esquece de dar a devida importância.
    A mudança de paradigma por que passou o Brasil nos últimos 10 anos no plano federal (des)caracterizou os outros níveis de poder, estadual e municipal?
    É uma hipótese.
    A inclusão pelo consumo, a saída de 40 milhões de pessoas da miséria, um derramamento de crédito para consumo interno, desoneração etc.
    O país – e o Partido dos Trabalhadores — muda sua relação com as classes, concilia interesses extremamente antagônicos.
    Tais configurações sociais, é claro, mudam o comportamento eleitoral, político e individual do brasileiro abrindo um novo cenário em que o partido retira suas condições e meios para ocupar o lugar do poder.
    Na entrevista com o prefeito de São José dos Campos, historicamente conservadora e hoje com gestão petista, pudemos ver como a gestão municipal lida com as mudanças do plano federal: a constante referência ao governo Lula e agora ao de Dilma, o consumo sempre crescente, as condições para esse crescimento pautam a gestão municipal de maneira explícita.
    A gestão de Erundina, antes do paradigma de coalizão e dos avanços sociais de redistribuição, fazem, hoje, contraste com as gestões municipais petistas.
    Carta Maior entrevistou Luiza Erundina, hoje deputada federal pelo PSB, ex-prefeita de São Paulo pelo PT que despontou como opção quase unânime do progressismo na disputa eleitoral de 89.
    Carta Maior: Como a senhora definiria o modo petista de governar que marcou sua gestão em 80 e 90?
 

    O que caracteriza um governo democrático e popular, que era a marca dos governos petistas da época, é serem governos com efetiva participação popular, organizando os movimentos sociais e o próprio governo estimulando e criando condições para que os setores populares se organizem e se fortaleçam em suas organizações que já existem e estabeleçam uma relação autônoma e independente do governo.
    Não queríamos que governo e movimentos sociais ou sindicais se confundissem, não é bom nem pra um nem pro outro.
    E quanto mais independência e autonomia tanto melhor pra ambos.
    Então, a participação popular nas decisões estratégicas, como definição das prioridades orçamentárias, o controle público e social sobre a execução orçamentaria, sobre as obras e ações do governo, define um governo democrático e popular.
    Os governos tradicionais, conservadores, que é o que a gente sempre viu na história do país, particularmente de São Paulo, são governos que investem mais em setores da cidade nas políticas públicas que favorecem uma minoria.
    Governos que ampliam os privilégios ao invés de inverter prioridades que sejam de interesse da maioria da população, que são as politicas públicas sociais: em nossa gestão, mais da metade do orçamento foi destinada a saúde, cultura, educação, habitação popular, áreas em que há um déficit e uma dívida social da cidade com os setores mais excluídos, mais pobres da sociedade.
    Então o que define um governo petista, democrático e popular é transparência, controle público, preocupação ética e o pressuposto da nossa presença nas instâncias de governo. Espero que essa ainda seja a marca e a identidade do modo petista de governar.
    CM: A senhora falou sobre a questão de maioria na Câmara e os problemas que você enfrentou na gestão municipal: quais foram as barreiras colocadas para que você exercesse sua forma de governar? Elas ainda permanecem na gestão atual?
 

    Primeiro eu tive dificuldade na relação com o próprio PT, sobretudo com a direção municipal do partido, porque foi o primeiro governo petista numa cidade do porte de São Paulo.
    O PT vinha de uma história de lutas por mudanças e participação da sociedade, essa era a marca do partido e nós como militantes exigíamos dos governos medidas nesse sentido.
    Vínhamos inclusive com pretensões acima daquilo que é possível num governo de uma cidade, mesmo uma cidade como São Paulo.
    As propostas do PT como partido e nossas quando militávamos, antes de sermos governo, era promover mudanças estruturais.
    Por exemplo, do ponto de vista da moradia na cidade: garantir a regularização dos terrenos que existiam ocupados por favelas para garantir a estabilidade da posse, das ocupações, pelo reconhecimento da moradia como um direito fundamental, a melhoria das favelas, reurbanizando-as, destinando os equipamentos públicos para as áreas mais carentes e menos providas desses serviços.
    Fizemos mais de 40.000 unidades habitacionais, além de escolas e hospitais, instalamos dezenas de unidades básicas de saúde.
    Nós pretendíamos, e o partido esperava, a implementação das propostas de mudanças estruturais, como a estatização do transporte público.
    Ao invés de contrato com empresas, que fosse operado diretamente pela prefeitura (30% era CMTC).
    O partido ficou descontente ao chegarmos no governo e não conseguirmos implementar as bandeiras de luta. Se você tem um partido socialista, ou pelo menos com uma proposta socialista, e que luta por justiça social, por igualdade de direitos, é evidente que sua plataforma de lutas deve ser composta de bandeiras e de compromissos que pautem na direção de resolver essas questões de ordem estrutural.
    O fato de não termos conseguido implementar essas mudanças que constavam no nosso plano de lutas frustrou o partido e gerou tensão permanente em sua relação com o governo.
    Até porque o partido esperava governar junto, e embora eu fosse daquele partido, o governo era da cidade como um todo e eu tinha que governar pra todos, evidente que com prioridades, atendendo a maioria e procurando investir naquelas políticas que atingiriam o maior número de pessoas.
    Mas eu não poderia descuidar de determinados serviços da cidade ou de certas ações de governo que também contemplavam todos os habitantes, do patrão ao trabalhador. Mas o partido não entendia assim.
    E essa relação foi um dos maiores problemas que tive que enfrentar, e acredito que outros governos petistas na época também passaram por isso.
    Os trabalhadores também tinham grandes expectativas, principalmente aqueles ligados à CUT e ao PT. Queriam do governo demandas acumuladas há décadas: condição salarial, condições de trabalho.
    Nós estávamos no começo de um governo de 4 anos, não tínhamos maioria na Câmara.
    Não tendo a maioria, nós tínhamos que estabelecer relações com cada vereador, atendendo interesses, fisiologismo, clientelismo, e nós nos recusamos a manter essa cultura da relação Executivo-Legislativo, que faria com que atendêssemos a certas demandas que não correspondiam com nossos compromissos.
    Isso foi uma crise permanente, já que a Câmara se recusava a aprovar nossos projetos, a partir do próprio orçamento.
    Foram 4 anos de muita luta e o Tribunal de Contas, que é um órgão auxiliar do poder Legislativo, era um órgão politico a serviço dessa relação contraditória do Legislativo com o Executivo.
    Todo ano minhas contas eram recusadas. E o Tribunal de Contas era composto em sua maioria por conselheiros indicados ainda da época do Maluf.
    A relação com os governos estaduais e federais também fez diferença. Quércia, Fleury, Sarney, Collor.
    Todos governos de oposição ao nosso. Logo que entramos a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil cobraram dívidas da prefeitura de São Paulo que estavam acumuladas há décadas, obrigando nosso governo a pagar dívidas que não eram nossas. E eles bloquearam as contas da prefeitura.
    Eu fui pra rua, chamei o povo para denunciar essa situação. O presidente da Caixa não me recebia. Foi a pressão popular e a mobilização do governo que me impediram de ser cassada.
    CM: Esses problemas mudaram ou se mantêm na prefeitura do Haddad?
    Eles [o PT] passaram a adotar, até mesmo antes do governo Lula, uma política de privatização, uma relação diferente com o capital, com os empresários e com os partidos, que serviu de base para a construção do governo de coalizão, sendo assim condicionados por uma base congressual, que evidentemente só possui interesses individuais e clientelísticos para se reelegerem.
    É importante se preocupar com a governabilidade, mas não a qualquer preço. Ela pode ser conquistada não só com a base congressual, é possível mediar essa relação Executivo-Legislativo com a participação da sociedade civil organizada.
    Eu não tinha maioria na Câmara, por exemplo.
    Os casos de Lula, Dilma e outros governos petistas são baseados em compromissos de governabilidade com a base de apoio e com participação de partidos de seus governos que tiram deles as condições de autonomia e independência, pelo menos em relação a algumas questões.
    E o Lula fez isso ao assinar à Carta aos Brasileiros, comprometendo-se com o FMI, compromissos que tinham sido firmados com o FHC.
    Os governos do PT, a partir do próprio Lula, passaram a fazer acordos principalmente para se viabilizarem eleitoralmente.
    CM: Como funciona o paradigma Lula-Dilma nas gestões municipais para responder a serviços mais diretos?

    Eu acho que reproduz nos níveis estaduais e municipais a política que é adotada no plano federal.
Porque o partido que faz acordo no plano federal torna-se um potencial aliado nas bases estaduais e municipais, sendo um eventual aliado eleitoral. E a lógica eleitoral se impõe.
    As alianças partidárias, inclusive o partido do governo, se reproduzem em todas as escalas.
    A cada eleição os governantes pretendem manter esses aliados, muito em razão do tempo de televisão também.
    A forma como se deu o apoio do Maluf à candidatura do Haddad, a ponto de eu ter que tomar aquela posição dura, difícil, constrangedora pra mim…
    Mas eu precisava mostrar coerência e mostrar que eu me diferenciava dos políticos tradicionais, convencionais.
    Daí porque a minha luta é pela reforma política, mas não remendos, uma reforma profunda, que mexa no sistema eleitoral e partidário, nas relações entre os poderes do Estado, no pacto federativo.
    Essa cultura de governabilidade, da preocupação com a eleição seguinte, mantém e aprofunda essas alianças, distanciando esses governos e partidos de suas bases sociais, de suas origens, de seus compromissos históricos, que lamentavelmente é o que acontece com o PT.
    O PT nasceu com uma promessa, uma esperança, por isso atraia tantos jovens quando surgiu, acreditando nessa proposta de transformação.
    CM: Nas manifestações de junho nós tivemos o Movimento Passe Livre pautando projetos característicos da sua gestão. O que vimos foi um descompasso absoluto entre o “novo modo petista de governar”, se é que se pode dizer assim, e projetos marcantes de sua trajetória política. Como você avalia isso?

    Primeiro é preciso levar em conta que o PT nunca incorporou à sua história e ao seu projeto político a experiência da minha prefeitura em São Paulo.
    Esse momento fundamental da história do partido, em que a esquerda conquista o governo da maior cidade do país num período em que acabávamos de sair da ditadura, não consta nos documentários, nos documentos históricos.
    Era um momento especial da vida política do país. E o nosso governo deixou uma marca, a ponto de termos nos tornado uma referência, não só em relação aos transportes, mas para muitas prefeituras (o orçamento participativo começou no nosso governo, por exemplo).
    O nosso governo não foi para o PT uma conquista própria. Eu não era a candidata do Lula, do Zé Dirceu, do Rui Falcão.
    Eles apoiavam o Plínio Sampaio. Mas eu tive apoio de grupos mais à esquerda de dentro do PT, de Florestan Fernandes, José Genoíno, além dos movimentos populares.
    Houve gente de dentro do partido dizendo que eu havia comprometido o projeto das esquerdas, que seria o Plínio como prefeito de São Paulo.
    Essa foi a forma que o PT me recebeu depois que eu ganhei as prévias do partido. Algumas pessoas ficaram incomodadas quando no meu discurso eu disse que “sou prefeita da cidade, não sou prefeita do PT”.
    Sendo assim, o PT nunca valorizou essa conquista que tivemos na cidade de são Paulo; a Marta não aproveitou ninguém do meu governo durante a gestão dela, por exemplo.
    O resultado é que mais de 20 anos depois, as referências que existem para os governos municipais minimamente modernos, democráticos e avançados são as nossas propostas, mesmo aquelas que não conseguimos implementar, como a tarifa zero.
    E acho que esta tem mais viabilidade de acontecer agora, pois está vindo de baixo e não de um determinado governo.
     
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