Classes e luta de classes: mercantilismo

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  • quinta-feira, 31 de outubro de 2013
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  • Por Wladimir Pomar*

    O desenvolvimento da agricultura e do artesanato feudal, tanto na China quanto na Europa, criou monarquias feudais ricas e desembocou num intenso comércio, tanto de âmbito regional quanto internacional. No interesse de aumentar as riquezas da realeza, várias monarquias passaram a proteger o comércio desenvolvido a partir de cidades, em especial litorâneas, contrapondo-se às taxas cobradas pelos senhores feudais à circulação dos comerciantes e de suas mercadorias.

    Por volta dos séculos 12 e 13 de nossa era, Veneza e Gênova, então duas cidades-Estados independentes  do Mar Mediterrâneo, já haviam apoiado as cruzadas religiosas contra o domínio sarraceno no Oriente Médio e expandido seu comércio até o Império Bizantino e a Ásia Menor. As invasões tártaras e mongóis já haviam desbravado os caminhos que ligavam o Oriente ao Ocidente da Eurásia, dando lugar à chamada rota terrestre da seda. Os suecos, por sua vez, haviam atravessado os territórios eslavos de norte a sul, ligando o Mar Báltico ao Mar Negro. E as cidades comerciais germanas negociavam intensamente no Mar Báltico.

    No Oriente, chineses e indianos já desenvolviam seu comércio marítimo no Pacífico oriental e no Índico. A essa altura, os chineses já estavam avançando rapidamente em invenções técnicas que lhes permitiam realizar a navegação oceânica e chegar à costa oriental da África e ao sul da Península Arábica. Os árabes, em especial, desenvolviam um intenso comércio com produtos da China e da Índia para a Península Ibérica, introduzindo na Europa não só os tecidos, porcelanas, chás e especiarias produzidas naqueles reinos, mas também vários dos inventos chineses e indianos, a exemplo da álgebra, do número zero e da pólvora.

    Quanto mais o comércio se desenvolvia, mais intensos se tornavam a competição e os conflitos entre cidades mercantis, a exemplo das guerras entre as cidades da Liga Hanseática e as cidades dinamarquesas, e entre Gênova e Veneza. Acirrava-se também a luta de classes entre comerciantes e senhores feudais, e entre estes e as monarquias que apoiavam os comerciantes. Ao mesmo tempo, emergiam movimentos que apresentavam características nacionais, a exemplo da guerra de independência portuguesa contra a monarquia espanhola.

    A independência portuguesa representou também a primeira aliança formal entre um Estado monárquico e sua classe comercial. Ela se deu em torno de um projeto mercantil para estruturar uma nação, tendo por base a exploração de riquezas de outros povos através da navegação oceânica. No final do século 14, a revolução de Avis não só expropriou grande número de senhores feudais, proibindo-os de trabalhos manuais, como libertou inúmeros servos, tendo em vista a constituição da força de trabalho necessária para as expedições marítimas.

    No mesmo período, a manufatura de tecidos de lã havia se desenvolvido na região de Flandres, na Holanda. A expectativa de riquezas geradas pela criação de ovelhas e pela exportação de lã incentivou os proprietários fundiários ingleses a expulsar seus servos. Isso ocorreu através do cercamento (enclosure) das terras, da imposição do pagamento da renda da terra em dinheiro, ao invés de espécie, e da força armada. Os servos foram substituídos por criadores de ovelhas na forma de arrendamento pago em dinheiro. As terras livres e comunitárias também sofreram o mesmo processo de cercamento e expulsão dos camponeses.

    Durante cerca de três séculos, a nobreza fundiária inglesa introduziu a curso forçado as relações monetárias no processo da produção pecuária de ovelhas. Ou seja, introduziu na exploração do solo as relações monetárias que até então só eram comuns na troca comercial. Seu resultado foi a emergência de uma nobreza feudal endinheirada e a expulsão, pelas ovelhas, de milhões de famílias camponesas expropriadas do principal meio de produção, o solo. Enquanto Thomas Morus, em sua Utopia, relatava ovelhas comendo homens, a rainha Elizabeth, logo a seguir, se viu na contingência de editar a primeira lei dos pobres, que transferia parte dos recursos reais para fornecer alimento às massas de vagabundos que inundaram as cidades inglesas.

    Enquanto isso ocorria, na Holanda, Inglaterra e Portugal, as naus chinesas, providas de lemes, velas triangulares, cascos estanques e bússolas, não tinham concorrentes em termos de navegabilidade, velocidade, tamanho e capacidade de carga nos oceanos Pacífico e Índico. Elas intensificaram em muito o comércio marítimo da China com a Índia e com a península Arábica e, através desta, com a Europa. A tal ponto que a riqueza dos comerciantes chineses e suas atividades manufatureiras atingiram um patamar que se tornou intolerável aos senhores feudais, embora tenha elevado a dinastia Ming à monarquia mais rica de todo o mundo.

    A luta entre feudais e comerciantes chineses dividiu a dinastia Ming. Esta, ao contrário da monarquia portuguesa, manteve sua fidelidade aos feudais. Proibiu o comércio marítimo, deixou sua frota ser consumida pelo fogo e pelo tempo e perdeu a oportunidade de participar nas descobertas marítimas dos séculos 15 e 16. Em meados do século 17, acabou sendo dominada pela pequena, mas militarizada dinastia feudal manchú Qing. Apesar de toda a riqueza acumulada, a China ficou presa nas malhas do seu feudalismo, com consequências que só se tornariam visivelmente desastrosas a partir de meados do século 19.

    O período histórico que compreende os século 16 a 19 assistiu, assim, à expansão marítima dos reinos português, espanhol, holandês, inglês e francês sobre a África subsaariana, a Índia e outras regiões da Ásia, assim como a descoberta dos continentes americanos. Nesse processo, combinaram-se as mais esdrúxulas atividades mercantis. Primeiro, as trocas comerciais imensamente desiguais e mediadas por negociações diplomáticas e/ou canhoneiras. Depois, matanças e saques de populações inteiras, para apropriação de ouro, prata, pedras preciosas e quaisquer outros tipos de riqueza, a exemplo do pau brasil.

    Paralelamente, todas as monarquias, em especial a inglesa, fizeram largo uso dos Merchant Adventurers, mais vulgarmente conhecidos como corsários, bucaneiros e piratas, para atacar, aprisionar e saquear naus de outras monarquias, transportando riquezas das colônias americanas. E todos, mas também especialmente os ingleses, dedicaram-se à caça, apresamento e transporte de peças escravas africanas para territórios de povoamento e produção em plantations agrícolas. Tudo isso misturado a colonizações povoadoras de novos territórios, tanto com populações excedentes das metrópoles, quanto com presidiários.

    Na América do Norte, a colonização francesa e inglesa ocorreu com excedentes populacionais que se estabeleceram como pequenos proprietários agrícolas. No Caribe e no Brasil, as plantations açucareiras produziam com base no trabalho escravo africano, sob o comando de sesmeiros. Nas minas de algumas regiões da América do Sul foram utilizados escravos nativos.

    Os diferentes métodos de exploração utilizados pelo sistema colonial permitiram transferir e acumular imensas riquezas nos reinos feudais europeus, especialmente ouro e prata, transformando-as em produtos comercializáveis e tornando-as riqueza monetária. Por volta do século 18, essa acumulação de riqueza monetária resultou em dois movimentos desconexos, que iriam marcar profundamente a futura evolução das sociedades humanas.

    Na Espanha, ocorreu um brutal entesouramento, especialmente da prata explorada nas regiões que hoje constituem o México, Peru e Bolívia, causando um fenômeno monetário inflacionário até então desconhecido. Modernamente, em meados do século 20, fenômeno idêntico ocorreu na Holanda em virtude do entesouramento monetário resultante da exploração petrolífera do Mar do Norte, por isso recebendo a denominação de doença holandesa. Na verdade, tal doença não passou de variante do entesouramento espanhol dos séculos 17 e 18.

    Na Inglaterra, porém, ocorreu algo diferente. Embora a riqueza acumulada tenha sido igual ou maior do que a espanhola, os comerciantes e a própria nobreza endinheirada aproveitaram a acumulação monetária para empregar no trabalho manufatureiro as grandes massas vagabundas. Libertadas brutalmente de seus meios privados de produção pela revolução agrária, iniciada no século 14, essas massas só detinham a propriedade de sua própria força de trabalho. Podiam, pois, vendê-la em troca de recursos monetários, com os quais podiam adquirir alimentos e outros meios de sobrevivência.

    Foi essa situação histórica inglesa particular que deu surgimento, no interior do feudalismo, ao capital e ao trabalho assalariado massivo, embora tal relação já houvesse brotado, em pequena escala, nas manufaturas estatais romanas do século 10. Nasceu aí o capitalismo.

    *Wladimir Pomar é analista político e escritor.

    Via http://www.correiocidadania.com.br
     
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