No livro Os inimigos íntimos da democracia, o cientista político búlgaro Tzvetan Todorov assim define o populismo: "O populista se recusa a afastar-se do aqui e agora; foge das abstrações, das distâncias, da duração, e privilegia o concreto, o próximo, o imediato. O democrata é levado a defender valores impopulares, pois também se preocupa com as gerações vindouras; o populista joga com a emoção do momento, forçosamente efêmera". Por isso, completa Todorov, "o modo de apresentação do populismo é a demagogia".
Ao perseguir o imediato e desprezar o futuro, o político populista não move um dedinho para construir e consolidar as instituições que sustentam a democracia. Ele não tem a dimensão de um estadista, não tem apego à verdade e, se for preciso, mente para conseguir sucesso popular - sua incansável obsessão.
O populismo tem prosperado na América do Sul. Mais na Venezuela, Argentina, Equador e Bolívia. No Brasil, menos, porque as instituições têm funcionado como antídoto. É impensável, por exemplo, o IBGE manipular e mentir sobre dados de crescimento econômico e inflação, como faz seu congênere argentino, o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec). Nos últimos anos, o IBGE tem mudado metodologias de suas pesquisas e não aparece uma só voz a discordar e acusar de manipulação política. Quanto mais fortes as instituições, mais difícil fica o governante usar a força para impor a mentira.
Foi pela força da demissão de funcionários e intervenção no Indec que, em 2007, o então presidente Néstor Kirchner impôs a mentira da inflação, depois de um fracassado plano de congelar preços. Kirchner tentava imitar o ditador brasileiro Emílio Médici e seu ministro da Fazenda na época, Delfim Netto, que obrigaram a Fundação Getúlio Vargas (FGV) a incorporar ao cálculo da inflação um falso congelamento de preços que o comércio nunca respeitou. Ao chegar à Fazenda no governo Geisel, em 1974, o professor da FGV e economista Mario Henrique Simonsen desmascarou a mentira e corrigiu o índice.
A falsa inflação do Indec é escancarada, desacreditada e desmoraliza a imagem da Argentina mundo afora. A diretora do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, já ameaçou suspender o país do fundo se o governo continuar informando dados distorcidos. A falsificação levou várias consultorias a montar estruturas próprias de cálculo da inflação. A Fundação Libertad y Progreso, por exemplo, acaba de calcular em 164% a inflação acumulada nos cinco anos de governo Cristina Kirchner, encerrados em 2012. Para o Indec, não chegou nem a 45%. Para 2013 o governo estima um índice de 10,8% e as universidades e consultorias, entre 27% e 30%.
O Brasil se diferencia da Argentina em graduação. Com a piora dos indicadores, o governo Dilma tem recorrido a artifícios contábeis para maquiar resultados. Ora alonga o prazo para a Petrobrás registrar suas importações e alivia o saldo da balança comercial, ora usa estatais (BNDES, Petrobrás e Caixa) em operações triangulares para tentar cumprir a meta fiscal, como fez agora, ao fechar as contas de 2012. O resultado é o descrédito, mas nada é feito fora da lei nem é imposto pela força da intervenção, como fazem Kirchner e Hugo Chávez. Há, ainda, diferenças nos atentados contra a liberdade de imprensa e de expressão. Enquanto Chávez confisca TVs e rádios e Kirchner faz uma lei para impor a censura, aqui Dilma vive repetindo preferir "o barulho da imprensa livre ao silêncio da ditadura". Não deixa de ser um recado às investidas do PT contra a "mídia conservadora e golpista, que precisa ser controlada".
No meio das diferenças estão as instituições lá e cá. Não há dúvida de que o ex-presidente Lula se encaixa no perfil do populista descrito por Tzvetan Todorov, mas ele não acabou com a Lei de Responsabilidade Fiscal nem com a Comissão de Ética Pública e fez avançar a Lei de Acesso à Informação, promulgada por Dilma. E a independência demonstrada pelo Judiciário ao julgar o mensalão foi a mais recente e eloquente prova de progresso institucional, que não se vê nos vizinhos hermanos.
Suely Caldas, jornalista, é professora da PUC-Rio
Fonte: O Estado de S. Paulo