Passagem do Ano – Carlos Drummond de Andrade

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  • sábado, 29 de dezembro de 2012
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  • O último dia do ano
    não é o último dia do tempo.
    Outros dias virão
    e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
    Beijarás bocas, rasgarás papéis,
    farás viagens e tantas celebrações
    de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
    e coral,
    que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
    os irreparáveis uivos
    do lobo, na solidão.

    O último dia do tempo
    não é o último dia de tudo.
    Fica sempre uma franja de vida
    onde se sentam dois homens.
    Um homem e seu contrário,
    uma mulher e seu pé,
    um corpo e sua memória,
    um olho e seu brilho,
    uma voz e seu eco,
    e quem sabe até se Deus...

    Recebe com simplicidade este presente do acaso.
    Mereceste viver mais um ano.
    Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
    Teu pai morreu, teu avô também.
    Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
    mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
    e de copo na mão
    esperas amanhecer.

    O recurso de se embriagar.
    O recurso da dança e do grito,
    o recurso da bola colorida,
    o recurso de kant e da poesia,
    todos eles... e nenhum resolve.

    Surge a manhã de um novo ano.
    As coisas estão limpas, ordenadas.
    O corpo gesto renova-se em espuma.
    Todos os sentidos alerta funcionam.
    A boca está comendo vida.
    A boca está entupida de vida.
    A vida escorre da boca,
    lambuza as mãos, a calçada.
    A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


     
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