Evocação do Recife – Manuel Bandeira

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  • domingo, 30 de dezembro de 2012
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  • Recife
    Não a Veneza americana
    Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
    Não o Recife dos Mascates
    Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
    — Recife das revoluções libertárias
    Mas o Recife sem história nem literatura
    Recife sem mais nada
    Recife da minha infância
    A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
    e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
    Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
    na ponta do nariz
    Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
    mexericos namoros risadas
    A gente brincava no meio da rua
    Os meninos gritavam:
    Coelho sai!
    Não sai!

    A distância as vozes macias das meninas politonavam:
    Roseira dá-me uma rosa
    Craveiro dá-me um botão

    (Dessas rosas muita rosa
    Terá morrido em botão...)
    De repente
    nos longos da noite
    um sino
    Uma pessoa grande dizia:
    Fogo em Santo Antônio!
    Outra contrariava: São José!
    Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
    Os homens punham o chapéu saíam fumando
    E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

    Rua da União...
    Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
    Rua do Sol
    (Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
    Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
    ...onde se ia fumar escondido
    Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
    ...onde se ia pescar escondido
    Capiberibe
    — Capiberibe
    Lá longe o sertãozinho de Caxangá
    Banheiros de palha
    Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
    Fiquei parado o coração batendo
    Ela se riu
    Foi o meu primeiro alumbramento
    Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
    E nos pegões da ponte do trem de ferro
    os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

    Novenas
    Cavalhadas
    E eu me deitei no colo da menina e ela começou
    a passar a mão nos meus cabelos
    Capiberibe
    — Capiberibe
    Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
    Com o xale vistoso de pano da Costa
    E o vendedor de roletes de cana
    O de amendoim
    que se chamava midubim e não era torrado era cozido
    Me lembro de todos os pregões:
    Ovos frescos e baratos
    Dez ovos por uma pataca
    Foi há muito tempo...
    A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
    Vinha da boca do povo na língua errada do povo
    Língua certa do povo
    Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
    Ao passo que nós
    O que fazemos
    É macaquear
    A sintaxe lusíada
    A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
    Terras que não sabia onde ficavam
    Recife...
    Rua da União...
    A casa de meu avô...
    Nunca pensei que ela acabasse!
    Tudo lá parecia impregnado de eternidade
    Recife...
    Meu avô morto.
    Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
    como a casa de meu avô.

     
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