Golpe na democracia, vitória do stronismo

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  • quarta-feira, 27 de junho de 2012
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  • Por Daniel Cassol - Publicado por Carta Maior.
    Assunção, 1º de Maio de 2009. As manifestações do Dia Internacional do Trabalho terminam em frente a uma clínica privada, que abriga desde a madrugada Augusto Montanaro, ministro do Interior e responsável pelas torturas e desaparições durante a ditadura de Alfredo Stroessner, recém chegado de Honduras, onde estava foragido. Há confronto com a tropa de choque da Polícia Nacional. Sobram, para este repórter que fotografava o ato, alguns chutes de um policial, mesmo anunciando aos gritos ser jornalista. Quando a situação se acalma, um dos manifestantes picha um muro da clínica: “sanatório stronista”.
    Qualificar uma clínica privada como “stronista” não é apenas um arroubo exagerado de um manifestante, mas um exemplo de como a ditadura de 35 anos deixou mais do que cicatrizes na sociedade paraguaia. O stronismo está vivo e impregnado em instituições como o Poder Judiciário e a Polícia, controladas durante seis décadas pelo Partido Colorado, herdeiro de uma de suas principais tradições: o desprezo pela democracia.
    Foi dentro do Partido Colorado que, em 1999, se gestou uma tentativa de golpe de Estado, no episódio que ficou conhecido como Marzo Paraguayo, a crise gerada pelo assassinato do vice-presidente Luis Maria Argañas e pelas evidências de que, por trás de tudo, estava o general Lino Oviedo, que três anos antes havia tentado um golpe pela primeira vez. Libertado da prisão pelo presidente Raúl Cubas Grau, seu afilhado político, Oviedo estaria tramando para chegar à presidência. Os paraguaios foram às ruas para evitar o retorno da ditadura militar. Sete jovens morreram nos protestos, provavelmente alvos de atiradores de elite que se posicionaram em edifícios do centro de Assunção – da mesma forma que aconteceu na noite da última sexta-feira. Cubas acabaria renunciando à presidência. Oviedo, atualmente, é líder do UNACE, partido de direita que ajudou a impulsionar o “juício político” contra Lugo.
    A fragilidade da democracia paraguaia, a tradição antidemocrática do Partido Colorado e a disposição à resistência dos movimentos sociais do país estão sintetizadas no julgamento sumário a que foi submetido o presidente Fernando Lugo na sexta-feira (22). Isso demonstra a limitação das análises legalistas: falar que o processo respeitou a Constituição do país é ignorar o contexto político paraguaio e as circunstâncias que levaram a este golpe na democracia. Também indica que a crise está longe de um desfecho: a comunidade internacional pode não intervir e o sistema político interno pode se estabilizar, mas os movimentos sociais paraguaios – especialmente os camponeses – sofrerão na carne o retorno das oligarquias ao poder formal.
    Aliança para el cambio
    Bispo dos pobres”, ligado à Teologia da Libertação e com atuação junto aos movimentos camponeses do departamento de San Pedro, Fernando Lugo apareceu como alternativa política no Paraguai principalmente a partir de 2006, quando passou a liderar o movimento Resistência Cidadã. No esteio das transformações políticas na América do Sul, conseguiu pôr fim a seis décadas de domínio do Partido Colorado, elegendo-se presidente em abril de 2008. Mas mesmo um governo minimamente reformista como o de Lugo não teve tranquilidade em meio a um sistema político controlado pelas oligarquias. E as tentativas de golpe começaram já nos primeiros meses.
    Alguns veículos do Paraguai falam em 24 vezes em que os colorados ou outros parlamentares de direita tentaram aprovar o pedido de “juício politico” contra o presidente Lugo. Não sei dizer se foram tantas, mas nos seis meses em que morei em Assunção, em 2009, lembro de duas. Os motivos eram absolutamente prosaicos. Quando surgiu a informação de que Lugo tinha um filho não reconhecido, uma senadora ingressou com um pedido de impeachment no Congresso. Em seguida, a realização de um encontro de jovens ligados a movimentos sociais em um quartel do Exército gerou uma nova tentativa. Era de conhecimento de todos, inclusive da embaixada dos Estados Unidos em Assunção, que desde 2009 se tramava um golpe contra Lugo, como mostram correspondências diplomáticas publicadas pelo Wikileaks.
    Na mesma época, o presidente Manuel Zelaya era destituído em Honduras, levando os partidos de esquerda e movimentos paraguaios a protestarem contra a ameaça à democracia no continente. Falava-se na época sobre os riscos de se reproduzir no Paraguai a mesma experiência hondurenha.
    Todas essas tentativas, no entanto, foram barradas no Congresso com ajuda do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), um partido conservador e adversário histórico dos colorados que foi fundamental na eleição de Lugo, entrando na ampla “Alianza para el Cambio” com o candidato a vice Federico Franco. Mas o PLRA nunca foi um aliado confiável de Fernando Lugo, ainda que alguns de seus líderes tenham se mostrado leais ao presidente. Mal comparando, era o PMDB de Lugo. Em todas as vezes que a oposição ameaçou com o impeachment, Federico Franco disse basicamente que estava pronto para assumir a presidência, atuando como mais um fator de instabilidade dentro do governo.
    Um governo frágil em um país de oligarcas
    Lugo também tem responsabilidade por ter feito um governo tímido, ambíguo e com pouca habilidade política para lidar com a oposição e com sua heterogênea aliança. Desde a esquerda, era criticado pelas “más companhias”, por políticas controversas, pela submissão aos interesses dos Estados Unidos – Lugo era um frequentador assíduo da embaixada norte-americana – e por retardar questões urgentes como a reforma agrária.
    É preciso dizer, no entanto, que mesmo reformas simples foram barradas pelo Congresso, hegemonizado pelo Partido Colorado. Acostumada nos privilégios, a elite paraguaia jamais tolerou sequer a mais básica política de cunho social. Atrasada e truculenta, usava o medo do chavismo como justificativa para a histeria – com apoio de um considerável setor da imprensa, liderado pelo reacionário, controverso e mirabolante jornal ABC Color.
    Lugo não conseguiu criar um imposto sobre a renda pessoal, cuja inexistência perpetua a desigualdade e os privilégios das elites locais. Na questão agrária, qualquer menção à recuperação das chamadas “terras mal havidas”, distribuídas ilegalmente a grandes proprietários durante a ditadura Stroessner, gerava uma nova onda de desestabilização, que tinha nos grandes produtores de soja um dos principais incentivadores.
    Los sojeros, entre eles muitos brasileiros, detêm o poder econômico e político no Paraguai. Dados da Câmara Paraguaia de Exportadores de Cereais e Oleaginosas (Capeco), uma entidade do agronegócio, portanto, apontam que a área plantada de soja saltou de 1,2 milhão de hectares no ano 2000 para quase 3 milhões de hectares em 2012, concentrados na fronteira com o Brasil. O pequeno país é o quarto maior exportador de soja no mundo. Cerca de 80% das áreas agricultáveis do país são controladas por 2% da população.
    Dotado de grande poder, este setor, apoiados pelas multinacionais de sementes e defensivos químicos, sempre pressionou, por exemplo, pela flexibilização das leis ambientais e pela liberação de cultivares transgênicos e de agrotóxicos pesados. Sempre teve a Polícia Nacional e o Exército paraguaio sob seu comando. A concentração de terras e a pobreza no campo são grandes fatores de tensão, mas para os grandes produtores era Lugo quem estava incitando os movimentos camponeses.
    Estopim para o golpe
    Uma tragédia decorrente de uma disputa por terras supostamente mal havidas em Curuguaty, próximo da fronteira com o Brasil, em uma propriedade de Blas Riquelme, ex-presidente do Partido Colorado, foi o estopim para o impeachment de Lugo. Há uma grande suspeita de armação na incitação à violência, que terminou com a morte de 11 camponeses e seis policiais. Não é possível afirmar nada, a não ser que a tensão no campo foi explorada pelos setores que desde o começo do governo Lugo tentaram abreviá-lo. E que da União de Grêmios Produtores (UGP), a confederação dos sindicatos de produtores rurais do Paraguai, partiu a palavra de ordem pelo “juício político”.
    O principal articulador da estratégia oposicionista foi Horácio Cartes, líder de um movimento interno do Partido Colorado, pré-candidato às eleições presidenciais no ano que vem e apontado, pelos Estados Unidos, como tendo ligações com o narcotráfico, segundo revelou o Wikileaks. Diante da crise, o PLRA decidiu romper com Lugo: publicamente, pelas mudanças realizadas pelo presidente no Ministério do Interior e na Polícia Nacional. Mas está claro que falou mais alto o senso de oportunidade ao PLRA, que finalmente chegou à presidência com ajuda dos colorados.
    O impeachment foi aprovado e sacramentado com rapidez impressionante. Da noite para o dia, a elite paraguaia conseguia levar a cabo o que sempre foi uma obsessão. Fica claro, portanto, que o massacre em Curuguaty foi o pretexto que faltava para que a direita paraguaia recuperasse as rédeas da administração pública – na marra, como é de seu costume. Desconsiderar esse contexto é ignorar a gravidade do que aconteceu no Paraguai.
    Mas regras são regras e a classe política paraguaia quer fazer crer, com ajuda de muitos analistas políticos, que houve respeito às regras do jogo democrático no impeachment de Lugo. Tal argumentação não resiste a cinco minutos de exposição de fatos.
    As acusações contra Lugo levadas ao Congresso foram baseadas fundamentalmente em ilações e opiniões políticas. O uso do quartel do Exército para um ato político de jovens entrou na lista de acusações. Lugo também foi acusado de incitar a violência no campo, por causa de suas relações democráticas com movimentos sociais. Os parlamentares chegaram afirmar que não era necessário apresentar nenhum tipo de prova, porque os fatos seriam de pública notoriedade. Sem apresentar um indício sequer, disseram que Lugo tem ligações com o Exército do Povo Paraguaio (EPP), uma suposta guerrilha de extrema-esquerda.
    Em relação ao massacre em Curuguaty, as evidências não apontam responsabilidade do presidente Lugo. Vale ressaltar que o pedido para a desocupação da fazenda foi feito pelo Ministério Público e acatado pela Justiça. De qualquer modo, havia uma investigação em curso e o correto seria esperar seu andamento. Lugo também nomeou uma comissão para investigar o caso (Federico Franco cancelou essa investigação especial assim que tomou posse).
    O Congresso não esperou e, em pouco mais de um dia, condenou Lugo em um rito sumário, sem direito a ampla defesa. Sobre a eleição legítima de Lugo não há nenhum tipo de suspeita, mas o mesmo não pode se dizer sobre sua destituição.
    Um recuo de décadas

    É difícil prever o que acontecerá daqui para frente. Os movimentos sociais paraguaios seguirão protestando em Assunção. No interior, movimentos camponeses anunciam manifestações, enquanto Lugo, depois de um discurso desmobilizador, criou um gabinete paralelo para acompanhar o novo governo. A reação da comunidade internacional se resume, por enquanto, a condenações públicas e à suspensão do Paraguai pelo Mercosul. A esperança dos golpistas e o temor de quem defende a democracia no Paraguai é que a normalidade no país chegue tão rapidamente quanto foi o golpe, assim como aconteceu em Honduras, com o tema caindo no esquecimento.
    Será um regresso de décadas. Paraguai ainda vivia sua transição para a democracia e a eleição de Lugo era um passo importante na consolidação do processo democrático. Mas este processo foi abortado pelos mesmos setores que já haviam atentado contra a frágil democracia paraguaia nos últimos anos. Há colorados e oviedistas no novo gabinete de Federico Franco. O stronismo recupera a administração, já que nunca perdeu poder.
    A Polícia Nacional e o Exército estarão completamente livres novamente, já sob o comando de direito de seus comandantes de fato. Lideranças sociais seguramente sofrerão perseguição política e agressões, especialmente no campo. O Paraguai, que mesmo com o ambíguo governo Lugo experimentava algo de consolidação democrática, vai conviver mais uma vez com um governo de oligarcas.
    E a experiência iniciada em Honduras e validada no Paraguai poderá muito bem ser levada a outro país.
    Daniel Cassol é jornalista. Cobriu a campanha eleitoral paraguaia em 2008 e viveu seis meses em Assunção, ano de 2009, como correspondente do jornal Brasil de Fato.
     
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