“Um rasgo neoliberal do Chile, que irrita particularmente, é a privatização dos serviços públicos. Porque significa um roubo manifesto do patrimônio dos pobres. Aos humildes que não possuem nada, fica pelo menos a escola pública, o hospital público, os transportes públicos, etc. que são gratuitos ou muito baratos, subvencionados pela coletividade. Quando se privatiza, não só se arrebata da cidadania um bem que lhe pertence (custeado com os seus impostos) mas também se retira dos pobres seu único patrimônio” – Ignacio Ramonet (Diretor da edição espanhola do Le Monde Diplomatique).
Há mais de três meses milhares de estudantes chilenos tomam as ruas e avenidas das cidades do Chile, em grandes mobilizações de massa, contra a privatização do ensino e por uma educação pública, laica e gratuita.
No último dia 22 de setembro tive a oportunidade de, não só presenciar, mas também participar de mais uma grande manifestação com mais de 100 mil estudantes e populares nas grandes alamedas de Santiago do Chile. Para mim, que fui exilado político no Chile, e que senti na carne junto com o povo chileno o golpe de Estado no dia 11 de setembro de 1973 (que derrubou e assassinou o saudoso Presidente Salvador Allende), foi emocionante ver se materializar nesta manifestação de milhares de jovens estudantes a frase de Allende no seu último discurso, em pleno bombardeio do Palácio de La Moneda, que diz: “Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo do que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor”.
O movimento estudantil já conseguiu grandes vitórias políticas, como ganhar o apoio da maioria da população e demonstrar a desigualdade do sistema de ensino privatizado pela ditadura neoliberal do general Pinochet (1973 a 1990), e que mais de vinte anos de democracia liberal (1990 a 2011), acordada entre as elites democráticas da Concertação (Democracia Cristã - DC e Partido Socialista - PS) e as elites autoritárias da direita, não conseguiram desmontar. Por isso, exigem que o direito a uma educação pública e gratuita de qualidade seja inscrito na Constituição Nacional e constituíram uma maioria na sociedade favorável para uma transformação profunda na educação chilena.
Este movimento não é puramente estudantil, pois ele é também uma manifestação do mal estar geral da sociedade chilena com o modelo de desenvolvimento imposto, bem como do esgotamento do pacto da transição de uma saída pactuada da ditadura, firmado entre a Concertação e a direita.
A mobilização dos estudantes também abriu um forte questionamento no sistema político representativo, a forma de eleição dos parlamentares e regras institucionais da Constituição de 1980 da ditadura. O pacto de transição da ditadura estabeleceu o voto distrital binominal e ainda a proibição que o Partido Comunista (que foi um dos principais partidos que fizeram a resistência armada contra a ditadura) não podia fazer parte da Concertação (DC+PS). Desta maneira, estava assegurada, pelas elites, a transição democrática com o domínio dos distritos pelas duas grande coalizações: Concertação (Centro) e a Direita, excluindo o PC e outros partidos minoritários de esquerda. Não é por acaso que as principais lideranças do movimento estudantil são do Partido Comunista, como Camila Vallejo (Presidenta da Federação de Estudantes da Universidade de Chile) ou de grupos de Esquerda Autônoma como Francisco Figueroa (Vice Presidente da Federação de Estudantes da Universidade de Chile) entre outras lideranças. O PC e outros movimentos de esquerda já levantam a bandeira de uma nova Constituição com uma ampla reforma política, que termine com o sistema político distrital binominal e implante o sistema proporcional, assegurando os direitos das minorias, assim como defendem a construção de uma democracia participativa.
O modelo de mercado no Chile, que funciona como uma ditadura e que impõe regras a toda a cidadania, na saúde e educação (privatizadas), nas relações de trabalho (precarização), no cobre (privatização), na economia completamente aberta e o capital financeiro predomina sobre todas as atividades. Hoje, os estudantes, que tem dívidas de créditos escolares, e a cidadania que está presa aos mesmos credores tem um inimigo comum e uma ampla aliança social. Contra esta ditadura do mercado se levanta hoje não só os estudantes mas o conjunto dos trabalhadores e inclusive setores da classe média chilena (com manifestações nos bairros como Nuñoa, Providência e Las Condes saindo nas ruas para fazer panelaços).
O movimento estudantil com suas reivindicações e mobilizações se constituiu em um movimento social que incluiu setores da classe média, trabalhadores e o movimento popular dos bairros e vilas. Está em marcha uma revolução democrática e anti-neoliberal que fará grandes transformações na sociedade chilena.
Como dizia um dos cartazes da manifestação dos estudantes com a foto do Presidente Allende: “O Sonho Existe”.
* Ubiratan de Souza – economista e dirigente do Partido dos Trabalhadores de Porto Alegre. Artigo originalmente publicado no Blog Diário Gauche. http://diariogauche.blogspot.com/