Amigos, inimigos e batalhas políticas

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  • segunda-feira, 13 de junho de 2011
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  • “Um amigo deixa o governo e uma amiga assume seu lugar”, declarou a presidente Dilma Rousseff na cerimônia de posse da nova ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann. Frase bonita e emblemática, capaz de mostrar que nas relações políticas também há lugar para o afeto, a lealdade, a cooperação desinteressada – em suma, para a amizade.
    Dirigida ao ex-ministro, a declaração soa protocolar. Afinal, se amizade intensa houvesse, ele teria ponderado que seu acumulado de problemas implicaria risco para o governo e não teria insistido em nele permanecer. Em relação à ministra Gleisi, porém, a frase é perfeita e tem tudo para ser o anúncio de uma nova era na Casa Civil da Presidência. Agora, ela está nas mãos de uma mulher jovem, dinâmica, tecnicamente bem preparada, com uma bela trajetória política e que, se não bastasse, se destacou nos últimos tempos pela defesa aguerrida da candidatura Dilma, primeiro, e depois da presidente Dilma. A nova ministra chega com o propósito de somar, não de ser a integrante mais forte do governo; seu objetivo é “cuidar da gestão e do acompanhamento de projetos”. São coisas que indicam uma relação diferenciada, promissora.
    Foram tantas as demonstrações de afeto recíproco naquela cerimônia que seria o caso de perguntar se não teriam sido elas a manifestação de que a Presidência da República também é um ambiente infestado de inimigos, produzidos inevitavelmente pela dinâmica mesma do poder e da luta política. Se a pergunta faz sentido, quem estaria a atravancar o caminho de Dilma, a assoberbá-la com pressões, a esparramar pedras pelos tapetes do Planalto para retardar suas decisões ou induzi-la ao erro? Seriam esses “inimigos” os responsáveis pelo tão falado imobilismo da presidente, pela dificuldade que teria tido de cortar o mal pela raiz ao saber da delicada situação de Palocci?
    É razoável que se pense assim. Por estar obrigada a agir num ambiente contaminado, a presidente não tem como se conduzir de modo destemido. Precisa contemporizar, ouvir, ponderar. Parece não ter muita paciência ou jeito para isso. Conta com poucos auxiliares desinteressados e descobre que muitos de seus amigos, aliados ou companheiros são, na verdade, protagonistas ativos de uma operação dedicada a cercá-la, a pressioná-la, a roubar-lhe autoridade. No caso Palocci, não demorou em agir. Simplesmente fez o que pôde na hora que pôde.
    Os “inimigos” do bom governo no Brasil compõem um elenco extenso e difícil de ser administrado.  O principal deles é o próprio sistema com que se governa, o assim batizado “presidencialismo de coalizão”, brilhantemente dissecado pelo cientista político Renato Lessa na edição anterior do caderno Aliás (“Jabuticaba institucional”, 05/06/2011). Trata-se de um sistema de coalizões, ao qual se superpõe um conjunto de fraquezas, idiossincrasias, ausências e excessos. Sem ele, não se governa, mas com ele se governa mal. Para se equilibrar e ganhar “governabilidade”, a Presidência é obrigada a compensar a falta de base parlamentar leal com a entrega de cargos e espaços a diferentes grupos parlamentares, convertidos em aliados. Ganha apoio para aprovar determinados projetos, mas perde capacidade de coesão e gestão. Recebe mordidas por todos os lados, convive diariamente com o inferno das demandas e das chantagens.
    O sistema poderia funcionar – e ser, assim, mero arranjo para acomodar as coalizões inevitáveis – caso a chamada “classe política” tivesse melhor qualidade e fosse capaz de se autocoordenar. A má qualidade dos parlamentares tem a ver tanto com o despreparo político de muitos deles, quanto com os compromissos que mantém com interesses espúrios ou com setores sociais mais atrasados, fato que transfere para o Parlamento uma demanda de teor verdadeiramente explosivo. Mas também retrata a inexistência de mecanismos que eduquem os políticos, que os façam agir de modo mais coordenado e menos corporativo, mais de acordo com o interesse público do que com interesses privados. Os partidos políticos deveriam ser essas escolas de política, mas não o são. Nenhum deles. Estão todos ou acomodados na tradicional posição de fazer o cerco (e a corte) ao poder, ou às voltas com problemas internos recorrentes ou à espera das próximas eleições. Não se afirmam nem no Legislativo, nem na sociedade.
    Emergiu desse vácuo outro “inimigo” de Dilma nesses seus primeiros meses de governo. Sentindo que a casa ameaçava pegar fogo, aliados e petistas chamaram um bombeiro conhecido por suas habilidades de negociador. Lula irrompeu em Brasília e trouxe consigo os ventos da inconveniência. Com ou sem intenção, passou a imagem de que é mais forte do que a presidente e de que deseja convertê-la em refém. Enfraqueceu-a perante a opinião pública, sugerindo que se alguém pode de fato coordenar o governo esse alguém está fora, e não dentro, do Palácio do Planalto. Desse ângulo, não admira que tanta atenção tenha sido dada à amizade na última semana.
    Um último círculo precisaria ser lembrado. Ele tem a ver com algo que se espalha pelo mundo como um furacão. É que a política se dissociou da sociedade e perdeu o respeito dela. Não dialoga mais com ela, nem como “opinião pública”, nem como sociedade civil, nem como estrutura social. O sistema político se isolou, vive encastelado, concentrado em seus próprios interesses. Não se reforma nem se deixa reformar. Produz inúmeros problemas e quase nenhuma solução. Permanece como que acorrentado a um tempo pretérito, ao passo que a sociedade avança pelas ondas líquidas e digitais da vida hipermoderna.
    Esse conjunto de “círculos inimigos” é mais ameaçador do que qualquer deslize ético, político ou moral de um ou outro ministro. Está na origem desses deslizes. E será contra ele que o governo Dilma, fortalecido pelo início de recomposição da Casa Civil, terá de travar suas mais importantes batalhas. [Publicado no Caderno Alias, O Estado de S. Paulo, 12/06/2011].
     
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