Polarizações, interesses e convergências - I

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  • sábado, 5 de junho de 2010
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  • Gisele Araújo, que além de minha amiga é cientista política das mais competentes e professora da UFRJ, comentou a nota que postei dias atrás a respeito do artigo que Luiz Werneck Vianna publicou no jornal Valor Econômico de 31/05/2010. Fez isso no blog dela, O Pasmado. Respondi na seqüência e iniciamos uma conversação que deve interessar a mais pessoas.
    Com o intuito de socializar e ampliar o debate, reproduzo abaixo o comentário de Gisele, seguido da minha resposta. No post seguinte, que publicarei amanhã, outro comentário e outra resposta.
    Se continuarmos escrevendo algo a respeito, registrarei.
    Aproveitem e entrem na roda!

    Comentário de Gisele Araújo


    Marco
    Comento essa passagem da sua análise e, em consequência, registro um ponto de tensão no texto do nosso querido amigo Werneck.
    Você escreve, citando o artigo do Werneck:
    "Por serem expressão de setores sociais distintos, mas também por efeito da competição política e eleitoral em que se engajaram, PT e PSDB se distanciaram com o tempo: 'Nascidos no mesmo solo, com vários pontos em comum, essas duas florações da social-democracia brasileira, partindo de São Paulo, igualadas em força aí, mais do que aproximar as suas convergências, se entregam a uma dura luta por território' (...) 'Apesar disso, nunca deixaram de estar próximos...'"
    Não discordo do solo comum - a moderna São Paulo - que marcou o nascedouro dos dois maiores partidos do Brasil de hoje. Mas, como apontado pelo Werneck, estes partidos, também desde sua origem, são a expressão de setores sociais distintos, quiçá opostos em seus projetos mais típicos - e uso o "tipo" na acepção weberiana, ou seja, purificados das conjunturas e efeitos distintivos inescapáveis da realidade. O problema da análise então é conferir mais peso à origem comum da locomotiva paulista e menos peso à composição social reconhecidamente distinta (no PT, os trabalhadores - e menos os empresários -, adicionados do funcionalismo público e dos setores progressistas e basais da Igreja).
    Esta opção da análise redunda na afirmação, a meu ver equivocada, de que a disputa se resume a uma "luta por território". Se pensarmos sob um viés eleitoral, qualquer disputa partidária é uma luta por território. Se, ao contrário, pensarmos em projetos de país, será forçoso reconhecer que, se nenhum dos dois partidos tem a bandeira da revolução como horizonte, as práticas governamentais dos dois se distanciam fortemente, ainda que submetidas a uma pragmática que não se vê somente no Brasil. Se os dois partidos têm governos distintos, eles não disputam num mesmo território; disputam uma compreensão distinta do território, o que é bem diferente. Vejamos então.
    Enquanto um enxuga o Estado; o outro amplia enormemente sua capacidade de ação. Essa diferença significa lutar no mesmo território ou lutar por redefinir o território? Não é preciso listar exaustivamente: o governo do PT fez o inverso do governo do PSDB no que se refere à atuação do BNDES, à Petrobrás, às Universidades, às Escolas Técnicas, aos programas de ação urbana, à política externa. As continuidades entre eles não têm como elemento de unicidade a origem paulista: este lugar comum decorre de uma camisa de força que se impôs pela proliferação da idéia de "fim da história" e que, inclusive, pasteurizou as esquerdas européias de forma muito mais contundente que nas bandas de cá. A dificuldade de sair do pensamento único - a supremacia da responsabilidade fiscal, a governabilidade, o endeusamento das liberdades liberais (do indivíduo, do mercado, da imprensa, etc) - não é especificidade brasileira, muito menos paulista. Se hoje o PT e o PSDB podem ter convergências em certo núcleo - em especial na política monetária, e não na econômica - esta comunalidade não se equaciona com a origem em São Paulo, já que ela se manifesta em várias agremiações políticas mundo afora.
    Mas estas convergências têm um quê de falácia. Adotar uma política monetária - como fez o PSDB - e mantê-la - como fez o PT - não significa que ela tenha o mesmo estatuto num e noutro partido. O primeiro o faz de forma programática, enquanto o segundo de forma pragmática. Isso faz diferença? Faz. Num caso é a fórmula "boa" por excelência. Noutro caso é instrumento, acertado ou não, tímido ou não. Num caso, é estratégia. Noutro caso, é capitulação. Num caso, o núcleo monetarista se integra a uma Reforma do Estado que o entende como um mal em si, um monstro ibérico, a ser extirpado pelo enxugamento como princípio, em nome de um suposto virtuosismo da liberdade das relações entre o mercado e a sociedade civil (sic). Noutro caso, este núcleo é forçado a conviver com investimentos estatais robustos, que anunciam uma outra visão de país e da relação entre Estado e Sociedade, e, não esqueçamos, entre Estado e mercado (ou sociedade civil no sentido marxiano). "Apesar disso nunca deixaram de estar próximos...". São próximos? São, mas uma proximidade que para um é essencial, e para outro, instrumental. Isso os distancia qualitativamente. É uma proximidade aparente, distante nos fundamentos.
    A não percepção de que estão em jogo projetos distintos de país - embora todos atentos à pragmática no jogo político interno (a necessidade de coalizão para o governo com setores da tradição) e externo (o cumprimento de metas de política monetária diante dos princípios e regras postas por organismos internacionais, como a OMC) - deve-se exatamente aos pesos diferenciados que se confere às duas características enumeradas para o PT e o PSDB. Ambos são sim originários de movimentos da resistência à ditadura fortemente enraizados em São Paulo, a locomotiva do capitalismo brasileiro. Mas suas composições sociais os fazem ter como horizonte países diversos. Se considerarmos verdadeiramente os tipos weberianos, isto é, exagerarmos nas cores para podermos ter uma visão de longo alcance purificada das variações conjunturais, será possível dizer ainda mais: eles não serão pouco próximos, serão mesmo projetos opostos entre si. Num caso, a social-democracia que viu o "fim da história" como a confirmação de suas teses da inevitabilidade da dependência, e da consequente ação programática no sentido de conferir supremacia ao mercado. Noutro caso, a social-democracia que não rejeita o mercado, mas o põe sob vigilância, apostando pragmaticamente na conciliação - talvez frágil, senão impossível, para alguns deletéria, para outros anacrônica - entre um Estado atuante e uma economia capitalista que inclui grandes e pequenos.
    A disputa eleitoral no Brasil se dá entre PT e PSDB. PSDB vem dizendo que Lula é a continuação de FHC e que Serra será a continuação de Lula. Dilma vem dizendo que ela, sendo a continuação de Lula, é radicalmente diferente de FHC e de Serra. Por que um afirma a continuidade enquanto outro afirma a descontinuidade? Claro, ser continuidade de FHC, com os altíssimos índices de rejeição que tem, ninguém quer. Mas não é só isso. É que, para além das disputas eleitorais, há que se pensar nos condicionantes sociológicos dos partidos políticos, isto é, que elementos de sua formação, composição e trajetória fazem com que sejam continuidades ou descontinuidades. Isso não se pode aferir antecipadamente, embora se possa sugerir, sempre sob correções posteriores. Esse é o caso. Antecipadamente, diremos que PT e PSDB têm a mesma origem antiestatista, típica de uma São Paulo secular, embora também naquela origem já se configurem com composições sociais distintas. Sob a necessária correção posterior, teremos que s analisar seus programas partidários. Veja-se, por exemplo, os PPAs - Planos PluriAnuais. Eles evidenciam que, apesar da comunalidade de São Paulo, as distinções são muito relevantes. E isso indica fortemente que, entre os dois elementos originários enumerados - o comum pertencimento a São Paulo e a distinta composição social - prevaleceu este último.

    Minha resposta

    Gisele:
    Muito obrigado pelo excelente comentário. Ele é ótimo! A começar pela linguagem, que para mim é quase tudo em um texto político. É vigorosa, firme, sem deixar de ser estilizada e bela. Depois, porque vc enfrenta o tema de braços abertos, marcando posição sem deixar de respeitar os argumentos contrários.
    Minha maior discordância com teu comentário é quanto à existência de projetos distintos de país e de governo. Falando com toda sinceridade, não consigo ver isso. Os dois alinhamentos partidários são hoje organismos em desconstrução, corroídos pelo pragmatismo e pela disputa de território, como diz Werneck. Quem faz política sempre disputa território, nisso vc tem toda razão, mas partidos de esquerda fazem isso sem perder de vista a elaboração de uma cultura política, que é a base de projetos de país e de uma "ida ao governo" com sustentação social.
    Onde estaria a cultura política de PT e PSDB? Claro que em certa dose ela está por aí, porque impregnou a alma dos integrantes e, digamos, se rotinizou na linguagem. Mas são culturas opacas, mal explicitadas, desatualizadas, que não ganham transparência nem visibilidade pública. Não é por outro motivo que aquilo que transparece é coisa pequena, são rusgas, atritos eleitoreiros, etc. Projetos de país, mesmo, não podem se estruturar com base nesse tipo de cultura. Quando muito, podem ser esboçados, como num croquis. Caso em que sempre será possível dizer que eles existem: como coisas in progress, o que em política é quase nada.
    Outro modo de pensar a questão seria dizer, como creio que vc faz, que os dois partidos têm modos distintos de governar e administrar. Algo na linha daquela tese sobre o "modo petista de governar", que nunca foi além de uma defesa fraca do orçamento participativo e, por isso, desapareceu do cenário. Correndo o risco de uma generalidade perigosa, diria que modos distintos de governar ou administrar ocorrem mesmo quando governos se substituem dentro de um mesmo partido. FHC 2 foi diferente de FHC 1, e Lula 2 muito diferente de Lula 1. Dilma ou Serra serão diferentes de Lula e FHC, e quando os candidatos sugerem aproximações ou distanciamentos de um e outro estão somente jogando para a plateia, não falando sério.
    Governos governam cada um a seu modo porque respondem a conjunturas distintas, a ciclos específicos, a problemas particulares. Se FHC enxugou o Estado e Lula o ampliou (afirmação meio discutível, mas que aceito para poder argumentar), isso se deveu não tanto a convicções doutrinárias ou a princípios projetuais, mas sim a possibilidades objetivas e a exigências de ordem prática. Passou-se algo semelhante no mundo todo, independentemente de governos ou partidos no poder. Foi o esgotamento de um ciclo hegemônico (neoliberal) vis-a-vis a sucessão de crises do próprio sistema capitalista. O mundo real passou a chamar de volta o Estado. Do mesmo modo, não é por Dilma ser a candidata de Lula que ela continuará a ampliar o Estado, e todos sabem do ardor estatista de Serra.
    Resta a questão do peso que a "matriz do interesse" teria na configuração e na atuação efetiva dos dois partidos. Acho que a tese do Werneck é um achado. É boa como ideia a ser explorada e como peça de embate político-teórico de alto nível. Não acho que, ao aceitá-la, tenhamos que ficar dispostos a criticar os partidos ou a diminuir sua relevância. Afinal, qual o problema em defender interesses? Mas, enquanto "matriz", a ênfase no interesse joga muita água na dimensão mercado e sugere pelo menos uma tensão com o tema do Estado (do interesse coletivo), de certa maneira subordinando-o ao mercado ou à "sociedade civil". Tanto o PT quanto o PSDB são reféns dessa atração pelo que estaria "fora do Estado". São -- e aí concordo com vc: cada um a seu modo -- "sociólatras", só que um usa mais o Estado do que o outro, quer dizer, viabiliza seus interesses sociais específicos mediante o Estado e seus aparelhos. Não vejo mal nenhum nisso e penso que os tucanos estão completamente errados quando acusam os petistas de estarem montando uma "república de companheiros", etc. Mas que há um uso pouco republicano do Estado pelo PT é verdade. Houve algo assim também no governo FHC, e aí os partidos se equivalem.
    Vc diz que as composições sociais distintas de PT e PSDB "os fazem ter como horizonte países diversos" e que eles jamais serão próximos, "serão mesmo projetos opostos entre si". Wishfull thinking? Eu, que não sou nem petista nem tucano e prefiro olhar o panorama a partir de postos elevados de observação, espero que vc esteja certa, porque a democracia ganharia com isso. Dois partidos de esquerda com projetos distintos buscando o voto dos cidadãos é sonho de qualquer democrata reformador bem-intencionado. Mas não sei se a vida beneficiará a tua (e a minha) torcida. Nesse caso, preferirei a existência de uma grande partido social-democrata com correntes dotadas de identidade programática suficiente para fomentar um embate político interno de qualidade.
    Creio mesmo, se fizer sentido a hipótese de que PT e PSDB estão mais próximos do que distanciados, e de que portanto podem convergir de forma substantiva nos próximos anos, que tal convergência tenderá se fazer em torno de uma ideia de social-democracia que roubo do teu comentário: "a social-democracia que não rejeita o mercado, mas o põe sob vigilância, apostando pragmaticamente na conciliação - talvez frágil, senão impossível, para alguns deletéria, para outros anacrônica - entre um Estado atuante e uma economia capitalista que inclui grandes e pequenos".
    Acho que a estrada comum de todos os democratas reformadores será essa, independentemente de saber se os ônibus que tomarão para atravessá-la será o da estrela vermelha ou o do tucano amarelo.
    Vamos nessa.

     
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