ou: é Gramsci, idiota!
Mais de uma vez já falei sobre o teórico comunista italiano Antônio Gramsci. Seu conceito de “hegemonia” está na raiz de tudo o que se vê na esquerda contemporânea — notem que não empreguei o adjetivo “moderna” porque a palavra costuma estar associada a uma idéia de valor positivo. Nesse sentido, ou se é moderno ou se é de esquerda. Adiante.
Gramsci desenvolveu o conceito de “hegemonia”: um partido — na verdade, “o” partido, que ele chamava de “Moderno Príncipe” — tem de fazer a guerra de valores na sociedade que quer transformar. Mais do que transformar: na sociedade que pretende subjugar e, na prática, substituir. O autor não propõe as coisas nesses termos, é claro, porque ele faz a sua construção totalitária parecer um avanço humanista — como todo totalitário. E essa guerra implica tornar seus valores influentes, de modo que, com o passar do tempo, os indivíduos não consigam mais pensar fora dos seus parâmetros, fora de suas necessidades, fora de suas formulações. O “Moderno Príncipe” torna-se, assim, um “imperativo categórico”.
E como se opera essa guerra? Como toda guerra: por meio de soldados. Só que, nesse caso, são os soldados da ideologia. Numa primeira fase, o trabalho fica mesmo a cargo da militância. À medida que a hegemonia vai se estabelecendo, mesmo os que não estão a serviço da causa se tornam seus vogais. Porque, como está dito, já não se consegue pensar fora daquela metafísica influente.
Peguem os jornais de hoje: fica-se com a impressão de que aconteceu uma grande tragédia na pré-candidatura de José Serra: afinal, Aécio desistiu! Parece um delírio coletivo. Sim, há os militantes do governismo, que sabem muito bem o nome do que praticam. Mas também há os que são simplesmente tontos. Em alguns casos, chega-se ao acinte — e nem estou muito certo do que seja algo deliberado. QUEM ESTÁ PAUTANDO A REPERCUSSÃO DO FATO, DO COMEÇO AO FIM, É O PT.
Até a tese estúpida de que o Palácio ficou satisfeito porque considerava Aécio um candidato mais difícil foi ressuscitada. ESTA MESMA VERSÃO, POR INCRÍVEL QUE PAREÇA, FOI VENDIDA À IMPRENSA EM 2005, só que Geraldo Alckmin substituía Aécio. E MUITOS BOBOS E BOBAS A COMPRARAM. Não vou citar nomes por gentileza. Mas a Internet está aí. Pesquisem. Havia tanto sentido na plantação do governo, que o resultado foi este (sempre com números do Datafolha):
Dezembro de 2005 — pela primeira vez, Serra ficava à frente de Lula, com 36% das intenções de voto, contra 29%. Alckmin aparecia com 22%, e Lula com 36%
FATO - Serra era alvo de intenso bombardeio dentro do próprio PSDB.
Fevereiro de 2006 - Serra aparecia com 34%, e Lula com 33%. Alckmin aparecia com 20%, e Lula com 36%
FATO - Alguns tucanos e boa parte da imprensa, pautada pelo PT, os mesmos de agora, diziam que o Planalto temia mais Alckmin do que Serra. O bombardeio continuava. Serra desiste.
Março de 2006 — Alckmin aparecia com 23%, e Lula com 42%.
Maio de 2006 — Lula chegou a 45%, e Alckmin ficou com 22%.
De súbito, os manés do “potencial de crescimento” e do “temer mais quem tem menos votos” desapareceram, sumiram, escafederam-se. Não! Não estou dizendo que Serra teria vencido se tivesse sido o candidato. Estou dizendo que a tese era, como é, furada, mentirosa, vigarista mesmo. Não obstante, é comprada com a desfaçatez dos abduzidos.
A situação é de tal sorte absurda que se deu mais atenção à versão do PT para a desistência de Aécio do que à do próprio governador de Minas. Um trecho essencial de sua carta, que fala sobre a tentativa de dividir o país — publiquei a íntegra ontem, vejam lá — foi ignorada.
PERGUNTA - E que cenário, então, poderia ser positivo para Serra? Existirá algum? O PT, naturalmente, diz que não. Mais: elogiando Aécio Neves, deixa claro esperar, do modo indecoroso que tão bem os caracteriza, que ele traia Serra — e fazem, assim, o que seria, então, o elogio da traição. Escrevi aqui outra dia e reitero: quando a imprensa decide ser ruim, nada é tão ruim no seu próprio gênero como ela no dela.
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A homepage de agora, passados alguns minutos das 15h, da Folha Online é matéria que interessa à ciência. Toda ela está pautada pelo PT, de cabo a rabo — isto é, da voz oficial do “Planalto” (seja ela quem for) a José Dirceu.
A Folha Online, aliás, tem como uma de suas missões, suponho, amplificar o que escreve José Dirceu em seu blog, que ninguém lê. Dia sim, dia não — ou dia também —, há ao menos um texto resumindo o que pensa o ex-ministro e deputado cassado sobre a política. Trata-se de um verdadeiro “Diário de Dirceu”. Hoje, ele diz que Minas não perdoará Serra por Aécio ter desistido.
Como os petistas achassem Aécio um adversário bem mais difícil, eles o elogiavam e elogiam, em contraste com Serra, o adversário fácil, permanentemente atacado. É uma lógica que deve ser saboreada com os quatro cascos no chão.
É uma evidência do jornalismo rendido a um ente de razão, a um partido, de modo miserável. A rigor, nem jornalismo é porque não há apuração, mas apenas registro do “que se diz por aí”. Os delírios vão se sucedendo. O novo é que Aécio, não querendo para ele a vaga, pode impor Itamar Franco como vice na chapa de Serra. Pode impor? Pode mesmo?
Celebra-se o que seria uma verdadeira orgia da traição, em que se dá como certo que, não tendo conseguido viabilizar a sua candidatura, o caminho certo de Aécio — e, parece, alguns consideram também o caminho ético — é trair. Nisso, como em tudo mais, esse tipo de jornalismo concorda com José Dirceu. A diferença entre o que vai naFolha Online e os blogs que servem a Franklin Martins é só de linguagem: o subjornalismo oficialista é mais engraçado.
Nem mesmo aquela idéia de equilíbrio, que costuma esconder tantos desequilíbrios, está presente desta vez. Não há um “outro lado” dizendo que as coisas podem não ser bem assim. Há só um lado.
José Dirceu edita a Folha Online.
Retomo a questão da impensa no próximo post.
(Reinaldo Azevedo)