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Cotas da Igualdade


Debate sobre as cotas raciais nas universidades brasileiras trouxe de volta velhos clichês como a suposta “democracia racial” brasileira e o reducionismo econômico, que insiste em negar a diferença de tratamento entre brancos e negros da mesma classe social.

Por Túlio Vianna, publicado na Revista Fórum

De todas as ficções com as quais o sistema capitalista se legitima, a mais hipócrita delas é a da igualdade de oportunidades. A meritocracia é uma ficção que só se realizaria se não houvesse heranças. No mundo real, ninguém começa a vida do zero; somos herdeiros não só do patrimônio, mas da cultura e da rede de relacionamentos de nossos pais. Alguns já nascem na pole position, com os melhores carros; outros se digladiam na última fila de largada em calhambeques não muito competitivos. 

Quem é o melhor? O piloto que vence a corrida largando na pole position e com o melhor carro ou aquele que largou em último e chega com seu calhambeque em segundo lugar? Quem tem mais mérito? O candidato que estudou a vida inteira em excelentes escolas particulares e passou em primeiro lugar no vestibular ou aquele que passou em último, tendo estudado somente em escolas públicas, enquanto trabalhava oito horas por dia para ajudar seus pais?

As cotas universitárias não foram criadas para coitadinhos. Elas existem para vencedores. Para alunos que são tão brilhantes que, mesmo correndo durante 17 anos em calhambeques, ainda conseguem chegar próximos daqueles que dirigem os melhores carros. Para quem, contrariando todas as expectativas, venceu o sistema que lhe negou as oportunidades necessárias para que seu talento florescesse em plenitude. As cotas são um mecanismo para privilegiar o mérito pessoal em detrimento da condição social como critério de seleção.

É relativamente fácil perceber como a desigualdade econômica afeta o desempenho acadêmico dos candidatos ao vestibular. Mesmo quem nunca foi pobre consegue imaginar as dificuldades de alguém que estudou em uma escola fraca, sem dinheiro para comprar material escolar e tendo que trabalhar para ajudar nas despesas da casa. Difícil mesmo é um branco perceber como a desigualdade racial dificulta o ingresso de um negro na universidade.

O racismo no Brasil é comumente negado com base em duas ideologias complementares: o “mito da democracia racial” e o reducionismo econômico. A primeira nega, contra todas as evidências fáticas, a existência da discriminação racial brasileira; a segunda reconhece o tratamento desigual, mas atribui sua causa à desigualdade econômica. Juntas, estas duas ideologias fundamentam um argumento recorrente de que o negro seria discriminado no Brasil não pela cor de sua pele, mas por sua pobreza. 

Democracia racial

O mito da democracia racial brasileira, como todo mito que se preze, tem suas origens incertas. Muitos atribuem sua gênese à obra magna de Gilberto Freyre, Casa-grande & Senzala (1933), ainda que a expressão não conste expressamente no livro e só tenha sido usada por Freyre muito mais tarde, sob influência de outros intelectuais. Fato é que, independentemente do pensamento ou da vontade de Freyre, sua obra foi interpretada por muitos como a prova cabal de que as relações entre brancos e negros no Brasil se deram de forma muito mais cordial do que na América do Norte, até em função da miscigenação ocorrida por aqui, o que explicaria a suposta democracia racial existente no Brasil.

E foi com base nesta ideologia da democracia racial que o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) defendeu a ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186, com a qual o seu partido requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que declarasse inconstitucional o sistema de cotas raciais nos vestibulares brasileiros. Em audiência pública ocorrida no STF em 3 de março de 2010, o senador afirmou: "Nós temos uma história tão bonita de miscigenação... (Fala-se que) as negras foram estupradas no Brasil. (Fala-se que) a miscigenação deu-se no Brasil pelo estupro. (Fala-se que) foi algo forçado. Gilberto Freyre, que é hoje renegado, mostra que isso se deu de forma muito mais consensual."

Esta visão romanceada da escravidão no Brasil, que foi duramente criticada por Florestan Fernandes e seus colegas da USP em minuciosos estudos realizados a partir da década de 1950, ainda hoje encontra seus adeptos, não obstante seu visível anacronismo. A ditadura militar brasileira – que aposentou compulsoriamente Florestan em 1969 – esforçou-se para garantir uma sobrevida à ideologia da democracia racial, incutindo na população a ideia de que não há racismo no Brasil. 

Os números do Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2007-2008, porém, mostram uma realidade bastante diferente da propagada pela ideologia da democracia racial. O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de pretos e pardos no Brasil é de 0,753; o de brancos é de 0,838. Dos 513 deputados eleitos em 2006, apenas 11 eram pretos e 35 pardos. No início de 2007, dos 81 senadores 76 eram brancos, enquanto somente 4 eram pardos e 1 preto. Dos 68 juízes dos Tribunais Superiores, apenas dois foram identificados como pretos e dois como amarelos, sendo todos os demais brancos. 

No ensino superior a democracia racial é uma ficção. Em 2006, um em cada cinco brancos em idade esperada para ingressar no ensino superior estava na universidade, enquanto 93,7% dos pretos e pardos na mesma faixa etária estavam excluídos do ensino superior público ou privado. 

No corpo docente das universidades brasileiras a situação é ainda pior. Um estudo do professor de Antropologia da Universidade de Brasília (UNB) José Jorge de Carvalho avaliou 12 das principais universidades brasileiras e constatou que o número de professores negros (pretos e pardos) não chega sequer a 1%. Dos 4.705 professores da Universidade de São Paulo (USP) no período avaliado, apenas 5 (0,1%) eram negros. Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), dos 2.700 professores, 20 (0,7%) eram negros. Das instituições pesquisadas, a com maior pluralismo racial do corpo docente foi a UNB, na qual, dentre 1.500 professores, havia 15 (1%) negros.

Reducionismo econômico

Na impossibilidade de negar os números que indicam claramente a discriminação racial no Brasil, os adeptos da ideologia da democracia racial procuram justificar as desigualdades apontando como causa da discriminação não a etnia, mas a condição econômica dos negros, na média bastante inferior à dos brancos. Este argumento tem seduzido, inclusive, muita gente de esquerda que, em uma leitura ortodoxa do marxismo, entende que todo conflito social pode ser reduzido a um conflito de classes.

Uma análise mais atenta da realidade social, porém, constata que, para além do poder econômico que impõe a dominação de ricos sobre pobres, há também micropoderes que impõem relações de dominação em função de outras diferenças sociais, tais como as existentes entre brancos e negros, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, nacionais e estrangeiros e tantas outras.

É tentador imaginar que um estudante negro que estudou toda a vida na mesma sala de aula de um colega branco, com renda familiar semelhante, tenha a mesma chance que ele de ingressar em uma universidade. Na vida real, porém, as dificuldades do estudante negro são sempre maiores.

Ainda que tanto o estudante negro quanto o branco assistam às mesmas aulas e estudem pelos mesmos livros, este é apenas um aspecto muito reduzido de sua formação. A criança e o adolescente refletirão boa parte das expectativas que seus pais, professores e colegas depositam nele. Se o aluno branco é visto por seus professores como “brilhante” e o negro como “esforçado”, esta diferença acumulada durante mais de 10 anos de estudos resultará em níveis de autoconfiança bastante diferentes. 

O negro já entra na escola com um menor status social perante seus colegas e isso lhe será relembrado durante todo o período escolar, desde os apelidos que lhe serão dados até o eventual desafio de um namoro interracial na adolescência. Se precisar trabalhar para ajudar nas despesas de casa, o adolescente negro terá maiores dificuldades em ser aceito em um emprego do que o adolescente branco, ganhará menos e exercerá piores funções. Haverá uma probabilidade muito maior de que os adolescentes negros sejam abordados e revistados pela polícia do que o mesmo ocorrer com seus colegas brancos; aqueles terão sempre seguranças seguindo seus passos em shoppings centers e boates. As revistas e os programas de TV lhe lembrarão o tempo todo que suas chances de ascensão social se resumem a ser um exímio jogador de futebol ou uma sambista destinada a ser símbolo sexual somente durante o carnaval. 

Se o adolescente branco tem como desafio vencer a pobreza para passar no vestibular, o adolescente negro, além da pobreza, precisará vencer o preconceito. Precisará ir além da expectativa social que lhe atribuiu um lugar na sociedade que ele não quer ocupar. E isso, muitas vezes, é bem mais difícil do que simplesmente aprender a matéria que cai na prova.

Não se trata de uma mera dominação econômica de uma classe sobre outra, mas de uma dominação cultural que durante séculos incutiu no inconsciente coletivo a imagem do negro como raça inferior. As cotas raciais a médio e longo prazo permitirão que mais e mais negros sejam vistos no mercado de trabalho como profissionais de sucesso, alterando as expectativas sociais que são atribuídas aos jovens negros. 

Quando os cirurgiões e os juízes negros deixarem de ser confundidos com pacientes e réus, não precisaremos mais de cotas. Até lá, as cotas raciais cumprirão não só o papel de promoção da igualdade racial, mas principalmente farão justiça com o estudante negro que enfrentou tantos percalços na sociedade racista em que vive. Reconhecerão o mérito de quem desafiou todas as expectativas sociais em contrário e continuou estudando para ingressar em uma universidade. O mérito de quem teima em ser um vencedor. 
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