Apesar de todas as baixarias praticadas e acabar a eleição como líder do esgoto da política brasileira, não se pode dizer que Serra não tenha feito nada digno de nota. Seu grande feito, no pleito de 2010, e que vai garantir-lhe um lugar especial na história, foi o de abrir as portas do inferno.
Para a classe média tradicional, os pobres passaram a competir com os mais ricos, mas de forma "desleal": o governo Lula tomou partido de apenas uma parte da população e está dando um "empurrão" nestes segmentos sociais, ofendendo os adeptos da igualdade meramente formal, perante a lei, cunhada pelo liberalismo. Mas que não se envergonham em ver seus filhos ocupando vagas nas universidades públicas exatamente porque podem pagar uma educação preparatória que um jovem da periferia jamais poderá alcançar. Neste caso não há deslealdade. Os pobres que tratem de estudar como possam. Isto explica as ondas de ódio contra o governo Lula e contra os habitantes das regiões que seriam mais beneficiados pelo "paternalismo" do governo federal.
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É que durante o transcurso do Governo Lula, de forma sensível e continuada, foram ocorrendo profundas transformações na sociedade brasileira. Milhões de pessoas que até então apenas assistiam a burguesia e a classe média verem seus sonhos e necessidades atendidas, passaram a vivenciar também a sensação da cidadania e ter acesso a coisas que jamais pensariam que um dia iriam experimentar.
A expectativa real da obtenção de um emprego, o acesso ao ensino superior, à casa própria, aos bens de consumo básicos e até mesmo a um automóvel, somente passou a ser realidade para estes milhões de brasileiros a partir das políticas certeiras de Lula, tanto no plano social como no econômico, a ponto do Brasil alçar, no cenário internacional, reconhecimento e respeito nunca dantes vistos por aqui.
No entanto, enquanto estas transformações virtuosas ocorriam, um bolsão de inconformidade se formava de forma sub-reptícia: a velha classe média burguesa passou a se sentir constrangida pelas hordas de pobretões que agora passaram a se arvorar em querer coisas que iam além das suas chinelas. Para aquela, as desigualdades sociais são naturais e, portanto, quem nasceu rico, tem o direito de nesta condição permanecer, mas quem nasceu pobre deve se resignar com a miséria e aguardar a redenção num paraíso futuro, mesmo que para obter o passaporte para o Éden seja necessário morrer antes.
Quem já não ouviu coisas do tipo "há engarrafamentos no trânsito porque agora qualquer um pode ter automóvel", "os aeroportos estão lotados porque agora qualquer um pode viajar". "As quotas tiraram vagas dos alunos que realmente estudam e podem passar no vestibular". Com referência ao Bolsa Família, é comum ouvir: "eu não pago impostos para sustentar vagabundos" e outras tantas barbaridades.
O prof. André Marenco, professor de Ciência Política da Universidade Federal do RS citando, em artigo recente publicado na imprensa gaúcha, o economista americano Albert Hirschmann, registrou com precisão que "períodos de grande mobilidade social costumam ser seguidos por ondas conservadoras, marcadas por uma retórica de intolerância em relação à mudança e à concessão de benefícios aos pobres."
Para a classe média tradicional, os pobres passaram a competir com os mais ricos, mas de forma "desleal": o governo Lula tomou partido de apenas uma parte da população e está dando um "empurrão" nestes segmentos sociais, ofendendo os adeptos da igualdade meramente formal, perante a lei, cunhada pelo liberalismo. Mas que não se envergonham em ver seus filhos ocupando vagas nas universidades públicas exatamente porque podem pagar uma educação preparatória que um jovem da periferia jamais poderá alcançar. Neste caso não há deslealdade. Os pobres que tratem de estudar como possam. Isto explica as ondas de ódio contra o governo Lula e contra os habitantes das regiões que seriam mais beneficiados pelo "paternalismo" do governo federal.
Assim, como bem observa o prof. Marenco, a questão do aborto não foi o elemento crucial na disputa eleitoral, nem deverá ganhar espaço no debate político que se seguirá. Segundo ele, "conflitos distributivos" é o nome do processo que separou os eleitores nas diversas regiões do País e isto poderá representar o combustível de um novo conservadorismo.
Nesta perspectiva, o grande feito de Serra nestas eleições, com sua agenda mesquinha e retrógrada, foi abrir as portas do inferno, deixando que saíssem para fora demônios e monstruosidades que estavam adormecidas. Mas não mortas. Faltava só alguém apertar o botão.